quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Escravos vendedores de caldo de cana

Se dependessem de mim, os quiosques e lanchonetes que vendem caldo de cana iriam à falência. Não gosto, não gosto mesmo. Mas é apenas uma questão de preferência, e o grande número de fregueses que pode ser visto ao redor dos vendedores, particularmente em dias de muito calor, demonstra que o caldo de cana tem uma multidão de apreciadores.
O que os felizes comerciantes certamente não sabem, ao venderem um copo de caldo de cana após outro, é que, no passado, esse trabalho era feito por escravos. Nas ruas do Rio de Janeiro, a capital do Império, ou de outras localidades, escravos vendiam doces, café, caldo de cana e uma série de outras coisas.
O lucro obtido com as vendas, em geral, não ficava para eles. Ia para as mãos de seus senhores, ainda que, uma vez ou outra, alguém pudesse até dar alguma pequenina "comissão" sobre as vendas a seu escravo, fato que em nada alterava a lógica escravista - o senhor continuava senhor, o escravo era uma mercadoria (podia ser comprado e/ou vendido), de cuja mão de obra o proprietário podia dispor como bem entendesse.
A ilustração ao lado (*), obra do pintor brasileiro Joaquim Lopes de Barros, data de 1840. Foi o próprio artista quem atribuiu o título: "Preto de caldo de cana".

(*) O original pertence à Biblioteca Nacional. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Os bandeirantes não sabiam geografia. Os eruditos também não!

Era 1736. No contexto das disputas entre portugueses e espanhóis sobre questões relacionadas aos limites de suas terras na América do Sul, Manuel Dias da Silva resolveu organizar uma expedição cujo objetivo era apoiar as pretensões da Coroa Lusitana. Havia, porém, um problema (entre muitos outros): Como atinar com o rumo correto a ser seguido?
Pode-se ler na Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme:
"Consistia também a dificuldade no temor de não acertar com o sítio de Camapuã por falta de geografia, cuja ciência totalmente ignorava, bem como todos os antigos paulistas, que sem outro adjutório mais do que o rumo do nascente ao poente, a que lhes servia de verdadeira agulha o sol, penetraram a maior parte dos incultos sertões da América, conquistando nações bárbaras, de cujos índios se serviam, como administradores seus, pelo benefício de os terem desentranhado do paganismo para o grêmio da Igreja." [sic!]
A revelação fundamental, aqui, nem é tanto o problema com que se deparava Manuel Dias da Silva. É, sim, que os antigos paulistas, ao correrem o interior do Brasil, não podiam contar com conhecimentos de geografia (sobre uma área que, aliás, ninguém conhecia mesmo), nem sabiam usar mapas ou instrumentos, como a bússola por exemplo. Pedro Taques não menciona, mas é verdade que os índios cativos eram, frequentemente, guias nas trilhas do sertão. Mas mesmo eles não podiam indicar caminhos para além dos terrenos que conheciam. O sol foi, depreende-se do texto citado, o guia principal de que dispunham os sertanistas a que chamamos bandeirantes, quando se tratava de achar o caminho em meio à vegetação cerrada e ao relevo desconhecido.
Acontece, meus leitores, que os bandeirantes de São Paulo não eram, nesses tempos, os únicos que desconheciam geografia. Mesmo gente de maior instrução, erudita, até, tinha severas dificuldades nessa área. Basta dar uma olhada nos mapas que então havia, ou correr os olhos por obras escritas por intelectuais da época. O mar de tolices escritas sobre o Brasil é tão vasto, que chega a ser difícil pinçar algumas "obras de arte", para gáudio de meus leitores. Mas vão a seguir algumas lorotas cabeludas, que farão sorrir quem estudou, direitinho, suas lições de Geografia. Para facilitar as coisas, as citações obedecem à ordem cronológica em que foram escritas.

a) Pero Vaz de Caminha, na "Carta do Descobrimento", datada de 1500, relatando ao rei D. Manuel a chegada da esquadra de Cabral ao Brasil:
"Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste ponto houvemos vista, será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa." (¹)

b) Pero de Magalhães Gândavo, afirmando, na segunda metade do século XVI, que os rios Paraguai e São Francisco provinham de um mesmo lago:
"Neste rio pela terra dentro se vem meter outro a que chamam Paraguai, que também procede do mesmo lago como o de São Francisco que atrás fica." (²)

c) O Padre Simão de Vasconcelos entendia que o Amazonas e o Rio da Prata uniam-se no sertão:
"O comprimento deste grão-gigante dos rios é de mil e trezentas, mil e seiscentas ou mil e oitocentas léguas, segundo cômputos vários dos que o navegaram. A distância por onde estende seus braços espaçosos, direito e esquerdo, soma passante de mil léguas, por relação das gentes que bebem suas águas, e assim deve ser de razão, para ser verdade o que dizem, que chegam no meio do sertão a dar-se as mãos estes dois rios do Pará e da Prata." (³)

d) Novamente o Padre Simão de Vasconcelos, tratando, desta vez, do rio São Francisco:
"É este rio um dos mais célebres do Brasil, o primogênito daqueles dois primeiros, e como marco terceiro do meio desta costa. Está em altura de 10 graus e um quarto. É copiosíssimo em águas, desemboca no mar, com duas léguas de largura, com tanta violência que bebem delas os mareantes em distância de quatro e cinco léguas antes de sua barra. Seu nascimento é daquela famosa lagoa feita das vertentes de águas das serranias do Chile e Peru, donde dissemos procediam os outros dois principais rios Grão-Pará e da Prata." (⁴)

Observação muito importante:

Quem não entendeu coisa alguma precisa, desesperadamente, ir estudar Geografia agora mesmo!

(1) A légua, de acordo com o padrão que fosse adotado, podia ter pouco mais de 5,5 km ou cerca de 6,1 km.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. 1576.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 32.
(4) Ibid. p. 49.


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domingo, 25 de novembro de 2012

Como se devia guardar o gado nos engenhos


Vegetação nativa do Brasil

A importância da construção de cercas fortes para reter o gado nas pastagens


Gabando a madeira fornecida por árvores que podiam ser encontradas no Brasil, Frei Vicente do Salvador observou que eram ótimas para a construção de casas, sem deixar de lado o fato de que cipós existentes nas matas tinham muita utilidade para atar o madeiramento de uma edificação. Curiosamente, assinalou também que as mesmas madeiras e cipós eram usados para a confecção das cercas que deviam proteger os canaviais, de modo que os bois que trabalhavam nos engenhos (¹) não invadissem as áreas cultivadas, causando assim dano à produção de cana destinada ao fabrico de açúcar:
Cipó, de acordo com Debret (³)
"São também as madeiras do Brasil mui acomodadas para os edifícios das casas por sua fortaleza, e com elas se acha juntamente a pregadura; porque ao pé das mesmas árvores nascem uns vimes mui rijos, chamados timbós e cipós [...], e com estes atam os caibros, ripas e toda a madeira das casas que houvera de ser pregada, no que se forra muito gasto de dinheiro, e principalmente nas grandes cercas que fazem aos pastos dos bois dos engenhos, para que são saiam a comer os canaviais de açúcar, e os achem no pasto quando os houverem mister para a moenda, as quais cercas se fazem de estacas e varas atadas com estes cipós." (²)
Vale relembrar aqui o fato de que não poucas desavenças que, no Período Colonial, redundaram em tragédias, começaram justamente por ter o gado de alguém invadido a lavoura de outro cultivador, daí a enorme importância de se fazerem boas cercas, para o que as madeiras e cipós mencionados por Frei Vicente do Salvador se prestavam muito bem.

(1) Veja as postagens da série "Carros de bois".
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 4

O uso de carros de bois no transporte do açúcar até os portos


Carro de bois, de acordo com Thomas Ender (¹)

Quando, em um engenho de cana, o açúcar estava pronto, era colocado em caixas e levado a um porto, de onde seguia para ser comercializado na Europa. De acordo com Antonil, havia dois modos possíveis para o transporte do açúcar até o porto, dependendo da localização do engenho produtor.

a) Engenhos localizados nas proximidades do mar

"Nos engenhos à beira-mar, levam-se as caixas ao porto desta sorte: Com rolos e espeques passam uma atrás de outra da casa da caixaria para uma carreta, feita para isso mesmo mais baixa, e sobre esta se leva cada caixa até o porto, puxando pelas cordas os negros de quem a manda embarcar por sua conta." (²)
Vê-se que, nesse caso, era aos escravos que competia o enorme esforço físico necessário ao deslocamento das carretas com caixas de açúcar. Eis um aspecto do trabalho dos escravos nos engenhos que poucos conhecem, que pouco se menciona, mas que estava em perfeito acordo com toda a brutalidade da escravidão que sustentava a produção açucareira.

b) Engenhos localizados a alguma distância do mar

"Dos engenhos pela terra dentro, vem cada caixa sobre um carro com três ou quatro juntas de bois, conforme as lamas que hão de vencer, e nisto custa caro o descuido, porque por não as trazerem no tempo do verão, depois no inverno estafam-se e matam-se os bois." (³)
Entram em cena, aqui, novamente, os carros de bois, que já haviam trabalhado em levar a cana até os engenhos, e que agora são empregados em fazer o açúcar chegar ao porto. Nota-se, na fala de Antonil, o quão dificultoso podia ser o trajeto, em decorrência das péssimas estradas e trilhas, daí porque, usualmente, evitava-se a instalação de engenhos em pontos muito distantes do litoral.

(1) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 93.
(3) Ibid.


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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 3

Bois que trabalhavam nos carros e nas engenhocas


Já há neste blog uma postagem sobre a diferença que havia, nos tempos coloniais, entre os chamados engenhos reais e as engenhocas. Como bem o expressou Antonil, "os reais ganharam este apelido por terem todas as partes de que se compõem e todas as oficinas perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos canaviais próprios, e outros obrigados à moenda, e principalmente por terem a realeza de moerem com água, à diferença de outros, que moem com cavalos e bois, e são menos providos e aparelhados, ou pelo menos com menor perfeição e largueza, das oficinas necessárias, e com pouco número de escravos para fazerem, como dizem, o engenho moente e corrente." (¹)
Por hora nos interessam apenas as engenhocas, também chamadas de trapiches, pelo fato de que empregavam animais na moenda, em lugar da roda d'água dos engenhos reais. Nelas, eram os bois (ou outros animais) que passavam horas intérminas a girar, girar, girar... para que se extraísse o caldo da cana, destinado à produção de açúcar e/ou de aguardente, sendo a última o que mais comumente se fazia nas engenhocas. Apenas máquinas de moer muito pequenas é que eram, eventualmente, movidas à força de escravos.
A ilustração abaixo, que apareceu em publicação holandesa no século XVII, mostra uma engenhoca em funcionamento, podendo ver-se nela o trabalho de bois:

Moenda de uma engenhoca funcionando com o trabalho de bois (²)

Assim, sendo necessário muito cuidado na escolha de bois para os carros, conforme se explicou na postagem anterior, era igualmente importante saber administrar os bois que trabalhariam nos engenhos:
"Se moendo com água e usando de barcos para a condução da cana, é necessário ter no engenho quatro ou cinco carros, com doze ou quatorze juntas de bois muito fortes, quantos haverá mister quem mói com bestas e bois, e tem cana própria, para se conduzir de longe à moenda? Advirta-se muito nisto, para se comprarem a tempo os bois, e tais quais são necessários, dando antes oito mil réis por um só boi manso e redondo, do que outro tanto por dois pequenos e magros, que não têm forças para aturarem no trabalho." (³)

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711 - proêmio.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Op. cit. pp. 45 e 46.


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domingo, 18 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 2

O transporte da cana-de-açúcar até os engenhos coloniais


Nos tempos coloniais os carros de bois tinham importância vital para a atividade econômica mais valorizada em boa parte do Brasil: a produção do açúcar de cana. Eram os bovinos que se empregavam em carros para fazer a cana ir da lavoura até os engenhos, de modo que Antonil recomendava aos senhores de engenho o máximo cuidado na seleção dos animais que se destinavam ao trabalho, já que não havia boas estradas e os caminhos, em dias chuvosos, podiam ser demasiadamente difíceis para os carros de bois:
"Conduzir a cana por terra em tempo de chuvas e lamas é querer matar muitos bois, particularmente se vieram de outra parte magros e fracos, estranhando o pasto novo e o trabalho. [...] Por isso os bois, que vêm do sertão cansados e maltratados no caminho, para bem não se hão de pôr no carro, senão depois de estarem pelo menos ano e meio no pasto novo, e de se acostumarem pouco a pouco ao trabalho mais leve, começando pelo tempo do verão, e não no do inverno; de outra sorte, sucederá ver o que se viu em um destes anos passados, em que morreram só em um engenho duzentos e onze bois, parte nas lamas, parte na moenda e parte no pasto. (¹) 

Carro de bois para transporte de açúcar, de acordo com Louis-Julien Jacottet (²)

Havia também a possibilidade de se realizar o transporte da cana em barcos, fosse porque as lavouras e o engenho estavam perto de um rio navegável, fosse porque o engenho, localizado à beira-mar, ensejava o uso da navegação marítima para que se fizesse chegar a cana até as moendas. Sim, isso era possível, mas, de qualquer modo, os carros de bois eram o meio mais frequentemente empregado, daí a prescrição de Antonil no sentido de se dar aos bois, que vinham do sertão, um tempo adequado para que se adaptassem ao trabalho. Curiosamente, jamais vi recomendação semelhante em relação aos escravos!

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 45. 
(2) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 1

O uso de carros de bois no Brasil


"O caminho barrento, pegajoso e úmido, cheio de sulcos de carro de boi, desprendia um cheiro de lama e estrume. Da estrada pelo morro acima o terreno era inculto, coberto de matapasto crescido, e sobre ele se viam bois agitando com o movimento inquieto das cabeças a sineta que traziam ao pescoço, bufando e catando insofridos a erva."
                                                                                                                                   Graça Aranha, Canaã
 
Carro de bois, de acordo com Debret (¹)

Durante muito tempo - séculos, na verdade - cargas de todos os tipos foram, no Brasil, transportadas em carros de bois. Isso, claro, quando havia algum caminho praticável, porque não havendo, era às costas de escravos, negros ou índios, que as cargas seguiam, fosse rumo ao interior (como no Caminho do Mar), fosse para algum porto, onde eram embarcadas em navios que para isso mesmo já lá estavam.
Vejamos um exemplo. Ao descrever Icó, no Ceará, o Padre Ayres de Casal, depois de relatar que produzia arroz, milho, feijão, melancias e melões, diz que, no entanto, farinha, açúcar e rapadura, bem como sal, provinham de outros lugares: "A farinha, açúcar e rapaduras vêm-lhe do Crato, o sal do Açu, tudo em carros." (²)
E, se tudo isso vinha em carros, lá vinham também os bois, que puxavam os carros... Afinal, de que outro modo seria?
Além disso, várias juntas de bois podiam ser usadas em um único carro, de modo a ampliar a capacidade de transporte de carga mesmo em terrenos difíceis. Ou, pelo andar lento e cadenciado dos bovinos, podia um carro ser usado para o transporte de passageiros, em particular para moças e senhoras que, antigamente, não eram incentivadas a exercitar habilidades atléticas.

Família de fazendeiro viajando em carro de bois, de acordo com Rugendas (³)

Não se imagine, porém, que carros de bois eram usados apenas em estradas, ou em algo que se parecesse com elas. Nas ruas das cidades e vilas também se podia ouvir o ruído característico das rodas dos carros.
O advento das ferrovias e, um pouco depois, dos automóveis, foi, aos poucos, lançando os carros de bois no desuso, pelo menos na maior parte do Brasil. Havia sempre, porém, quem preferisse carros de bois aos trens, conforme se depreende deste trechinho de Coelho Neto em A Bico de Pena:
"Quem viaja a cavalo ou em carro de bois sente um alegrão doido quando vê na estrada ao longe, outro cavaleiro ou quando ouve o rincho de outro carro de bois; e no trem? Se a gente vê vir, na mesma linha, outro comboio em sentido contrário, só tem uma coisa a fazer: é encomendar a alma ao Criador, porque está frito."

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 230.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 13 de novembro de 2012

O uso do urucum por indígenas do Brasil


Para as pinturas que usavam trazer sobre o corpo, os povos indígenas do Brasil costumavam servir-se de corantes de origem vegetal, sendo muito comum o uso do jenipapo e do urucum. É, provavelmente, deste último que falou Pero Vaz de Caminha, na sua famosa Carta, em que conta a D. Manuel sobre os acontecimentos relacionados à chegada dos portugueses ao Brasil em 1500. Escreveu ele, relativamente aos adornos usados pelos índios com os quais tiveram contato:
Urucum, de acordo com Debret (¹)
"Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos, que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam."
Mas tarde, na segunda metade do século XVII, quando a colonização já era um fato bem estabelecido, o Padre Simão de Vasconcelos observaria, ainda a propósito de como se ornamentavam os povos indígenas, salientando que havia dois tipos principais de enfeites:
"Também se enfeitam a seu modo de diversas maneiras. Uma é pintar-se todo o corpo de várias cores, comumente de preto, vermelho e amarelo, com sumo de frutas, jenipapo, urucum e outras. Outros se ornam de penas várias, de guarás, araras, canindés e outros pássaros mais lustrosos." (²)

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 140.


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domingo, 11 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 4

Religiosos que não se dedicavam aos estudos e/ou eram descuidados no cumprimento de seus deveres


Pode acreditar, leitor: nos tempos coloniais, os sermões atraíam multidões às igrejas. Pregadores famosos, com bela voz e alta técnica de oratória, capazes, com suas descrições espetaculares, de levar a imaginação dos ouvintes dos terrores do inferno às delícias do Paraíso, fazendo-os experimentar emoções que iam do mais profundo pavor ao júbilo dos bem-aventurados, eram extremamente populares, verdadeiras estrelas da época e, por isso mesmo, imitados por jovens candidatos à carreira religiosa. Estes últimos, no entanto, não escapavam à mordacidade de Gregório de Matos:

"Que haja pregador noviço,
que estude alheios sermões,
só para juntar dobrões,
porque os ajunta por isso:
que cuide muito remisso,
que poderá bem pregar
sem teologia estudar,
ou sem saber a oratória!
Boa história."
  
Sejamos, porém, razoáveis: não era para qualquer capela ou igreja de paróquia o ter um Padre Antônio Viera, não é verdade?
O governo português cobrava da população o pagamento dos dízimos, subentendendo-se, daí, que estava responsável por garantir a assistência religiosa a quem vivia na Colônia. Sabe-se, porém, que, em geral, vivia o povo na mais crassa ignorância, e até para ministrar os sacramentos era difícil, às vezes, encontrar um padre. Por outro lado, muitos desses religiosos não eram exatamente modelos em zelar por seus deveres. Há, nesse sentido, um ótimo episódio, relatado por Saint-Hilaire, ocorrido no início da segunda década do século XIX, no interior de Minas Gerais, quando esse naturalista francês estava de viagem a São Paulo, tendo se hospedado em casa de um pároco:
"Quando fui dar bons dias ao cura, contou-me que me esperava para dizer a missa. Apressei-me em me vestir e tomei o chapéu, imaginando que iríamos à igreja paroquial. Mas o cura disse-me que não sairíamos de casa, e efetivamente ali rezou a missa. Eu e os seus negros fomos os únicos ouvintes. Na Igreja brasileira não há o que possa causar espanto: está fora de todas as regras!" (*)

(*) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 49.


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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 3

O "Padre do Ouro"


"Porque está hoje o mundo (e principalmente este Estado do Brasil) em tais termos, que mais parecem alguns sacerdotes mercadores negociantes, que ministros de Deus e Curas de almas." (¹) Isso escreveu, no século XVIII, o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Estaria ele exagerando? Os fatos mostram que, infelizmente, não, até porque isso não era, necessariamente, coisa mal vista pela sociedade. Vai aqui uma amostrinha:
"O reverendo Simão de Toledo Rodovalho, foi por visitador das minas de Mato Grosso, vigário da Vara e da Igreja em 1768, em que tomou posse, e logo faleceu, antes de se aproveitar daquele muito rendoso ministério." (²)
Vejam os senhores leitores que isso é assim candidamente relatado, de forma tão clara e explícita, na famosa Nobiliarchia Paulistana. A intenção era elogiar!
Esse caso, no entanto, não gerava escândalo, já que o religioso estaria, apenas, cuidando dos ofícios de sua vocação. Mas havia religiosos que deixavam completamente as atribuições eclesiásticas para entrarem sertão adentro, atrás de ouro e de índios que, depois, eram vendidos como escravos. O mais célebre deles talvez tenha sido um conhecido como "Padre do Ouro". Vejamos:
"Isso não faziam os que temiam a Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida, que da que haviam de dar a Deus, e principalmente veio um clérigo a esta Capitania, a quem vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar de grande mineiro, e por esta arte era mui estimado de Duarte Coelho de Albuquerque, e o mandou ao sertão com trinta homens brancos e duzentos índios, que não quis ele mais, nem lhe eram necessários, porque em chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte e bem povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas ou folhas lançava para o ar, tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobres gentios, machos e fêmeas, tremendo de pés e mãos, e se acolhiam aos brancos, que o padre levava consigo; os quais não faziam mais que amarrá-los e levá-los aos barcos, e aqueles idos, outros vindos, sem que Duarte Coelho de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu tio e de seu irmão Jorge de Albuquerque, do Reino, querer nunca atalhar tão grande tirania, não sei se pelo que interessava nas peças, que se vendiam, se porque o Padre Mágico o tinha enfeitiçado [...]." (³)
Sim, alguns leitores devem ter franzido a testa, levantando objeções a esta história. Em respeito a esses leitores, cabem algumas considerações. Quem narrou o caso foi Frei Vicente do Salvador, ele próprio um religioso, daí afastar-se, de saída, a hipótese de uma indisposição do autor com o clero; por outro lado, é verdade que a época (século XVII) era de muita credulidade, e ninguém precisa crer hoje que, de fato, o tal padre tivesse o poder de provocar agitações no inferno; admitamos, no entanto, que pudesse usar de um artifício qualquer (lembram-se do Anhanguera, se é que foi ele mesmo que pôs fogo na cachaça?), e fiquemos com o essencial: fosse lá qual fosse o meio empregado, o péssimo homem servia-se dele para aprisionar os índios, que, desse modo, eram reduzidos à escravidão. Excelente religioso, este!
É evidente que, ao tomar ciência de fatos assim, autoridades faziam severas recomendações aos superiores das ordens religiosas, no sentido de impedir que seus subordinados escapulissem para as minas, onde, não raro, envolviam-se em agitações e revoltas populares. A experiência mostrava, porém, o quanto isso era difícil.
Quanto ao dito "Padre do Ouro", é ainda Frei Vicente do Salvador quem relata:
"E o Padre do Ouro também foi preso em um navio para o Reino, o qual arribou às ilhas, donde desapareceu uma noite sem mais se saber dele." (⁴)
 
(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 388.
(2) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana.
(3) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 2

 O voto de celibato nem sempre era respeitado


"Para o Cônego observante
todo o dia e toda a hora,
cuja carne é pecadora
das completas por diante"
(Gregório de Matos)


Tendo assumido um compromisso de celibato, muitos clérigos do Brasil Colonial passavam longe de suas obrigações; referindo-se à Cidade da Bahia (Salvador), pelos inícios do século XVIII, Varnhagen escreveu que "reinava na cidade certa libertinagem entre os próprios eclesiásticos." (¹)
Pois bem, há, a esse respeito, um relato no mínimo curioso que aparece no Compêndio Narrativo do Peregrino da América (obra de muito sucesso no século XVIII), que é útil, não só para exemplificar a questão, como também para dar uma ideia de como o descumprimento dos votos, por parte de religiosos, era visto na época. Teria ocorrido em Olinda:
"Nunca sucederia aquele tão lastimoso caso a certo eclesiástico desta América, há bem pouco tempo, se este fosse advertido de seus confessores e prelados. [...] Segundo uma carta, que ouvi ler, feita no ano de 1715, foi o caso na forma seguinte. Um sacerdote desta América estava publicamente concubinado com uma mulher, havia muitos anos, com grande escândalo de um povo inteiro, mas todos lhe dissimulavam esse pecado, ainda aqueles que o podiam emendar e repreender. Sucedeu, pois, que em uma noite, estando ele com a concubina em uma sacada das casas em que morava, para ver certo festejo que na rua se fazia, pegou o fogo em uns barris de pólvora, que estavam nas lojas das mesmas casas, e fez o incêndio voar o edifício, e do ar veio uma trave, que caiu sobre ambos, e os matou, ficando todos os mais, que junto deles estavam, livres do perigo. Notável caso [...] para exemplo de todos, e mui especialmente para os eclesiásticos, que sabendo o quanto devem ser espelhos da virtude, estão dando escândalo com o seu mau viver aos seculares." (²)
Em razão de casos como este é que o mesmo autor de O Peregrino da América, Nuno Marques Pereira, aconselhava às mulheres que viviam na Colônia:
"Fujam, quanto puderem, de ter trato ou familiaridade com pessoas eclesiásticas, porque suposto sejam comparadas com os anjos, tem sucedido muitas vezes, pelo caminho da virtude entrarem na estrada da maldade; e basta ter-lhes muito respeito de longe, porque também da terra se tem devoção com os anjos e santos do céu. Contentem-se com ouvi-los e vê-los nos altares, nos púlpitos e nos confessionários, que são os lugares em que os sacerdotes representam a Cristo. Vejam, que o demônio é como o ladrão: este furta nas estradas, aquele na ocasião." (³)

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 867.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 112 e 113.
(3) Ibid., p. 327.


Veja também:

domingo, 4 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 1

Causas da má fama de membros do clero colonial


Independente da opinião que se tenha sobre a catequese de indígenas no Brasil Colonial, não há como negar a dedicação de muitos religiosos que a empreenderam. Alguns chegaram a extremos, em se tratando de autossacrifício, para assegurar o que consideravam ser melhor para seus catecúmenos. Consta que, em alguns casos em que indígenas foram aprisionados para a escravidão, os catequistas imploraram para serem também levados, a fim de que seus recém-convertidos não se vissem sem amparo espiritual.
Assim, como severos cumpridores dos deveres que assumiam e, além disso, estudiosos da língua e costumes dos povos indígenas, alguns desses padres alcançaram notoriedade, a ponto de, sobre eles, ter a devoção popular feito nascer e prosperar uma série de lendas, glorificando suas virtudes e descrevendo fatos que eram considerados milagres.
Vale lembrar também que, quer nascidos no Reino, quer na própria Colônia, vários religiosos podem ser listados entre os que, no Brasil, contribuíram decisivamente para o aparecimento de uma literatura que poderia ser chamada "brasileira". De sermões eruditos a poesia, inclusive com conotação política, a produção literária de membros do clero foi significativa.
No entanto...
No entanto, no Brasil Colonial, a fama dos clérigos estava longe de ser das melhores. A pena nada moderada de Gregório de Matos escreveu:

"O Cura, a quem toca a cura
de curar esta cidade,
cheia a tem de enfermidade
tão moral, que não tem cura:
dizem, que a si só se cura
de uma natural sezão,
que lhe dá na ocasião
de ver as moças no eirado,
com que o Cura é o curado,
e as moças seu cura são."

Fato é que, havendo quem estivesse muito longe de zelar pelos votos que professara, a fama desses acabava contaminando a dos religiosos como um todo, embora, a crermos no que muitos autores da época registraram, não fosse pequeno o número dos clérigos que levavam a vida a escandalizar a população.
Por que isso acontecia?
Há várias razões, dentre as quais vale mencionar que muitos rapazes eram encaminhados para a vida eclesiástica não porque demonstravam vocação para ela, mas por decisão familiar. As famílias importantes economicamente entendiam que era indispensável ter, entre seus membros, um padre, porque isso, naqueles tempos, servia, antes de mais nada, para comprovação da chamada "limpeza de sangue". Seguia-se, pois, que um patriarca simplesmente determinava qual (ou quais) de seus filhos seria(m) sacerdote(s), e a questão se encerrava aí.
Além disso, se um jovem tinha interesse em prosseguir os estudos além do nível das "primeiras letras", seu único caminho talvez fosse ingressar em uma ordem religiosa, já que na Colônia não havia instituições superiores laicas de ensino. Ora, ter interesses acadêmicos não é sinônimo, de nenhum modo, de ter vocação religiosa, daí que, por esse caminho, muita gente seguia, por amor ao conhecimento, o rumo de um estilo de vida que não desejava e que jamais adotaria se tivesse outra opção.
Resta ainda dizer que não era nada fácil aos superiores das ordens religiosas o exercício de um controle eficaz sobre seus subordinados, face à vastidão das terras, virtualmente desconhecidas, do Brasil Colonial. Estava longe de ser coisa simples ter que supervisionar estabelecimentos distantes entre si centenas e até milhares de quilômetros, quando não havia estradas - nem boas e nem más - por onde se pudesse viajar. Se um monge escapulia e metia-se, digamos, a procurar ouro, a chance de encontrá-lo e chamá-lo de volta a seus deveres era ínfima, por mais que o governo português invocasse a ação das autoridades coloniais no sentido de impedir que "frades andarilhos" circulassem livremente pelas áreas mineradoras.


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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Como os tupinambás cortavam os cabelos, segundo Hans Staden

Os portugueses que vieram ao Brasil em 1500, na esquadra de Pedro Álvares Cabral, observaram que os indígenas tinham os cabelos devidamente cortados, conforme relatou Pero Vaz de Caminha:
"Todos andam rapados até por cima das orelhas, e assim mesmo de sobrancelhas e pestanas."
O tempo e o contato cada vez mais frequente entre colonizadores e povos indígenas acabaria revelando aos primeiros que havia muitos tipos de cortes diferentes para os cabelos, que constituíam verdadeira tradição tribal, praticada segundo costumes muito antigos.
Podem, no entanto, perguntar alguns de meus leitores, que talvez já tenham visto neste blog postagens relativas ao escambo entre portugueses e índios: Se os índios só começaram a usar tesouras ao trocá-las por mercadorias que forneciam aos portugueses, como é que podiam cortar tão bem os cabelos?

Corte de cabelos dos tupinambás, de acordo com Hans Staden (¹)

Hans Staden (²), que absolutamente contra a vontade permaneceu algum tempo entre os tupinambás, levantou a mesma questão (vale lembrar que esses tupinambás tinham por hábito um corte de cabelo que lembrava um pouco a tonsura dos frades). Foi-lhe explicado que uma concha de pedra servia de molde para o corte, enquanto que uma outra pedra cortante era usada para friccionar os cabelos até que se partissem. Já a coroa no alto da cabeça era conseguida também com uma pedra, usada para raspar os fios.
É certo, porém, que este método funcionava para os tupinambás. Outros povos empregavam técnicas diferentes, que eram parte de uma rica tradição que, em muitos casos, se perdeu, de modo que hoje pouco sabemos a respeito.

(1) Cf. STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.
(2) Ibid.


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