quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Casamentos em reduções jesuíticas na América do Sul

Indígenas que aceitavam a condição de catecúmenos e iam viver em reduções administradas por jesuítas na América do Sul eram levados a um modo de vida muito diferente daquele que haviam aprendido de seus ancestrais. Era assim, por exemplo, em relação aos costumes quanto ao casamento e ao estabelecimento de novos vínculos familiares. De acordo com o cônego João Pedro Gay, que estudou o assunto e escreveu sobre ele no Século XIX, em quase todos os casos competia aos padres a decisão quanto a quem se casaria com quem. Em seguida, em uma única data, as uniões eram formalizadas segundo as regras da Igreja: 
"Para celebrar os matrimônios parece que os jesuítas tinham tempo determinado, que era depois da Quaresma (¹). Então se mandava vir a lista dos moços e moças, viúvos e viúvas do povo em estado de casar, e os chamavam à porta da igreja. Indagavam deles se tinham tratado casamento, e aqueles que não tinham tratado, que eram todos ou quase todos, aí mesmo se lhes fazia escolher mulher, ou os padres mesmo as indicavam, e tratando logo de cumprir os pregões, os casavam todos em um dia, que pelo costume era o domingo antes da missa paroquial, para que se fizessem com maior solenidade. [...]." (²)
A partir daí, não era grande a mudança na vida dos recém-casados:
"[...] Os recém-casados passavam à jurisdição do seu chefe competente [...]; os homens trabalhavam do seu ofício se o tinham; se não, seguiam os trabalhos da comunidade (³), e as mulheres recebiam tarefas (⁴), e se ocupavam como as outras nos serviços da comunidade." (⁵). 
Não havia, portanto, muito espaço para devaneios românticos nesses casamentos. Era característica essencial da catequese jesuítica que os neófitos abandonassem todas as práticas que parecessem contrárias àquelas que os padres idealizavam para as comunidades em formação, daí a insistência no controle de todos os aspectos da vida. O casamento era apenas um deles, mas, nem de longe, o menos importante, particularmente quando a intenção era suprimir qualquer vestígio de poligamia.

(1) No tempo em que as reduções jesuíticas existiam, a Quaresma era celebrada com todo o rigor, e, portanto, expressões festivas ligadas a casamentos não eram toleradas. 
(2) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, pp. 211 e 212.
(3) Geralmente trabalho na agricultura.
(4) Fiar algodão, por exemplo.
(5). GAY, João Pedro. Op. cit., p. 212.


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quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Mercadores no Brasil Colonial

Esta postagem é para quem acha que só senhores de engenho é que enriqueciam no Brasil Colonial. Não, eles não eram os únicos endinheirados (¹). Mercadores, ligados de alguma forma à economia açucareira, também se saíam muito bem, com a vantagem de que, graças à atividade que exerciam, ainda conseguiam juntar dinheiro amoedado, coisa rara no Brasil da época.
Mas, indo direto ao assunto, havia, como regra geral, dois tipos principais de mercadores, os que compravam e vendiam em comércio internacional e os que abriam lojas nas povoações maiores. Disso sabemos pelo que se lê em Diálogos das Grandezas do Brasil (²), obra escrita no começo do Século XVII. Primeiro, vejamos o caso dos mercadores que faziam comércio em larga escala:
"Muitos homens têm adquirido grande quantidade de dinheiro amoedado e de fazenda no Brasil, posto que os que mais se avantajam nela são os mercadores que vêm do Reino para esse efeito, os quais comerciam por dois modos, de que um deles é que vêm de ida por vinda, e assim depois de venderem as suas mercadorias fazem o seu emprego em açúcares, algodões e ainda âmbar muito bom e gris, e se tornam para o Reino nas mesmas naus em que vieram ou noutras. [...]" (³)
Agora, o segundo tipo de mercadores, aqueles que se estabeleciam no Brasil para atender à procura por artigos de luxo entre a elite colonial:
"[...] O segundo modo de mercadores são os que estão assistentes na terra com loja aberta, colmadas de mercadorias de muito preço, como são toda sorte de louçaria, sedas riquíssimas, panos finíssimos, brocados maravilhosos, que tudo se gasta em grande cópia na terra, com deixar grande proveito aos mercadores que os vendem." (⁴) 
Talvez, prudentemente, devamos admitir algum exagero por parte do autor dos Diálogos, mas sabe-se que em Pernambuco e na Bahia a gente próspera fazia questão de ostentar a riqueza que tinha, sempre que havia oportunidade para isso. 
Além desses dois grupos principais, havia um terceiro grupo de mercadores, que fazia comércio em menor escala, tendo por costume a prática de preços elevadíssimos. As vendas ocorriam, não em lojas estabelecidas, mas indo o mercador aos lugares no interior em que houvesse gente interessada em comprar, e não é difícil imaginar a brusca mudança na rotina da casa-grande de um engenho quando um desses mascates fazia súbita aparição. Lê-se, ainda em Diálogos das Grandezas do Brasil:
"Há muitas pessoas que vivem somente como se fossem riquíssimas, comprando estas fazendas (⁵) aos mercadores assistentes nas vilas ou cidades, e tornando a vender pelos engenhos e fazendas (⁶) que estão dali distantes, ganhando muitas vezes nelas mais de cem por cento. [...]" (⁷) 
Portanto, se estavam dispostos a pagar, os senhores de engenho não tinham motivo para queixa quanto aos preços aberrantes praticados pelos mascates. Concordam, leitores?

(1) Ainda que dinheiro amoedado, mesmo, houvesse muito pouco em circulação, e, pelo que se lê no texto acima, é fácil deduzir pelo menos uma das razões para essa carência.
(2) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(3) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 170.
(4) Ibid. 
(5) Neste caso a expressão se refere a mercadorias em geral, e não a grandes extensões de terra.
(6) Propriedades agrícolas.
(7) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Op. cit., p. 171.


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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Quatro ventos

Vocês, leitores, já devem ter ouvido dizer, alguma vez, que alguém espalhou notícias (ou fofocas) "aos quatro ventos". Isso não quer dizer, apenas, que as notícias foram espalhadas com a velocidade do vento. A expressão, de fato, é recorrente em escritos da Antiguidade, quando se imaginava que o mundo fosse dividido em quatro regiões distintas e que, a cada uma delas, corresponderia um vento.
Plínio (¹), almirante romano e um dos maiores estudiosos da natureza na Antiguidade, afirmou: "Os antigos assinalavam a existência de quatro ventos ao todo, correspondentes aos quatro quadrantes do mundo [...]." (²)
Marujo experiente, Plínio devia saber muito bem como eram os ventos que ocorriam em seu tão conhecido "lago romano", o Mediterrâneo. Deve-se entender, portanto, que o próprio Plínio via a referência aos quatro ventos como uma expressão que designava a totalidade do mundo - o "mundo habitado", como então se dizia.

(1) 23 - 79 d.C. Trata-se, aqui, de Plínio, o Velho.
(2) Naturalis historia, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Proibição da pesca com timbó em época de desova de peixes no Século XVII

Mesmo em áreas em que a pesca é permitida no Brasil, há certa época do ano em que essa permissão é suspensa, para garantir a reprodução dos peixes. Em consequência, não são de todo incomuns as notícias de apreensão de material de pesca usado na hora errada por alguns teimosos. É medida correta, não há dúvida, e não apenas por preocupações ecológicas: prudentemente, e no interesse dos próprios pescadores, assegura-se que, mais adiante no ano, os peixes continuem a existir. 
Mas voltemos a 1626, para saber como a Câmara da vila de São Paulo lidava com a mesma questão. A ata é de 23 de maio, e nela encontramos este trecho muito interessante:
"[...] se ajuntaram em câmara os oficiais dela [...] e estando todos juntos puseram em prática as coisas do bem comum e pelo procurador foi dito que requeria a eles ditos oficiais mandassem por um quartel que nenhuma pessoa use de timbó (¹) nem ponha tresmalho (²) em tempo que o peixe sai a desovar, o que visto pelos ditos oficiais foi mandado que se pusesse quartel do acima dito, com pena de mil réis e dos tresmalhos perdidos [...]." (³)
A proclamação pública era necessária porque, nesse tempo, não havia jornal impresso à disposição de moradores e camaristas; os leitores que sabem quanto paulistas do Século XVII eram persistentes em ignorar as leis em vigor não terão dificuldade em compreender que a imposição de multa era indispensável para dar força ao mandado, particularmente naquela época em que dinheiro amoedado era muito raro no Brasil. O fato de ainda viverem hoje os descendentes dos peixes do Século XVII é prova de que a medida foi, em algum grau, obedecida. 

(1) De origem vegetal, o timbó era usado para deixar os peixes lentos e facilitar a pesca.
(2) Espécie de rede tripla usada na pesca. 
(3) O trecho citado da Ata da Câmara de São Paulo foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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