domingo, 12 de janeiro de 2014

A triste realidade das estradas reais

A primeira impressão dos portugueses que vieram na esquadra de Cabral foi de que os indígenas não tinham casas. Isso, porém, não correspondia à realidade e logo o engano foi percebido. Estradas, essas sim, não existiam mesmo. Os povos indígenas eram, a despeito disso, hábeis em encontrar seu caminho em meio às espessas florestas, embora alguns autores tenham referido casos de índios que se perderam na mata.
Na prática, as estradas foram-se fazendo ao sabor da colonização, e em muitos casos, antigas trilhas usadas pelos povos indígenas acabaram por servir de rota para exploradores europeus que iam ao interior. Um pouco alargadas, até porque mais frequentadas, tornaram-se, de fato, as rotas que serviam aos tropeiros para a condução do que se produzia no interior até os portos.
Pela época da Independência (1822), havia em São Paulo algumas rotas principais (¹), que eram:

- De São Paulo ao Paraná, passando por Cotia, São Roque, Sorocaba, Itapetininga e Faxina (atual Itapeva);

- De São Paulo até próximo de Minas Gerais, passando por Juqueri, Atibaia e Bragança;

- De São Paulo até a Vila da Constituição (Piracicaba), passando por Itu e Porto Feliz, de onde, em canoas, seguia-se pelo Tietê até Mato Grosso;

- De São Paulo até Franca, passando por Jundiaí, Campinas, Mogi-Mirim, Casa Branca e Batatais;

- De São Paulo até Bananal, passando por Mogi das Cruzes, Jacareí, São José dos Campos, Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Lorena e Areias;

- De São Paulo até Ubatuba, passando por Santos, São Sebastião e Caraguatatuba;

- De Santos até Iguape, passando por Conceição de Itanhaém.

Evidentemente dessas estradas "principais" saiam estradas menores (ainda!) para as mais povoações que a província de São Paulo tinha na época. E havia, ainda, o "Caminho do Mar", que foi, durante muito tempo considerado o pior caminho que havia no mundo...
Não devem os leitores imaginá-las como caminhos bem conservados, mesmo porque, pelas alturas do Século XIX, eram frequentes as queixas quanto ao descaso dos governantes no que se referia à conservação das estradas, isso nas mais diversas Províncias, e a despeito da importância econômica que pudessem ter. Apenas a título de exemplo, antes que as primeiras estradas de ferro começassem a operar, pela estrada de Ubatuba vinha a produção do Vale do Paraíba e do Sul de Minas, o que representava, em termos de carga, cerca de um milhão de arrobas anuais, com tráfego de 60.000 animais carregados. (²) A relevância por razões econômicas era, portanto, enorme, mas o estado de conservação da rota era lamentável.

Tropeiros na Serra do Ouro Branco, de acordo com gravura de Rugendas (³)
Eram as mulas, talvez, as maiores sofredoras com um tal sistema de transporte, e não só porque levavam as cargas no lombo. Há um relato feito pelo Príncipe Adalberto da Prússia, que viajou pelo Brasil em 1842 e que, é, a esse respeito, bastante revelador:
"A "estrada real" é aqui uma vereda, que sobe pela encosta da montanha, tão estreita que as tropas que encontrávamos se viam em não pequena dificuldade para se afastarem para o lado. Como o muar põe sempre a pata onde o da frente pisou, formam-se buracos de trinta até sessenta centímetros de profundidade no barro mole, verdadeiros depósitos de lama entre os quais fica sempre um pedaço de terra, por cima dos quais os animais só com muita dificuldade podem passar. Enfiam às vezes as patas dianteiras e as traseiras nesses buracos, encostando a barriga nos pedaços de terra que ficam entre eles e que se assemelham algo ao teclado de um piano, com o que se tornam um obstáculo quase insuperável. Em longos períodos de chuvas - e isto não faz parte aqui das raridades - os muares exaustos encontram muitas vezes a morte nestes terríveis caminhos, o que provam os muitos esqueletos destes animais que se encontram às suas margens, sendo este o motivo de os viajantes terem de prover-se de montadas de reserva." (⁴)
As tropas de muares, meus leitores, já há muito tempo deixaram de percorrer o Brasil, é verdade. Mas, de vez em quando, querendo alguém dizer que trabalha demais, afirma que "trabalha como um burro de carga". Triste reminiscência daqueles tempos, não?

(1) Consulte, para mais detalhes:
PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Vanorden, 1903, p. 19.
(2) Ibid., p. 262.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 122.


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