quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

O dote de casamento no Código de Hamurabi

O candidato a noivo devia pagar um dote ao pai da mulher com quem pretendia se casar


Dote de casamento era, na Mesopotâmia da Antiguidade, um valor pago por um homem ao pai da mulher com quem pretendia se casar. Não era, formalmente, a compra de uma esposa, mas um valor que deveria ser guardado pelo pai como garantia para a noiva se, por alguma razão, o casamento se dissolvesse - em caso de viuvez, por exemplo. Na vida real, no entanto, não era exatamente assim que as coisas aconteciam.
O Código de Hamurabi disciplinava essa prática, determinando que, se um homem pagasse o dote para se casar com uma moça, mas desistisse do casamento, não teria o direito de receber o valor pago de volta. No entanto, se fosse o quase sogro que desistisse de conceder a filha em casamento, depois que o dote fora pago, deveria devolver o valor em dobro. Hamurabi devia saber com que tipo de pessoas estava lidando.
O que ocorria quando a mulher, já casada, morria? Havia duas possibilidades:
a) Se não tivesse filhos, o dote ficava pertencendo a seu pai;
b) Se tivesse filhos, o Código dizia: "Se um homem se casar com uma mulher, e ela morrer depois de ter filhos, o dote dela será de seus filhos, não ficará em poder de seu pai."
Uma situação algo complexa ocorria quando um homem se encarregava de pagar o dote para que seus filhos do sexo masculino pudessem se casar, mas morria antes que o filho mais novo contratasse casamento, ficando, pela morte do pai, sem recursos para isso. O Código, então, determinava: "Se um homem [através de dote] escolher esposa para seus filhos, mas morrer antes que seu filho mais novo venha a se casar, então, quando dividirem a herança, os filhos destinarão uma parte como dote para seu irmão mais novo, para que ele possa ter uma esposa."
O dote de casamento foi um costume muito comum em diversas sociedades, e ainda é, em algumas, até hoje. No Brasil, durante muito tempo, vigorou o costume de que a noiva é que devia ter um dote para se casar. Em consequência, mulheres abastadas, que dispunham de um dote avantajado, eram muito cobiçadas para casamento, enquanto outras, com dote insignificante ou inexistente, tinham muita dificuldade em encontrar pretendente. É fácil imaginar os problemas sociais que daí decorriam. 


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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Paracatu

D. Maria I não é exatamente uma personagem de saudosa memória no Brasil, mas foi em seu reinado que se deu a criação oficial da Vila de Paracatu do Príncipe, que, não obstante, era centro de povoamento e extração aurífera há bastante tempo, e sobre a qual o Barão de Eschwege escreveu:
"O córrego Rico, que percorre a região, deu origem à vila. Com efeito, o ouro daquele córrego possuía um bom aspecto, embora fosse de baixo título. [...] A afluência de aventureiros foi tão grande, que o governo de Gomes Freire de Andrade (¹) se viu obrigado a dividir e distribuir o distrito em 1744. [...]." (²)
Quando a exploração aurífera já havia declinado, como, de fato, ocorreu em praticamente todo o Brasil do começo do Século XIX, o padre Ayres de Casal afirmou:
"Paracatu do Príncipe, vila medíocre e famosa, bem assentada em terreno levantado, plano e vistoso com ruas direitas e calçadas, uma igreja matriz dedicada a Santo Antônio da Manga, três ermidas de N. Senhora com as invocações da Abadia, Amparo e Rosário, outra de Santa Ana, e duas boas fontes. Tem aula régia de latim. [...] Tem decaído muito do seu primeiro esplendor [...]." (³)
A expressão "vila medíocre", aqui, deve ser entendida como "de tamanho médio". Algumas fotos, a seguir, darão uma ideia do que se pode ver em Paracatu, já que o cuidado com o patrimônio histórico tem levado, inclusive, à reconstrução daquilo que o desgaste provocado pela passagem do tempo havia feito desaparecer.

Igreja Matriz de Santo Antônio, uma relíquia do Século XVIII

Igreja de Sant'Ana - a original, do Século XVIII, foi demolida em 1935, e a atual,
uma reconstrução, está no mesmo lugar da anterior

Chafariz

(1) Nascido em 1685 e falecido em 1763, Gomes Freire de Andrade, o primeiro conde de Bobadela, exerceu o mais alto cargo da administração portuguesa no Brasil Colonial entre 1733 e 1763.
(2) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 50.
(3) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 389.


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sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Recife em 1630

Holandeses, tentados pelo açúcar do Brasil, chegaram a ocupar a Bahia em 1624, mas, depois de alguns meses, foram expulsos. Voltaram com mais força em 1630, desta vez em Pernambuco, onde, de escaramuça em escaramuça, foram ficando e, eventualmente, expandindo a área de controle. Sua expulsão definitiva - a chamada Capitulação do Campo - somente aconteceu em 26 de janeiro de 1654. 
Uma descrição feita por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (¹) dá uma ideia de como era Recife quando vieram os holandeses em 1630:
"Já quando os holandeses no ano de 1630 entraram em Pernambuco, era o Recife povoação, habitada comumente de alguns pescadores e gente marítima [sic], porque pelo desabrigado do porto de Olinda, e não haver para os navios ancoradouro muito capaz, se haviam passado para a povoação do Recife os armazéns para o recebimento dos açúcares e mais haveres da terra, e ali os vinham tomar os navios, ancorando no seu surgidouro e remanso do rio. [...]" (²) 
As questões geográficas e econômicas, portanto, foram decisivas para que, após a saída dos holandeses, Recife ganhasse importância cada vez maior. Pior para Olinda e para grande insatisfação dos senhores olindenses. Deste e de outros fatores acabaria resultando a chamada Guerra dos Mascates, entre os anos de 1710 e 1711. 

(1) 1695 - 1779. Nascido em Pernambuco, era franciscano.
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil, Primeira Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 401.


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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Prodígios associados à morte de Calígula

Calígula, imperador romano (⁵)
Calígula, imperador romano, foi assassinado em 24 de janeiro de 41 d.C. Os romanos da época afirmavam, conforme relatou Suetônio (¹), que vários prodígios (²) serviram de aviso desse acontecimento, dentre os quais:

  • Calígula havia mandado desmontar e levar a Roma a estátua de Zeus (³) que estava em Olímpia, e, quando os trabalhadores, em andaimes, realizavam a tarefa, a própria estátua deu uma gargalhada, os andaimes caíram e os trabalhadores fugiram de medo;
  • Ainda em Olímpia, apareceu, logo em seguida, um homem chamado Cássio, pretendendo sacrificar um touro a Zeus - como se sabe, foi outro, de mesmo nome, Cássio Quereia, quem liderou o grupo que apunhalou Calígula;
  • Um raio atingiu o Capitólio de Cápua nos idos de março, data que recordava a morte de Júlio César em 44 a.C.;
  • Sila, astrólogo a quem Calígula consultava, avisou-o de que morreria em breve;
  • Na véspera de ser assassinado, Calígula teria sonhado que estava no céu e que lá se encontrava com Júpiter (⁴), o qual, ao vê-lo, lhe dava um chute com o dedão do pé direito, arremessando-o de volta à terra. 
Com prodígios ou sem eles, Calígula era, àquela altura, odiado por quase todos em Roma (e fora dela). Não era preciso grande capacidade de adivinhação para saber que, a qualquer momento, sendo as coisas em Roma como eram, alguém acabaria com ele. E foi o que aconteceu. Calígula tinha, então, vinte e nove anos, e seu tempo como imperador não chegou a quatro anos, mas foi o bastante para que ninguém se esquecesse dele. Não eram boas, todavia, as recordações. 

(1) De vita Caesarum, Livro IV. 
(2) Um prodígio era um evento considerado sobrenatural ou profético de que algo importante deveria ocorrer. 
(3) Júpiter, para os romanos).
(4) Júlio César também teria sonhado que se encontrara com Júpiter, e que este lhe estendia a mão direita - bem diferente do sonho de Calígula, portanto. 
(5) Cf. HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Manifestação popular contra a escravidão em janeiro de 1888

Um incidente ocorrido no começo de 1888 ilustra bem o fato de que, no ano da abolição definitiva da escravidão no Brasil, a opinião popular, ao menos em áreas urbanas, era francamente favorável à libertação imediata dos cativos. Aconteceu em Campinas - SP,,em 23 de janeiro de 1888, poucos meses antes, portanto, da Lei Áurea (¹). 
Vamos aos fatos. Segundo afirmou Osório Duque-Estrada (²) em A Abolição, manifestantes se juntaram para hostilizar capitães do mato, que vinham trazendo escravos fugitivos. Lembrem-se, leitores, de que era assim desde os dias coloniais. Um escravo fugia, um capitão do mato ia procurá-lo. Acontece que um dos que participavam do protesto acabou preso, e foi aí que aquele que poderia ser apenas mais um incidente sem grande repercussão, ganhou notoriedade, em decorrência da ação popular. Nas palavras de Duque-Estrada:
"[...] Em desafronta, o povo cercou a cadeia, soltou o preso (³) e apedrejou a tropa. Esta reagiu e travaram-se tiroteios até às onze horas da noite, havendo grande número de feridos de um lado e de outro. [...]" (⁴)
A Abolição, portanto, não foi tão pacífica assim... Não houve nenhuma guerra para que ocorresse, é verdade, mas havendo ainda que defendia a escravidão com unhas e dentes, havia, também, quem se dispunha a acabar com ela, por bem ou por mal. Este não foi, é claro, o único incidente da espécie.
 
(1) 13 de maio de 1888.
(2) 1870 - 1827.
(3) A maioria das cadeias desse tempo não se notabilizava pela segurança.
(4) DUQUE-ESTRADA, Osório. A Abolição. Brasília: Ed. Senado Federal, 2005, p. 181.


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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Pragas de gafanhotos na Antiguidade

Nuvens de gafanhotos, com uma infinidade de espécimes, podem ser devastadoras. Chegam, pousam sobre tudo o que é verde e, quando tornam a voar para longe, nada fica por onde passaram. Os antigos gregos sabiam disso muito bem, e supunham que o deus Apolo é que os livrara em uma ocasião em que gafanhotos ameaçaram a Ática. Por esse motivo, haviam feito uma escultura de bronze que, segundo Pausânias (¹), seria obra de Fídias, na qual Apolo era retratado como "deus gafanhoto". Ainda em conformidade com o mesmo autor, os atenienses confirmavam que a expulsão dos gafanhotos fora obra de Apolo, ainda que não soubessem dizer como o fizera.
Pausânias declarou ter conhecimento de que, em três diferentes ocasiões, gafanhotos haviam se tornado uma ameaça na região do monte Sípilo (²), mas que, por três modos distintos, foram dispersados. Na primeira vez, um vendaval levou-os para longe; na segunda vez, um calor violento, depois de uma chuva, exterminou-os; na terceira vez, foram mortos por frio intenso e súbito que atingiu a região (³).
Uma coisa é certa: na Antiguidade, quando uma praga de gafanhotos atacava uma área e devastava os campos de cultivo, era bastante provável que muita gente acabasse morrendo de fome. Importações em larga escala eram difíceis, excedentes exportáveis nem sempre estavam disponíveis para quem desejava adquiri-los, meios de transporte eram lentos e a chegada de suprimentos vindos de longe podia acontecer tarde demais. E, se os campos não produziam, com que se havia de comprar mantimentos de outros lugares? Pequenos e frágeis, isoladamente, os gafanhotos, aos milhões, eram mesmo um terror, e não deve ser surpresa para ninguém que o súbito livramento da destruição que poderiam causar, fosse, entre os gregos politeístas, atribuído a um deus - Apolo, no caso.

(1) Escritor grego do Século II d.C.
(2) O monte Sípilo localiza-se na atual Turquia, em área que, na Antiguidade, era território da Lídia. 
(3) Cf. PAUSÂNIAS, Descrição da Grécia, Livro I.


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quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Comércio entre reduções indígenas na América do Sul

Mesmo quem não simpatiza com a catequese de indígenas por jesuítas na América do Sul durante os tempos coloniais irá conceder que os missionários tinham, em alto grau, a virtude da perseverança. E precisaram dela, mesmo, em seus esforços para convencer grupos indígenas ao abandono de seu modo de vida tradicional por outro, em tudo diferente daquilo que até então praticavam. Não foram poucos os padres que acabaram perdendo a vida. Mas isso não é tudo.
As reduções, que foram sendo estabelecidas principalmente em terras que hoje pertencem ao Paraguai, à Argentina e ao Brasil, logo se tornaram o alvo favorito de bandeiras de apresamento que capturavam indígenas para escravização. Isso aconteceu, entre outras razões, porque os moradores das reduções eram instruídos em ofícios mecânicos pelos padres e, portanto, quando capturados, eram vendidos por preço mais elevado. A caça aos indígenas chegou a ser tão severa que, em alguns casos, os missionários se viram na contingência de, liderando seus catecúmenos, empreender viagem penosa e com muitas perdas, para ir viver em lugares mais distantes, supostamente fora do alcance dos escravizadores. Aí as reduções recomeçavam, mas a sede por indígenas para trabalho compulsório não era exclusividade de bandeirantes paulistas. Também colonizadores de origem espanhola, sempre que podiam, tentavam fazer uso da mão de obra que os jesuítas insistiam em defender e catequizar.
A despeito de tantos contratempos, as missões - ou reduções, se preferirem, leitores - prosperaram. É curioso que padres, cuja formação religiosa não contemplava, geralmente, a agricultura, a criação de gado e os ofícios manuais (¹), tenham sido capazes de liderar o estabelecimento de povoações, o ensino de técnicas de cultivo e até a edificação de construções bastante sólidas, se levarmos em conta as condições que deviam enfrentar. Como uma redução nem sempre era capaz de produzir tudo o que precisava, a troca do excedente com outras reduções foi, segundo o cônego João Pedro Gay (²), uma prática comum entre elas:
"Nem todas as reduções recolhiam os mesmos frutos [...] ou por causa da adversidade das terras, ou porque os administradores se inclinavam mais para qualquer ramo de produção. Assim umas reduções abundavam em trigo, carneiros, vacas, cavalos, mulas, etc., e outras sobressaíam em colheitas de algodão, anil, cana-de-açúcar, mel de pau, cera, etc. Eles permutavam entre si os produtos (nos povos não existia o uso de vender por dinheiro) cedendo um povo as sobras de um artigo a outro povo que dele necessitava, e recebendo valor em qualquer outro produto de que carecia. [...]." (³)
Não poderia haver, mesmo, dinheiro nas trocas, porque sabe-se muito bem da escassez de moeda na América do Sul colonial, tanto em terras da Espanha quanto de Portugal. Mas, seguindo adiante com a questão do comércio nas reduções, verifica-se que o correr dos anos fez com que a aplicação ao trabalho e a já mencionada perseverança dos religiosos da Companhia de Jesus conduzissem a um grau de desenvolvimento econômico bastante razoável. À medida que avançavam os anos do Século XVIII, as trocas não mais restritas às reduções demonstram que a produção crescera tanto, a ponto de permitir a venda do excedente para um mercado mais amplo, o dos colonizadores em geral. Voltemos às palavras de João Pedro Gay:
"[...] O que sobrava do trabalho comum era levado por embarcações pertencentes aos jesuítas pelos rios aos mercados espanhóis no Rio da Prata, ou no Brasil, e o seu produto era empregado em pagar o tributo real e na compra de artigos europeus que se não podiam fabricar nas reduções. [...]." (⁴)
Já havia, então, quem questionasse o poderio jesuíta na América do Sul. Sugeria-se, até, que se planejava o estabelecimento de uma República, escapando ao controle dos monarcas ibéricos. Os conflitos de interesses que levaram à extinção da Companhia de Jesus na Europa e as querelas por fronteiras em terras sul-americanas, decorrentes da assinatura de tratados entre Portugal e Espanha, golpearam mortalmente as reduções e deram origem a um amontoado de lendas sobre o "tesouro jesuíta" que, se é que existiu, jamais foi encontrado. Até hoje há quem o procure.  

(1) Ainda que, entre eles, houvesse exceções.
(2) Autor do Século XIX, foi cônego em São Borja - RS.
(3) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, p. 187.
(4) Ibid., p. 225.


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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

De quem era o jumento?

Como Galba decidiu um caso difícil


Galba, imperador romano (¹)
Galba foi imperador romano, depois de Nero e antes de Oto, mas ficou pouquíssimo tempo no poder: de 8 de junho do ano 68 a 15 de janeiro do ano seguinte, data em que foi assassinado. 
Com tão poucos dias para governar, que teria ele feito de notável? Se devemos crer em Suetônio, uma de suas realizações foi determinar quem era o dono de um jumento, em uma (quase) espécie de justiça salomônica. Foi assim o incidente:
"Ao administrar a justiça em certo momento, no qual se discutia quem seria o verdadeiro proprietário de um jumento, Galba notou que era impossível extrair a verdade apenas com o depoimento de testemunhas. Então mandou que, tendo os olhos vendados, o jumento fosse levado até o lugar onde estava acostumado a beber água e que, lá, fosse deixado à vontade - o dono seria aquele a quem, depois disso, se encaminhasse, sem qualquer coerção." (²)
Era preciso, todavia, mais que julgar o direito de propriedade sobre um jumento para se manter no poder. O exército romano estava em rebelião, disposto a colocar à frente do império aquele que fosse mais conveniente ou que prometesse mais. Oto, sucessor de Galba, também ficou pouco tempo na liderança de Roma: suicidou-se em 16 de abril de 69. 

(1) CAVALIERI, Giovanni Battista. Romanorum Imperatorum effigies. Roma: Vincentium Accoltum, 1583, p. 7. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro VII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Condenados a degredo que enriqueceram no Brasil

A pena de degredo podia ter efeito favorável sobre os condenados que eram mandados ao Brasil


Entre as críticas que se fazem à colonização do Brasil há uma, muito frequente, segundo a qual o Reino se livrava de gente de maus hábitos, condenando-os a degredo na América do Sul. Portanto, afirmam alguns, os defeitos de hoje poderiam ser facilmente explicados por tão infausto povoamento.
Será, mesmo? Talvez a ideia seja surpreendente, mas houve quem, no começo do Século XVII, afirmasse que os condenados a cumprir pena de degredo no Brasil somente eram criminosos porque não tinham condições razoáveis de vida em Portugal, e que a mudança de ares foi, para eles, em extremo salutar: teriam mudado de vida e prosperado no Brasil. Pelo menos é que se se encontra nos Diálogos das Grandezas do Brasil (¹). Diz Alviano, no Diálogo Terceiro:
"[...] sabemos que o Brasil se povoou primeiramente por degredados e gente de mau viver [...]." (²)
Responde Brandônio (está dada a licença para o riso dos leitores):
"Nisso não há dúvida. Mas deveis de saber que esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no reino os faziam usar. E os filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra, despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimo termo, com se ajuntarem a isto o haver vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os quais se casaram nele, e se ligaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobre. [...]" (³) 
Ora, meus amigos leitores, embora seja verdade que houve degredados que se estabeleceram muito bem no Brasil e, por nenhum modo, quiseram voltar a Portugal após o cumprimento da penalidade, também é fato que nem todos eles eram pobres ou condenados por delitos decorrentes de uma existência miserável. Alguns, por exemplo, eram sentenciados por ações que hoje consideraríamos de natureza religiosa, e gente politicamente correta de nosso século não veria nelas qualquer irregularidade. Cabe notar, também, que nem todos os colonizadores eram gente punida com degredo. Muitos vieram por vontade própria, fosse pela sede de aventura, fosse pelo sonho de enriquecer nas novas terras encontradas na América. Finalmente, a suposição de nobreza de muitos colonizadores até parece coisa da Capitania de São Vicente, ainda que não fosse, porque o autor dos Diálogos, a que aqui nos reportamos, não tinha muito conhecimento quanto ao que sucedia nas terras mais ao sul. Depreende-se de seus escritos que foi um homem cuja vivência colonial esteve restrita às capitanias do Nordeste. 

(1) A autoria é atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 172.
(3) Ibid.


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quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Sebastianismo

D. Sebastião, jovem rei de Portugal (*)
D. Sebastião, jovem rei português, morreu na batalha de Alcácer-Quibir em 1878. Morreu? O corpo nunca foi encontrado, e justamente por isso, ainda no Século XVI nasceu o sebastianismo, uma espécie de movimento místico, supostamente profético, revestido com tintas da religião e verniz da política, que afirmava que o rei haveria de voltar e restaurar a grandeza de Portugal. Entenda-se: como D. Sebastião não deixou descendente, o trono português passou a seu tio-avô, o cardeal D. Henrique. Querelas palacianas vieram, e Portugal, em 1580, passou ao controle do rei da Espanha. Foi a chamada União Ibérica, que durou até 1640.
Ora, D. Sebastião jamais voltou, mas, séculos afora, houve quem ainda acreditasse nas lendas que surgiram com sua desaparição. E - espantoso!...- em fins do Século XIX, havia, ainda, quem parecia acreditar nisso, não em Portugal, mas no Brasil. Em Os Sertões, Euclides da Cunha transcreveu alguns versos que circulavam entre os sertanejos que seguiam o místico Antônio Conselheiro:
"Dom Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil 
E fazendo o casamento!"
[...]
"Visita nos vem fazer
Nosso rei D. Sebastião
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão!"
Euclides da Cunha, em nota de rodapé, explicou que "corrigiu" os versos, mas é fácil perceber quais deveriam ser as palavras originais. Mas de que é que falavam, afinal?
Antônio Conselheiro e sua gente faziam oposição à República há pouco proclamada no Brasil, por entenderem que tirara da religião o lugar que lhe competia, instituindo registro e casamento por autoridade civil. Ao deixar de ser Império, o Brasil deixara, também, de ter religião oficial, com todas as suas implicações, e isso descontentava os sertanejos de Canudos. Quanto a invocar D. Sebastião... Parece que alguma reminiscência ficou, dele, no imaginário popular, e aflorou nas ideias um tanto confusas de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro.
Depois de quase um ano de lutas intensas, o arraial de Canudos foi completamente destruído. Antônio Conselheiro morreu, bem como muitos dos sertanejos. Quanto aos sobreviventes feitos prisioneiros, foram tratados de modo brutal. Assim acabou, em 1897, o sebastianismo brasileiro. 

(*) Cf. BRITO, Frei Bernardo. Elogios dos Reis de Portugal com os Mais Verdadeiros Retratos que se Puderam Achar. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1603.


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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Lei de Sólon contra ofensas em lugares públicos

Sólon determinou que quem proferisse ofensas públicas seria multado


Uma discussão qualquer começa, por qualquer motivo, e não demora para que os envolvidos desfiem uma sequência de insultos recíprocos - pode acontecer a qualquer hora, quase em qualquer lugar do mundo, e acontecia também na Grécia de Drácon e de Sólon.
Drácon, draconianamente, instituíra pena de morte para quem insultasse alguém em público, punição severa demais, na opinião de Sólon, que tratou de modificar a lei. De acordo com Plutarco, pelas leis de Sólon, "se uma pessoa dirigisse insultos contra alguém em lugar público, fosse em um templo, tribunal ou diante de um magistrado, ou mesmo quando havia ajuntamento popular para presenciar jogos, aquele que dissera as palavras ofensivas deveria pagar três dracmas ao insultado e mais três ao tesouro público. [...]" (*).
Na opinião de Plutarco, essa lei de Sólon era demonstração de prudência. Os insultos não eram livremente tolerados, mas a punição levava em conta as fraquezas comuns à humanidade. Não fazia sentido ameaçar com a morte quando uma pena pecuniária talvez fosse mais eficaz como fator de dissuasão. 

(*) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.  


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sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Para garantir que Nero tivesse ouvintes

Nero, imperador romano, gostava de cantar em público


Nero (¹) 
Nero, o imperador romano, achava que era um grande cantor. E, como tal, supunha, também, que qualquer pessoa ficaria encantada por ouvi-lo, horas a fio, sem mesmo se dar conta da passagem do tempo. Na prática, contudo, era preciso forçar a permanência do público que ia ao teatro para ouvir as canções, não do imperador, mas daqueles que eram cantores de verdade. Direto ao assunto: as portas eram trancadas e muito bem vigiadas, para que ninguém ousasse sair por elas, afoitamente, tão logo os verdadeiros profissionais terminavam o canto, para não ter de suportar a tortura auditiva proveniente da voz imperial. Valiam, de acordo com Suetônio, até algumas estratégias pouco dignas para escapar:
"[...] Há quem afirme que durante o espetáculo, houve mulheres que deram à luz (²); alguns, já cansados de ter de ouvir e aplaudir, pularam o muro, enquanto outros fingiram que haviam morrido, para que fossem levados dali para o enterro." (³)
Enquanto isso, quase sempre com acompanhamento de um instrumento de cordas, Nero cantava, cantava, e era aplaudido. Ai se não fosse!

(1) Cf. HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 183. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Porque não tinham permissão para sair, em busca de lugar mais adequado e com a devida assistência de uma parteira.
(3) SUETÔNIO, De vita Caesarum, Livro VI. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Sobre mamões e mamoeiros

Mamão papaia

Mamoeiro, conforme
ilustração do Século XVII (¹) 
Quando alguém quer dizer que uma coisa é fácil de ser feita, afirma que é "como mamão com açúcar". Pois bem, nem mamão, nem açúcar, faltavam no Brasil Colonial.
Não é tarefa simples descrever uma fruta para alguém que não a viu ou provou. Comparações são inevitáveis, e podem ser mais ou menos felizes. Já tratei disso aqui no blog quando escrevi sobre o modo como europeus e americanos descreveram as jabuticabas. Mas, e quanto ao mamão papaia?
Há uma descrição muito interessante feita por Nieuhof, que esteve no chamado "Brasil holandês" entre 1640 e 1649 - Século XVII, portanto:
"Entre os vegetais que proliferam tanto nas Índias Ocidentais como nas Orientais, acha-se o que os japoneses e holandeses chamam papaia e os americanos apelidam mamoeiro e pinoguaçu; os nossos às vezes chamam árvore de melão dada a semelhança de seu fruto com o nosso melão. Há duas qualidades dessa árvore: macho e fêmea. Cresce e morre em curto espaço de tempo. Seu tronco é de tal forma esponjoso que se pode cortá-lo com a mesma facilidade com que se corta um talo de couve. [...]." (²) 
Mamoeiro
É preciso perdoar a Nieuhof certa confusão entre as várias espécies de mamão. O papaia (Carica papaya) é que é nativo do Continente Americano, mas há variedades de mamão originárias de outras regiões. Para dizer a verdade, não acho o sabor do mamão papaia nada semelhante ao de qualquer variedade de melão que eu conheça. Mas essa era a opinião de Nieuhof, e é necessário respeitá-la. 
Em seguida, Nieuhof passa a descrever as folhas do mamoeiro e mais algumas características dos frutos:
"[...] As folhas são grandes e largas e assemelham-se às da videira, desenvolvendo-se na ponta de longas hastes em torno do topo, onde protegem os frutos, que nascem agrupados. Estes, verdes, quando novos, tornam-se finalmente amarelos e têm o formato de uma pera; seu porte, entretanto, é o de um melão pequeno cuja polpa também lembra, tanto em cor como em paladar, quando maduros. Quando verde, coze-se com a carne a fim de dar-lhe certo gosto picante." (³) 
Não tenho muito a opinar sobre o uso de mamão verde com carne porque sou vegetariana, mas amigos me asseguraram que o "leite" de papaia ainda verde pode mesmo ser útil no preparo de carnes para churrasco. Estou certa, contudo, de que se pode fazer excelente doce com a polpa de mamões verdes, que ganharão um sabor maravilhoso se, além do açúcar de alta qualidade, receberem, durante o preparo, algumas folhas de figueira, exatamente do mesmo modo como os doces que se faziam em fogões a lenha em fazendas do Século XIX. O que me dizem, leitores?

(1) Cf. PISO (PIES), Willen et MARKGRAF Georg. Historia naturalis BrasiliaeAmsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) NIEUHOF, Joan. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos. São Paulo: Livraria Martins, s.d.,  p. 292.
(3) Ibid. 


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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Por que Jano tinha duas faces

Jano era um deus romano que conhecia o passado e o futuro


Contavam os antigos romanos que o deus Saturno fora expulso do céu por ninguém menos que Júpiter. Procurando um lugar em que pudesse se estabelecer, Saturno teria sido recebido com cordialidade na Itália, cujo rei, na ocasião, chamava-se Jano. 
Lendas são lendas! Mas era assim que os romanos explicavam a origem de muitos de seus conhecimentos agrícolas e de algumas leis que os regiam - teriam sido um presente de Saturno. A recompensa do deus peregrino, contudo, não ficou só nisso. O próprio rei Jano foi agraciado com um poder notável - ou seria um superpoder? - de conhecer o passado e prever o futuro. Essa era, portanto, a razão que fazia a gente romana da Antiguidade representar esse deus menor com duas faces, voltadas para direções opostas. 
Numa Pompílio, segundo dentre os reis lendários de Roma, teria, ao reformar o calendário, dado ao décimo primeiro mês o nome de janeiro, em honra do deus de duas faces. No nosso calendário a sequência dos meses é outra e, assim, o mês de Jano, janeiro, passou a ser o primeiro do ano. Em memória dessa lenda romana, recordemos que não é preciso um superpoder para conhecer o passado. Com estudo e pesquisa, é possível desvendar os mistérios de outros tempos. Já quanto ao futuro...


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