domingo, 26 de janeiro de 2014

Vida de tropeiro

Os tropeiros que viajavam pelo Brasil dirigindo os bandos de mulas que transportavam mercadorias, tanto as destinadas ao consumo interno como as que seguiam para exportação, precisavam, ao fim de cada jornada, encontrar um lugar onde pudessem preparar uma refeição e abrigar-se durante a noite. Esse lugar era o pouso de tropeiros.
Não poucas cidades brasileiras têm sua origem relacionada a esses modestos galpões (no melhor dos casos), que não consistiam, em absoluto, em um tipo de hotel: se eram bons, apresentavam-se mais ou menos limpos e cobertos de telhas. Os péssimos tinham coberturas menos confiáveis e eram imundos. Quase sempre pertenciam a algum fazendeiro do lugar, que, aliás, lucrava bastante com a famigerada venda que mantinha ao lado, na qual os produtos disponíveis, quase sempre de qualidade bastante discutível, eram oferecidos a preços escorchantes.
Mas não eram apenas os tropeiros e suas mulas que paravam nos ranchos. Esses abrigos eram, geralmente, a única opção para outros viajantes, fossem eles ricos ou pobres. Também não era incomum a presença de militares que escoltavam os Reais Quintos de Sua Majestade.
Assim, pode-se dizer que um rancho de tropeiros era um espaço algo "democrático" para a época: nele pousavam todos os viajantes que, ao entardecer, achavam-se em viagem por uma dada região e que não pudessem encontrar refúgio em casa de algum conhecido, de modo que sob um mesmo teto reuniam-se homens livres e escravos, gente de origem europeia, africanos ou seus descendentes e índios.
Ninguém, no entanto podia esperar muito conforto. O quase sempre rabugento Saint-Hilaire, naturalista francês que esteve no Brasil pela época da Independência, registrou, em certa ocasião, suas ideias sobre o "cuidado extremo" que o governo (sempre ele...) tinha com a conservação desses locais de pouso:
"Aquele a que chamam Rancho Grande não podia ter nome mais adequado porque incontestavelmente é o maior dos que vi desde que estou no Brasil. É coberto de telhas, bem conservado, alto acima do solo e cercado de balaustrada.
O dono é um homem imensamente rico, possuidor do mais importante cafezal da redondeza. Por um rancho sofrível que se encontra há, no mínimo, dez no mais deplorável estado. Os proprietários os alugam, com a venda contígua, por preços muito altos, e pouco se lhes dá que neles chova por todos os cantos. Tenho quase tanto medo da chuva quando estou num rancho do que quando fora. É verdadeiramente inconcebível que o governo não tome alguma providência a tal respeito e tampouco do que tanto interessa ao comércio, a ponto de nem proporcionar aos que transportam mercadorias pelas mais frequentadas estradas, lugares onde as possam abrigar à noite, sem temer que a chuva as avarie." (¹)
Note-se que, desde a época da mineração, os ranchos tinham-se feito necessários por toda a rota do chamado "Caminho das Minas", e nem por isso a condição deles era lá muito boa. Alguns, no entanto, podiam ser um pouco melhores. Antonil, por exemplo, referindo-se ao Caminho Novo das Minas, relatou haver um rancho importante nas proximidades do rio Paraibuna:
"Daqui se passa ao rio Paraibuna em duas jornadas, a primeira no mato e a segunda no porto, onde há roçaria e venda importante, e ranchos para os passageiros de uma e outra parte. É este rio pouco menos caudaloso que o Paraíba: passa-se em canoa." (²)
À noite, depois que se acomodava a bagagem, provia-se alimento para os animais e os homens e, então, não raro os tropeiros tinham lá seu momento de lazer. É o que se depreende deste relato de Hércules Florence, referindo-se às tropas que se reuniam em Cubatão:
"Acontece que quando muitas delas ali se reúnem, os camaradas se congregam todos para dançarem e cantarem a noite inteira o batuque. Gritam a valer e com as mãos batem cadencialmente nos bancos em que estão sentados. Assim se divertem." (³)

Rancho para pouso de tropeiros de acordo com gravura de M. Rugendas (⁴)

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 122.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 165.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 3.
(4) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 19 de janeiro de 2014

As tropas de muares e seus tropeiros

Como eram transportadas mercadorias no Brasil antes da existência de estradas de ferro

"De longe e visto de perfil, o rochedo parecia um tropeiro, derreado sobre o pescoço da mula e carregando às costas sua maca de viagem."
                                                                                     José de Alencar, O Tronco do Ipê

Antes das ferrovias (que só compareceram ao Brasil na segunda metade do Século XIX), praticamente todo o transporte de cargas era feito por mulas, arregimentadas em grupos mais ou menos numerosos - as "tropas" - e conduzidas por gente livre ou escrava, mas especializada nesse tipo de transporte - os tropeiros.
As estradas que então havia eram péssimas, e isso é o melhor que se pode dizer sobre elas, pouco faltando para que fossem intransitáveis. No entanto, as mulas, animais resistentes e de custo relativamente baixo, conseguiam enfrentar bem as agruras dos caminhos cheios de lama ou poeira, levando mercadorias de uma região a outra, como era o caso das que seguiam para abastecer as Minas, ou daquelas destinadas à exportação e que, portanto, iam do interior para o litoral.
Referindo-se a às mercadorias que, desde Minas Gerais seguiam para o Rio de Janeiro, o Padre Ayres de Casal escreveu:
"Exporta-se, desta Província, sola, couros de veado e de outros animais selváticos, algodão tecido e em lã, tabaco, café, frutas, açúcar, queijos, carne de porco, rapaduras, pedra-sabão, pedraria, salitre, marmelada. Quase tudo é conduzido à Metrópole em bestas, das quais se encontram comboios de cem e maior número, repartidas em récuas de sete cada uma, e governada por um homem, levando de retorno sal, fazendas secas e molhados." (¹)
Um pouco mais tarde, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, escreveu, referindo-se aos dias nos quais esteve em Cubatão:
"Durante os oito dias que lá fiquei, vi diariamente chegar três a quatro tropas de animais e outras tantas partirem.
Cada tropa compõe-se no geral de quarenta a oitenta bestas de carga, guiadas por um tropeiro e divididas em lotes de oito animais que caminham sob a direção de um camarada ." (²)
Os números são um pouco diferentes dos apresentados por Ayres de Casal, mas, de qualquer modo, relatam um padrão geral no que se refere à quantidade de animais e de homens que compunham uma tropa comum.
É o próprio Florence quem nos dá uma lista das coisas que essas tropas, vindas de São Paulo, carregavam rumo ao litoral, ou, de retorno, levavam tanto para a capital da Província como para outras localidades:
"As tropas, ao descerem de São Paulo, vêm carregadas de açúcar bruto, toicinho e aguardente de cana e voltam levando sal, vinhos portugueses, fardos de mercadorias, vidros, ferragens, etc." (³)
Comparem os leitores as duas listas de mercadorias - a de Minas Gerais, relatada por Ayres de Casal, e a de São Paulo, feita por Hércules Florence - e terão uma boa ideia do que se produzia em ambas as Províncias na época. É bom lembrar que, nesse tempo, o café ainda não era, por assim dizer, a estrela da economia brasileira. Viria a ser, logo depois.

Caravana de tropeiros, de acordo com gravura de M. Rugendas (⁴)

Ocupados assim em tanger animais e zelar pela segurança das cargas, seria natural esperar que tropeiros não tivessem muito tempo para outros afazeres. Alguns, no entanto, conseguiam. Há um caso interessante registrado pelo Príncipe Adalberto da Prússia, que esteve no Brasil em 1842, referente a um sujeito por ele contratado como tropeiro que, ao lado de sua ocupação normal, encarregava-se de reportar a chegada dos "navios negreiros", embarcações que traziam africanos escravizados:
"Antônio, um português nato, tinha tido durante o governo de D. Miguel de fugir para os Açores, de onde mais tarde se transferira para o Brasil num navio baleeiro. Desde sua chegada a este país, seu trabalho era, assim que chegava um navio negreiro a S. João da Barra, partir a cavalo para o Rio e levar a notícia ao seu proprietário; ninguém portanto podia conhecer este caminho melhor do que ele que, segundo afirmava, já o tinha percorrido muitas vezes em três dias." (⁵)

(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 363.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 3.
(3) Ibid.
(4) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 160.


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domingo, 12 de janeiro de 2014

A triste realidade das estradas reais

A primeira impressão dos portugueses que vieram na esquadra de Cabral foi de que os indígenas não tinham casas. Isso, porém, não correspondia à realidade e logo o engano foi percebido. Estradas, essas sim, não existiam mesmo. Os povos indígenas eram, a despeito disso, hábeis em encontrar seu caminho em meio às espessas florestas, embora alguns autores tenham referido casos de índios que se perderam na mata.
Na prática, as estradas foram-se fazendo ao sabor da colonização, e em muitos casos, antigas trilhas usadas pelos povos indígenas acabaram por servir de rota para exploradores europeus que iam ao interior. Um pouco alargadas, até porque mais frequentadas, tornaram-se, de fato, as rotas que serviam aos tropeiros para a condução do que se produzia no interior até os portos.
Pela época da Independência (1822), havia em São Paulo algumas rotas principais (¹), que eram:

- De São Paulo ao Paraná, passando por Cotia, São Roque, Sorocaba, Itapetininga e Faxina (atual Itapeva);

- De São Paulo até próximo de Minas Gerais, passando por Juqueri, Atibaia e Bragança;

- De São Paulo até a Vila da Constituição (Piracicaba), passando por Itu e Porto Feliz, de onde, em canoas, seguia-se pelo Tietê até Mato Grosso;

- De São Paulo até Franca, passando por Jundiaí, Campinas, Mogi-Mirim, Casa Branca e Batatais;

- De São Paulo até Bananal, passando por Mogi das Cruzes, Jacareí, São José dos Campos, Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Lorena e Areias;

- De São Paulo até Ubatuba, passando por Santos, São Sebastião e Caraguatatuba;

- De Santos até Iguape, passando por Conceição de Itanhaém.

Evidentemente dessas estradas "principais" saiam estradas menores (ainda!) para as mais povoações que a província de São Paulo tinha na época. E havia, ainda, o "Caminho do Mar", que foi, durante muito tempo considerado o pior caminho que havia no mundo...
Não devem os leitores imaginá-las como caminhos bem conservados, mesmo porque, pelas alturas do Século XIX, eram frequentes as queixas quanto ao descaso dos governantes no que se referia à conservação das estradas, isso nas mais diversas Províncias, e a despeito da importância econômica que pudessem ter. Apenas a título de exemplo, antes que as primeiras estradas de ferro começassem a operar, pela estrada de Ubatuba vinha a produção do Vale do Paraíba e do Sul de Minas, o que representava, em termos de carga, cerca de um milhão de arrobas anuais, com tráfego de 60.000 animais carregados. (²) A relevância por razões econômicas era, portanto, enorme, mas o estado de conservação da rota era lamentável.

Tropeiros na Serra do Ouro Branco, de acordo com gravura de Rugendas (³)
Eram as mulas, talvez, as maiores sofredoras com um tal sistema de transporte, e não só porque levavam as cargas no lombo. Há um relato feito pelo Príncipe Adalberto da Prússia, que viajou pelo Brasil em 1842 e que, é, a esse respeito, bastante revelador:
"A "estrada real" é aqui uma vereda, que sobe pela encosta da montanha, tão estreita que as tropas que encontrávamos se viam em não pequena dificuldade para se afastarem para o lado. Como o muar põe sempre a pata onde o da frente pisou, formam-se buracos de trinta até sessenta centímetros de profundidade no barro mole, verdadeiros depósitos de lama entre os quais fica sempre um pedaço de terra, por cima dos quais os animais só com muita dificuldade podem passar. Enfiam às vezes as patas dianteiras e as traseiras nesses buracos, encostando a barriga nos pedaços de terra que ficam entre eles e que se assemelham algo ao teclado de um piano, com o que se tornam um obstáculo quase insuperável. Em longos períodos de chuvas - e isto não faz parte aqui das raridades - os muares exaustos encontram muitas vezes a morte nestes terríveis caminhos, o que provam os muitos esqueletos destes animais que se encontram às suas margens, sendo este o motivo de os viajantes terem de prover-se de montadas de reserva." (⁴)
As tropas de muares, meus leitores, já há muito tempo deixaram de percorrer o Brasil, é verdade. Mas, de vez em quando, querendo alguém dizer que trabalha demais, afirma que "trabalha como um burro de carga". Triste reminiscência daqueles tempos, não?

(1) Consulte, para mais detalhes:
PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Vanorden, 1903, p. 19.
(2) Ibid., p. 262.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 122.


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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O centenário da Primeira Guerra Mundial

A coisa pode ser um pouco arbitrária, mas, a meu julgar, o maior centenário deste ano de 2014 é mesmo o do início da Primeira Guerra Mundial - a Grande Guerra, como diziam seus contemporâneos, antes, é claro, de que a Segunda acontecesse.
O banho de sangue em "escala industrial" (para usar uma expressão já um tanto surrada), pelas alturas de 1914 não era exatamente uma novidade. Afinal, só como exemplo, a Guerra Civil Americana (¹) fora responsável, ainda no século XIX, por uns seiscentos mil mortos. Armamento de tiro rápido garantia isso. As proporções internacionais da carnificina é que, no caso da Primeira Guerra Mundial, fizeram toda a diferença.
Porém havia mais: a guerra, que se supunha breve, arrastou-se por anos (²), enquanto jovens vidas promissoras apodreciam em trincheiras infectas, sem que disso nenhum benefício, no fim das contas, pudesse ser tirado para a sociedade civil. A miséria, a proliferação de doenças (como a gripe, dita "espanhola"), o revanchismo de Versalhes, os ódios nacionalistas ainda mais espicaçados, a brutal crise econômica, acabaram com as esperanças de toda uma geração e abriram as portas para que, num futuro não muito distante, uma conflagração muito pior e - essa sim - verdadeiramente mundial, ocorresse.
Fica disso tudo, a desagradável constatação de que a humanidade tem uma dificuldade tremenda em aprender com os próprios erros: duas guerras mundiais não foram, em absoluto, suficientes para consolidar, ao menos em escala ampla, o respeito a ideias pacifistas autênticas e, a bem da verdade, nunca se sabe quando é que uma outra confrontação mundial poderá começar. Basta um pretexto, e um deles estará sempre à mão, sempre que razões políticas e econômicas sobrepassem o valor que se atribui às vidas de milhões de seres humanos.

(1) Ou Guerra de Secessão.
(2) Tendo começado oficialmente em 28 de julho de 1914, só terminou em 11 de novembro de 1918. Curiosamente, os generais, de ambos os lados inicialmente envolvidos no conflito (as chamadas "Tríplice Aliança" e Tríplice Entente"), expressavam o ponto de vista de que a guerra seria curta, de modo que os soldados voltariam em tempo de passar o Natal com a família...


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