terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Por que jabutis eram considerados peixes no Brasil Colonial

Nos tempos coloniais, prescrições religiosas obrigavam à abstinência de carne em um número elevado de dias. Como as regras de jejum eram severamente observadas (ao menos nas aparências), era usual, havendo peixe, que esse servisse como alimento. Vegetais eram permitidos, mas, em muitos lugares, o principal alimento nos "dias de peixe" era a farinha de mandioca.
Contudo, em algumas áreas, uma saída engenhosa foi encontrada para contornar a regra da abstinência de carne. O jesuíta José de Moraes, que escreveu a História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará, publicada originalmente em 1759, explicou, citando um relato do padre Antônio Vieira (¹), também jesuíta:
"Nascem estes jabutis e vivem sempre na terra, sem nunca entrarem no mar, nem nos rios, e contudo estão julgados por peixe, e como tais se comem nos dias em que se proíbe a carne, por se ter averiguado que têm o sangue frio. [...]." (²)
De fato, jabutis são pecilotérmicos. Daí a se tornarem peixes, vai uma grande distância. Fundamentos de zoologia, porém, não estavam em questão, quando o assunto era burlar a abstinência de carne. Lamentável para os jabutis, é claro.

(1) Famoso por seus sermões, Vieira é conhecido dos estudantes brasileiros que têm contato com sua obra nas aulas de Literatura (espero que ainda seja assim!).
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 460.


Veja também:

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

O futebol dos marinheiros em 1906

O futebol tem passado por ser, em seus primeiros anos de prática no Brasil, um esporte principalmente de estrangeiros (quase sempre de origem britânica, que estavam no País para trabalhar), de alguns imigrantes e de jovens estudantes, gente de certa posição social. Como se sabe, toda regra que se preza tem exceção. Vai aqui uma, com um jogo de futebol disputado em 1906 entre praças da Marinha. As fotos apareceram na revista carioca O Malho em 22 de setembro daquele ano (*):

Foto 1


A legenda original dizia:
"Na ilha das Cobras, Rio de Janeiro: Jogo de foot-ball pelas adestradas praças do batalhão de infantaria de marinha, sob o comando do capitão de fragata Marques da Rocha, a cujos esforços se devem os grandes melhoramentos nas instalações e disciplina a essa luzida parte das forças de mar."

Foto 2


Também de acordo com a legenda publicada em O Malho:
"Foot-ball militar - As praças do corpo de infantaria de marinha, que fizeram a partida de foot-ball no quartel da Ilha das Cobras, despertando grande entusiasmo entre os convidados que assistiram à festa comemorativa ali realizada."
Observem, leitores, que o quinto marinheiro sentado, da esquerda para a direita, segura a bola de futebol usada no jogo.

A publicidade dada ao evento mostra que jogos de futebol dessa natureza eram, ainda, uma novidade. Aqueles dentre os leitores que tiverem conhecimento dos fatores que conduziram à chamada Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, não terão dificuldade em perceber que os rapazes que jogaram essa partida há mais de um século não vinham, provavelmente, da elite dominante, ao contrário do que ocorria em relação a uma parcela considerável da oficialidade da Marinha nesse tempo. Contudo, à medida que o futebol se popularizou no Brasil, alguns dos maiores atletas da modalidade, cujas proezas se mostraram capazes de arrastar multidões aos estádios, passaram a vir das camadas sociais inferiores. Neste caso, o esporte se revelou um caminho de ascensão.

(*) O MALHO, Ano V, nº 210, 22 de setembro de 1906. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Duas pontes do Século XIX

1. Ponte articulada na Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema (Iperó - SP)


Com partes metálicas e partes em madeira, esta ponte articulada foi feita na Inglaterra, de onde veio para ser instalada na Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema. Afirma-se que, como ela, só existe mais uma. 

Ponte articulada - Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema
Detalhe da ponte articulada, com partes metálicas e partes de madeira

2. Pontilhão da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro (Monte Alegre do Sul - SP)


Fabricada nos Estados Unidos pela Keystone Bridge Company (Pittsburgh - Pa), esta ponte data de 1887 e era parte da malha ferroviária da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Vê-se, pela foto, que trilhos e dormentes foram retirados, já que Companhia Mogiana deixou de existir.

Pontilhão da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro

Veja também:

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Blog História & Outras Histórias completa dez anos

Hoje História & Outras Histórias completa dez anos. Para oliveiras, carvalhos, águias, cisnes e tartarugas pode ser pouco, mas para um blog é bastante tempo.
Quero agradecer a todos os leitores, aos que divulgam o blog entre amigos, aos que indicam a leitura de postagens aos alunos e a todos os que fazem comentários e sugestões. Como sempre, palpites respeitosos são democraticamente bem-vindos.
Por quanto tempo História & outras Histórias ainda existirá? Não tenho a resposta, mas posso assegurar que, enquanto durar, cada texto será preparado com a máxima seriedade (mesmo quando os assuntos forem hilários, o que, como sabem, às vezes acontece). A ideia é oferecer leitura de qualidade e informação confiável com um toque de humor (este último ingrediente, quando possível).
E, já que hoje é 25 de dezembro, quero desejar a todos os leitores um Natal muito feliz, e que o Ano-Novo traga dias memoráveis, em que sonhos e projetos sejam concretizados. 
Agora, rumo aos onze anos. Amanhã, às oito, teremos nova postagem.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Cestaria indígena



Indígenas do Brasil foram (e são) notáveis na arte da cestaria. Não precisavam (precisam) de mais recursos que aqueles que podiam (podem) encontrar perto de onde viviam (vivem). Jean de Léry (¹), por exemplo, afirmou que palha de milho (²), além de outros materiais, era usada por indígenas que conheceu no Rio de Janeiro em meados do Século XVI, resultando em cestos de tamanhos variados e de aspecto delicado. 
Bernardo Guimarães, em Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais, coloca uma de suas personagens, a índia Jupira, envolvida com a arte da cestaria: "Jupira estava sentada à sombra de uma canjerana ainda nova, de folhagem mui viçosa e cerrada, que dava fresquíssima sombra. Estava tecendo um cabaz de palhas de buriti, enquanto sua mãe, índia algum tanto idosa, a alguns passos de distância moqueava um gordo e grande tiú." Façam disso um cenário, leitores, onde inserir o que se pode ver aqui: fotos de trabalhos em cestaria (³), feitos por povos indígenas do Brasil.

Trabalho em cestaria da etnia tukano

Trabalho em cestaria da etnia Kayapó

Trabalho em cestaria da etnia yanomami

(1) Protestante francês que em 1557 esteve na chamada França Antártica, fracassada tentativa francesa de colonização no Rio de Janeiro.
(2) Essa afirmação de Léry quanto ao emprego de palha oferece uma informação interessante em relação à polêmica que envolve a época a partir da qual passou a haver o conhecimento e cultivo de milho por indígenas do Brasil. 
(3) Todas as amostras de cestaria incluídas nesta postagem pertencem ao Memorial dos Povos Indígenas, que tem um acervo notável. Quando forem a Brasília, leitores, não deixem de visitar.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O que eles disseram sobre a História

Hoje, leitores, faremos uma rápida excursão pelo que alguns autores (historiadores ou não), disseram sobre a História. Faremos, também, breves reflexões sobre suas ideias. Espero que gostem e que compartilhem suas impressões.

1. Alexandre Herculano, no Século XIX, disse, na voz de uma de suas personagens: "Boa coisa é a história [...] quando nos recordamos do nosso passado, e não achamos lá para colher um único espinho de remorso!" (¹)
A recordação de que Herculano viveu no Século XIX não é mera informação. O tempo em que alguém vive é fator importante na visão que tem da História. Falava ele, é claro, da história no plano pessoal, mas pergunto: a diferença em relação à história nacional e/ou mundial será apenas uma questão de grau ou de abrangência?

2. Vamos agora a Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório - ou "uma abóbora" como lhe chamou Sêneca - e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois Césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o 'abóbora' de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo [...]."
Ora, "a volúvel história"... É fato que, de vez em quando, aparece alguém com uma visão completamente diferente de algum acontecimento, época ou personagem. Chama-se, a isso, revisionismo (está na moda). Deixando de lado a questão da serventia política das revisões da História, é preciso reconhecer que autores antigos, nos quais se baseia muito do que sabemos, escreviam, como é óbvio, segundo pontos de vista pessoais, e as pesquisas podem, eventualmente, demonstrar que nem tudo foi exatamente como disseram. Portanto, é prudente reconhecer que estudos podem revelar facetas insuspeitas do passado, que contribuem para enriquecer nosso conhecimento - até que mais se descubra. Isso não dispensa, contudo, o mais saudável ceticismo em relação às propostas revisionistas. Discernimento, conhecimento e bom senso são valiosos também neste caso.

3. Na Antiguidade, Políbio de Megalópolis escreveu: "Tanto quanto um animal sem olhos não tem serventia, a História sem verdade não passa de uma narrativa improdutiva." Quanto ao trabalho do historiador, disse: "Um historiador tem por obrigação relatar à posteridade tanto o que pode desonrar e trazer descrédito quanto o que pode enaltecer alguém." E mais: "Um historiador não deixa de ser mentiroso quando omite aquilo que de fato aconteceu." (²)
Deduz-se que, para Políbio, qualquer manipulação da História, independentemente do motivo, era má em si mesma. Olhando para a montanha de obras historiográficas que a humanidade tem produzido, talvez se possa concluir que suas ideias não tiveram tantos adeptos quanto seria desejável. Mas é possível a um historiador ser absolutamente imparcial? Será que o próprio Políbio, grego que era, mas apaixonado por Roma e suas realizações militares, chegou a ser tão isento quanto imaginava? Lembremo-nos, também, de que as palavras podem, com o correr do tempo, assumir significados que jamais foram intenção de seus autores.

4. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista que discorreu sobre as origens e desenvolvimento da catequese e dos conventos franciscanos no Brasil, afirmou:  "É a verdade alma da História, e é a clareza a vida desta alma, e é certo que virá a ser alma sem vida, História, ainda que com verdade, sem clareza." (³) 
Já dissecaram a citação, leitores? A princípio, pode parecer que, em essência, Jaboatão disse algo semelhante ao que escreveu Políbio, mas a ênfase é outra: não basta verdade, é preciso haver clareza. Como vocês sabem, isto requer o talento na escrita, a facilidade na expressão, habilidades que podem e devem ser aprendidas e cultivadas, não apenas por historiadores, é certo, mas por quem quer que se dirija ao público.

5. Vou terminar com uma citação do Visconde de Porto Seguro, Francisco A. de Varnhagen: 
"O historiador que esquadrinha os fatos e que, depois de os combinar e meditar sobre eles, os ajuíza com boa crítica e narra sem temor nem prevenção, não faz mais do que revelar ao vulgo verdades que ele naturalmente acabaria por avaliar do mesmo modo, sem os esforços do historiador, dentro de um ou dois séculos." (⁴) 
Nascem daí algumas questões:
  • Não ficariam os acontecimentos esquecidos, em um ou dois séculos, sem o trabalho do historiador?
  • O vulgo terá interesse pela História?
  • Não irá o futuro demonstrar, ao menos em alguns casos, que as coisas se passaram de modo muito diferente do avaliado por um historiador que vivenciou os acontecimentos?

A visão que um historiador tem da História determina, em grau muito elevado, as características de sua obra. Reflitam, leitores, e deem suas opiniões. Qualquer dia volto a este assunto.

(1) HERCULANO, Alexandre. Lendas e Narrativas vol. 1. Lisboa: Bertrand e Filhos, 1851, p. 46.
(2) POLÌBIO, HistóriaOs trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Primeira Parte, Volume II. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 18.
(4) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, pp. 1116 e 1117.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O jenipapo e seu uso por indígenas e colonizadores do Brasil

Jenipapo (Genipa americana)

O jenipapo (Genipa americana) era muito apreciado por indígenas do Brasil, em razão de sua utilidade nas pinturas corporais. Como se sabe, indígenas amavam os banhos frequentes, e as pinturas feitas com jenipapo, mesmo com tanta água, eram duráveis - uns dez a doze dias, segundo afirmou Jean de Léry em Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil. Já Pero de Magalhães Gândavo estimou que as pinturas duravam nove dias:
"[...] assim machos como fêmeas costumam tingir-se com o sumo de uma fruta que se chama jenipapo, que é verde quando se pisa e depois que se põe no corpo e se enxuga fica muito negro, e por muito que se lave não se tira senão aos nove dias: isto tudo fazem por galantaria." (¹)
Colonizadores logo descobriram que, além do uso indígena nas pinturas corporais, o jenipapo era bom, também, para conservas, e disso sabemos por informação de Gabriel Soares (²), que, interessado como era em tudo o que se referia à natureza do Brasil, deixou este interessante registro:
"Jenipapo é uma árvore que se dá ao longo do mar e pelo sertão [...]. A sua folha é como de castanheiro, a flor é branca, da qual lhe nasce muita fruta, de que toma cada ano muita quantidade, as quais são tamanhas como limas, e de sua feição; são de cor verdoenga, e como são maduras se fazem de cor pardaça e moles, e têm honesto sabor e muito que comer, com algumas pevides dentro, de que estas árvores nascem. Quando esta fruta é pequena, faz-se dela conserva, e como é grande antes de amadurecer tinge o sumo dela muito, com a qual tinta se tinge toda a nação do gentio em lavores pelo corpo, e quando põe esta tinta é branca como água, e como se enxuga se faz preta como azeviche; e quanto mais a lava, mais preta se faz, e dura nove dias, no cabo dos quais se vai tirando." (³)
Além disso, portugueses logo perceberam que a madeira do jenipapeiro podia ser utilizada com proveito para uma variedade de trabalhos, inclusive na arte náutica:
"[...] tratamos do jenipapo no tocante ao fruto, agora cabe tratar no tocante à madeira, cujas árvores são altas e de honesta grossura, têm a folha como castanheiro, a madeira é de cor branca como buxo, de que se fazem muitos e bons remos, que duram mais que os de faia; enquanto verdes são pesados, mas depois de secos são muito leves; esta madeira não fende nem estala, de que se faz também toda a sorte de poleame, por ser doce de lavrar, e cabos e cepos para toda ferramenta de toda sorte." (⁴)

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. O Tratado de Gândavo foi escrito por volta de 1570 e impresso pela primeira vez em 1826.
(2) Gabriel Soares de Sousa foi senhor de engenho na Bahia durante o Século XVI.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 185.
(4) Ibid., p. 218.


Veja também:

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Saturnália

O mês de dezembro era época de grandes festas em Roma, dentre as quais se destacava a Saturnália, porque nela, em honra do deus Saturno, os romanos se viam livres de muitas regras e convenções sociais. Embora tenha existido alguma variação quanto à data de início e à duração, essa festa começava geralmente no dia 17, prolongando-se por três dias, ao menos - muitos celebravam-na por toda uma semana. Diversões proibidas no restante do ano eram toleradas, a moralidade pública se afrouxava e grandes banquetes, com troca de presentes, eram realizados.
Não se deve esquecer que, apesar de tudo, a Saturnália era festa religiosa, com sacrifícios em honra de Saturno, pontualmente oferecidos. Afirmando-se, também, que o derramamento de sangue era agradável ao deus, faziam-se grandes espetáculos de gladiadores. O trabalho era posto de lado, a plebe delirava. Tentativas de encurtar os festejos nunca foram recebidas com satisfação.
César Augusto, que governou Roma entre 27 a.C. e 14 d.C., via em cada Saturnália a oportunidade perfeita para deslumbrar os romanos com os presentes que oferecia: moedas raras e antigas, vestuário de luxo, objetos de ouro e prata, conforme afirma Suetônio em De vita Caesarum. Mas, como a festa continha um lado burlesco, o imperador se divertia, presenteando, também, objetos de pouco valor, e até ridículos.
Afinal, a Saturnália acabava, e tudo voltava ao normal. A hierarquia social era restabelecida sem traumas, os escravos continuavam escravos, a elite desfrutava, como sempre, de muitos privilégios. Assim era Roma.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O que aconteceu ao "rei do Brasil"

Não só a Grande História tem episódios notáveis. Podem acreditar, leitores: a História miúda também os tem, com mais sabor e encanto (às vezes) e um acento de tragédia (também eventualmente). O caso de que trataremos hoje foi contado por Antônio de Santa Maria Jaboatão, que, mesmo não impondo data estrita ao acontecimento, fez menção dele no contexto do estabelecimento de povoações de colonizadores e do confronto com povos indígenas no Nordeste brasileiro. Refere-se a um curioso indivíduo, autoproclamado "rei do Brasil".
Chamava-se Sebastião de Pontes, era português e tinha dois engenhos na Bahia. Queria mais, e foi tratar do estabelecimento de um terceiro engenho, para o qual projetou contar com o trabalho de indígenas escravizados. "[...] fabricou o terceiro engenho", escreveu Jaboatão, "domesticando [sic] muitos dos naturais tapuias ao seu mando e serviço, fazendo-se na terra, sobre poderoso, insolente". (¹)
Os empreendimentos iam bem, tão bem que o sujeito começou, em suas gabolices, a se dizer rei das terras em que pisava. Podia ser apenas bazófia, mas, nesse tempo, mesmo uma brincadeira de tal espécie era perigosa (²). Não tardou para que o tagarela fosse denunciado e, por essa razão, conduzido ao Reino, onde o hospedaram na mais famosa das prisões, da qual não sairia senão após exalar o último suspiro. Continua o relato de Antônio de Santa Maria Jaboatão: "[...] foi acusado na Corte e entre os crimes que imputaram os ofendidos, foi nomearem-no por rei ou régulo do Brasil, pelo qual foi levado ao Reino e, do Limoeiro, sem se falar mais nele, depois de muitos anos foi levado à sepultura, com o custo só de um tostão [...]" (³). Final melancólico, sem dúvida, para o reizinho inconsequente.

(1) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil,  Primeira Parte, Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 94.
(2) Muito mais juízo que Sebastião de Pontes teve Amador Bueno, a quem, no Século XVII, tentaram fazer rei em São Paulo. Percebendo o problema em que poderia ser envolvido, recusou peremptoriamente a "aclamação".
(3) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Op. cit., p. 94.


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O cavalo de Júlio César

Animal de estimação é coisa que não se discute. Pode ser lindo, uma obra-prima da natureza, ou feio, disforme e antipático. Não importa: para o dono, é de estimação, e isso é tudo o que conta. Júlio César, ditador perpétuo em Roma, tinha um cavalo de estimação.
Os romanos, como se sabe, eram bastante supersticiosos, e o cavalo de César, que nascera em sua casa, fora agraciado pelos arúspices com o vaticínio de que aquele que o montasse conquistaria o mundo. Que aduladores eram esses arúspices! Conforme conta Suetônio (¹) em De vita Caesarum, a justificativa para o tal presságio é que o potro apresentava as patas mais parecidas com as mãos de um ser humano que com o casco de um cavalo. Acreditem se quiserem, leitores, deixo o caso a critério de vocês. Seja como for, ainda segundo Suetônio, César levou o assunto a sério e criou o cavalo, tratando-o com o máximo cuidado, e, para assegurar-se de que ninguém além dele próprio chegaria a montá-lo, cuidou, em pessoa, de seu adestramento.
Não ficou só nisso. Mandou fazer uma estátua do cavalo, que foi colocada diante do templo dedicado a Vênus Genetrix. A profecia dos arúspices, contudo, jamais se realizou. César, assassinado em 44 a.C., esteve muito longe de dominar o mundo, mesmo para os padrões daquilo que os romanos chamavam de "mundo habitado".  
Incitatus, o cavalo favorito de Calígula (²), talvez seja o equino mais famoso de Roma, mas, apesar de exageradamente mimado, não teve o privilégio de ser o primeiro a ter a honra de virar estátua. Se, quanto a este assunto, as informações de Suetônio forem corretas, Calígula (³) apenas imitou César.

(1) 69 - 141 d.C.
(2) Imperador entre 37 e 41 d.C., foi, como César, assassinado.
(3) Calígula era loucamente apaixonado por corridas de cavalos e bigas.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A tradição de nomear propriedades agrícolas em homenagem a santos

Observem estas duas fotos, leitores. O que elas têm em comum?


Quem percorre o Brasil logo percebe que muitas propriedades agrícolas têm nomes que remetem aos santos do calendário católico. O costume é antigo, e, para essa exibição de religiosidade popular, existe uma ótima explicação, dada por Raimundo José de Cunha Matos:
"No sertão cada fazendeiro tem um santo, seu advogado ou intercessor; e acontecendo estabelecer um sítio ou fazenda, põe-lhe às vezes o nome desse santo; e isso mesmo também se pratica em algumas ocasiões de compras de antigas propriedades, mudando os novos senhores os nomes com que as fazendas eram conhecidas até esse tempo." (¹)
Notem que Cunha Matos fez essa observação por volta de 1823, ou seja, pouco depois da Independência do Brasil. Como as fotos demonstram (²), quase duzentos anos mais tarde o costume ainda persiste, embora, evidentemente, nem toda propriedade agrícola seja nomeada sob o mesmo critério.

(1) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. XV.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Gente que não trabalhava para não perder a nobreza

Acontecia no Brasil Colonial, acontecia na América Espanhola: todo mundo que se dizia nobre, por ser, de fato, ou por se achar assim, fugia desesperadamente do trabalho, para não perder a (suposta) nobreza. A coisa era tão absurda, que havia quem preferisse passar fome, às escondidas, a assumir uma ocupação manual. As aparências valiam mais. 
Talvez os leitores considerem isso uma insanidade. Alguns testemunhos da época serão suficientes, espero, para convencê-los de quão autêntica era essa horrorosa situação. 
Primeiro, no Brasil, e, mais especificamente, em São Luís - MA. São palavras do padre Antônio Vieira, em carta dirigida ao provincial jesuíta, com data de 22 de maio de 1653: "Na portaria [do Colégio Jesuíta] não damos a esmola ordinária, porque não há nesta cidade pobres que peçam de porta em porta." (¹) Excelente, não? Vejam o que vem a seguir:
"[...] Para socorrermos no que pudéssemos às pobrezas ocultas, e lhes buscarmos algumas esmolas, pedimos ao pároco nos desse uma lista das pessoas necessitadas, mas não teve efeito esta diligência, porque mais fácil é padecerem a pobreza que confessá-la.
Contudo nos confessionários, à volta de outras fraquezas, se manifestam também estas, e por esta via socorremos algumas necessidades, em que tanto se acudiu aos corpos como às almas." (²)
Não se imagine que enxergar o trabalho como um aviltamento da dignidade dos homens livres foi fenômeno restrito aos tempos coloniais. Vejam o que disse um autor abolicionista, Frederico L. César Burlamaqui, em obra publicada durante o Período Regencial, em que ressaltou o papel do escravismo em levar a sociedade a olhar para o trabalho como uma humilhação:
"Entre nós um homem cessa de trabalhar logo que consegue comprar um ou dois escravos. Não somente os trabalhos são desprezados pelas classes abastadas, como mesmo o mais simples artista só exerce o seu ofício pelas mãos de seus escravos, se os possui. Não se pense que isto só tem lugar a respeito da raça livre [sic], nascida no país; tal é o contágio e a força do exemplo, que um europeu [...], fosse ele um malfeitor ou exercesse no seu país a mais ignóbil profissão, logo que possui escravos, crê imediatamente que trabalhando por suas mãos, vilipendia a sua nobreza, e teme o desprezo." (³)
Não há tempo para estarrecimento. Passemos à América espanhola.
O padre Antonio Ruiz de Montoya, fervoroso defensor dos povos indígenas, observou, em relação aos colonizadores qualificados em ofícios mecânicos que viviam no Paraguai no Século XVII:
"[...] Há oficiais de todos os ofícios mecânicos e deles usam, mas ninguém se diz oficial, por terem aprendido a profissão para usarem-na em casa, e, mesmo que um sapateiro faça sapatos publicamente, não quer ser considerado sapateiro, alegando que por inteligência própria alcançou essa habilidade, querendo com tal metafísica [sic], de um lado socorrer à necessidade, e, por outro, conservar a nobreza que herdou de seus antepassados, que toda foi gente nobre." (⁴)
Vejam, meus leitores, que Montoya tinha senso de humor. Vamos em frente, com o que disse Félix de Azara, espanhol que esteve na América do Sul entre 1789 e 1801, liderando uma comissão enviada para demarcar limites entre terras pertencentes a Portugal e à Espanha: 
"[...] o espírito cavalheiresco, que desdenha e mesmo despreza toda espécie de trabalho, a falta de instrução, a nulidade dos governadores e a inacreditável imperfeição dos instrumentos contribuem para tornar quase impossível toda espécie de melhora." (⁵)
Depois, o mesmo Azara ainda observaria, a respeito dos filhos de espanhóis que nasciam na América:
"Apenas são nascidos ditos espanhóis, são entregues a amas de leite [...], que cuidam deles ordinariamente até a idade de seis ou mais anos. Durante todo este tempo, o menino nada pode ver que mereça ser imitado. Agregue-se a isto um mau princípio recebido [...] com maior força que na Espanha, isto é, que a nobreza e a generosidade consistem em destruir e não em produzir alguma coisa; a repugnância ao trabalho, que é mais forte na América que em qualquer outro lugar, é maior nos meninos na situação mencionada. Convencidos de tais princípios [...], mesmo os filhos de um simples marinheiro desdenham toda espécie de trabalho e creem que se rebaixam em seguir a profissão de seus pais [...], e muitos não gostam do comércio, que consideram demasiado penoso. [...]" (⁶)
O escravismo colonial, e mesmo o posterior (no caso do Brasil), favoreceu o desprezo pelo trabalho. Isso é um fato. Suas consequências - um pouco de observação bastará - persistem, em parte, até hoje.

(1) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 329.
(2)  Ibid.
(3) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 24.
(4) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 91.
(6) Ibid., p. 275. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A abolição da pena de açoites para escravos no Brasil

"No poder de seus três primeiros senhores provara os mais duros castigos: experimentara por mais de uma vez as dolorosas solidões do tronco, e os tormentos do açoite no poste horrível, onde se amarra o padecente, a vítima, criminosa embora."
Joaquim Manuel de Macedo, As Vítimas-Algozes

Castigos físicos para escravos eram coisa rotineira no Brasil. Da palmatória ao chicote empunhado por feitores, valia quase tudo para assegurar a obediência e o trabalho por parte dos cativos. A brutalidade parecia não impressionar a quase ninguém. Afinal, eram escravos!...
Em fins do Século XVIII, o vice-rei D. Luís de Vasconcelos, talvez incomodado com a aplicação de castigos em público, fez criar no Rio de Janeiro o calabouço, lugar para onde senhores podiam mandar escravos que queriam ver castigados, mas longe de suas vistas. Pagava-se para isso, naturalmente.
É preciso recordar, todavia, que a legislação vigente no Brasil colonial (¹) admitia a pena de açoites, não somente para escravos, mas também para pessoas livres, de baixo estrato social. Já no Código Criminal do Império, adotado após a independência, açoites somente foram admitidos para escravos. Aliás, um detalhe curioso é que castigos físicos também eram tolerados para crianças, quando aplicados por pais ou professores. Assim rezava o Código no Título I, Capítulo II, Artigo 14:
"Será crime justificável, e não terá lugar a punição dele:
[...]
§ 6. Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos e os mestres a seus discípulos [...]."
Contraditório, não é? "Crime justificável"?!! O mesmo Código Criminal do Império, que não previa açoites como punição para crimes praticados por pessoas de condição livre, estipulava, relativamente aos cativos, no Título II, Capítulo I, Artigo 60:
"Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar.
O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cinquenta."
Contudo, à medida que, avançando o Século XIX, crescia a força do movimento abolicionista, também aumentava a pressão, dentro e fora do Brasil, pela extinção da bárbara penalidade de açoites,  Argumentava-se, é claro, pelo aspecto desmoralizante que tal prática acarretava à sociedade. Enfim, em 13 de outubro de 1886, a Câmara do Império votou e aprovou o fim do infame castigo (²). Isso significa que, desde então, nenhum juiz poderia sentenciar escravos a tal pena, mas não quer dizer que os castigos físicos desaparecessem do quotidiano onde o escravismo era ainda realidade, incluindo os latifúndios voltados à cafeicultura. Seria preciso esperar a abolição definitiva da escravatura, em maio de 1888, para que a prática cessasse por completo.

(1) As Ordenações do Reino, que vigoravam em Portugal e em seus domínios.
(2) A proibição fora sugerida pelo imperador. 


terça-feira, 26 de novembro de 2019

Animais na arena dos anfiteatros romanos

O cinema conseguiu imprimir no imaginário popular uma noção de suntuosidade em relação aos espetáculos realizados nos anfiteatros romanos. A verdade, porém, é que, ao lado do luxo e da ostentação, os espetáculos eram exibições do que poderia haver de pior na humanidade. 
O lugar em que ocorriam os combates era chamado arena, e não por acaso. É que arena, no latim, significa simplesmente areia, e era isso que se espalhava sobre o piso, entre um espetáculo e outro, para cobrir o sangue que fora derramado durante as lutas precedentes, sangue de homens e de animais, muitos animais.
Testemunhos dessas carnificinas não faltam, na palavra dos próprios romanos. Um deles, Plínio, o Velho, afirmou no Livro VIII de Naturalis historia"O primeiro elefante foi visto a lutar no circo [...] no ano 655 (¹) da fundação de Roma, e a primeira luta de um elefante contra touros aconteceu vinte anos mais tarde [...]. (²)" O mesmo Plínio mencionou, também no Livro VIII, exibições de luta simultânea entre leões, cem deles quando Sila, mais tarde ditador, exercia o cargo de pretor, seiscentos, sob as ordens de Pompeu, e quatrocentos, quando César era ditador. Vê-se que a ênfase parece estar na quantidade, mas é simplesmente impossível saber se esses números correspondem ao que, de fato, acontecia, ou se há algum exagero, ainda que não intencional. 
Posteriormente, quando o Coliseu foi inaugurado (³), as festividades  duraram nada menos que cem dias, e afirma-se que cerca de cinco mil animais selvagens foram mortos na arena, quer em lutas entre si, quer em combates contra gladiadores. Que diversão era essa, que fazia correr o sangue dos inocentes animais, além, é claro, de tantos homens compelidos a lutar entre si e contra as feras?
Estranho como possa parecer, era ideia corrente que esses espetáculos que incluíam a morte de tantos animais resultavam em benefício às terras de onde provinham, que ficavam despovoadas de feras ameaçadoras. Talvez, hoje, pouco ou nada saibamos, por experiência, da ameaça dos animais selvagens, mas também é evidente que a noção de equilíbrio ecológico, envolvendo todas as espécies de um dado ambiente, era pouco considerada na Antiguidade. Contudo, se a banalização da morte de homens e animais na arena dos anfiteatros tinha como fim entreter a população e canalizar a violência dos insatisfeitos para longe dos governantes, a quantidade de imperadores assassinados talvez seja uma evidência de que, neste caso, o efeito talvez fosse exatamente o contrário do desejado. 

(1) 99 a.C.
(2) O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) 80 d.C.


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Para que se cultivava mandioca no Século XIX

A técnica básica de cultivo da mandioca (Manihot esculenta) e da preparação, com ela, de farinha, que envolve certa complexidade, estava amplamente disseminada entre indígenas do Brasil, antes que europeus começassem a frequentar a região em fins do Século XV.  Um pouco mais tarde, colonizadores, a partir do contato com a população nativa, passaram a incluir a farinha de mandioca na alimentação, mesmo porque as tentativas de cultivo de trigo não resultaram em safras tão avantajadas que pudessem assegurar a autonomia da terra para se fazer pão e outros alimentos. Desde então, o sincretismo cultural resultou na descoberta de várias aplicações para a mandioca, de modo que, já no Século XIX, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o segundo barão de Paty do Alferes, escreveu: 
"É esta preciosa planta [a mandioca] uma das mais necessárias ao fazendeiro e a todos em geral; sua ótima farinha serve nas nossas mesas como um acessório indispensável e necessário; nas mesas de maior luxo aí aparece o seu pirão, os deliciosos bolos de sua tapioca e os saborosos mingaus e biscoitos de sua goma, que também lustra a cambraia e finíssimos morins de nossas camisas e dos vestidos de nossas damas." (*)
Da cozinha aos serviços de lavanderia: eis aí uma transição interessante quanto ao emprego da farinha de mandioca, que deixa entrever alguma coisa dos costumes relativos ao cuidado da roupa em fazendas do Século XIX, além dos hábitos de vestuário da elite rural. Por outro lado, a farinha de mandioca, enquanto durou a escravidão, foi amplamente empregada na alimentação dos cativos
Talvez nunca saibamos quem foram os primeiros que tiveram a ideia de empregar a planta tão comum na dieta indígena para algo mais que farinha, mas podemos estar certos de que, nesse aspecto, a necessidade de improvisar teve papel significativo, diante da ausência de artigos cujo uso era corrente no Reino.

(*) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 96.


terça-feira, 19 de novembro de 2019

O dia em que cinquenta mil pessoas foram vítimas em um anfiteatro romano

Em um só dia, nada menos que cinquenta mil pessoas morreram ou sofreram ferimentos em um anfiteatro romano, mas não suponham, leitores, que todos os mortos ou feridos fossem gladiadores. Eram parte do público que assistia a um espetáculo em um anfiteatro particular em Fidenas, que estava localizada bem perto de Roma. É melhor contar essa história desde o princípio.
Aconteceu no ano 27 d.C., quando Tibério era imperador. Um liberto (ou seja, um ex-escravo) chamado Atílio, decidiu construir por conta própria um anfiteatro, com a ideia de lucrar com ele o máximo possível. Não creio que seja difícil imaginar o quanto a construção foi precária e, devido ao número elevado de espectadores, o anfiteatro veio ao chão, soterrando não só os que estavam dentro, mas até quem se achava perto, porém do lado de fora. 
O resultado foi horrendo e, de acordo com Tácito (*), que registrou essa tragédia no Livro IV dos Annales, mais felizes foram os que morreram de imediato, porque muitos dilacerados, contudo ainda vivos entre os escombros, gritavam, desesperados, dia e noite, por socorro, aumentando a angústia dos parentes que haviam acorrido ao local à procura de sobreviventes. Estimou-se em cinquenta mil o número de mortos e feridos.
Esse episódio permite algumas considerações:
  • Romanos de todas as camadas sociais eram fanáticos por espetáculos de gladiadores, o que explica a quantidade de pessoas presentes no dia do desabamento;
  • Havia libertos que conseguiam acumular um patrimônio razoável, e Atílio, o dono do anfiteatro que caiu, é prova disso;
  • As técnicas de resgate em caso de acidentes e os recursos médicos, rudimentares como eram na Antiguidade, explicam, ao menos em parte, o número de mortos nessa ocasião.
Segundo Tácito, uma decisão posterior do Senado estipulou a quantia mínima que alguém deveria ter ao solicitar permissão para construir um anfiteatro. Assim os romanos estavam, é claro, colocando tranca em porta arrombada. Quanto a Atílio, o dono do anfiteatro que desabou - sim, ele sobreviveu! - também por decisão do Senado, foi punido com o exílio.

(*) c. 47 d.C. - 120 d.C.


Veja também:

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Como foi anunciada a chegada da família real ao Rio de Janeiro em 1808

Embarque do príncipe D. João para o Brasil, de acordo com Giuseppe Gianni (¹)

A família real portuguesa iniciou a incômoda viagem rumo ao Brasil no final de novembro de 1807. No ano seguinte, depois de uma breve estada na Bahia, a Corte móvel deslocou-se para o Rio de Janeiro, onde chegou no dia 8 de março.
De acordo com Joaquim Manuel de Macedo, uma embarcação foi enviada com antecedência, dando aviso para que fossem tomadas as providências indispensáveis: 
"Era vice-rei do Brasil o Conde dos Arcos, quando, a 14 de janeiro de 1808, entrou no porto do Rio de Janeiro o brigue de guerra Voador, trazendo a notícia da próxima chegada da família real portuguesa. O brigue fizera honra ao nome que lhe tinham dado: voara para dar aquela nova ao vice-rei, ainda a tempo de serem por ele tomadas algumas providências." (²)
Era muita gente que chegava, e, como se sabe, as medidas para prover acomodação decente não foram simpáticas à população do Rio de Janeiro (³). Apesar disso, e apesar das críticas (algo humorísticas) que se costuma fazer ao governo joanino, há que se reconhecer que a permanência da família real no Brasil por alguns anos teve aspectos bastante favoráveis, pela ruptura das velhas estruturas coloniais que, se não impediam por completo, ao menos dificultavam bastante o desenvolvimento do país. O Rio ganhou uma efervescência cultural inteiramente nova, cujos resultados se estenderam para além da Independência. A modernização, ainda que modesta, foi importante por dar ao Brasil, que logo seria nação livre, algumas instituições que, de outro modo, talvez demorassem a existir, incluindo os primeiros cursos superiores, biblioteca, teatro, academia militar, entre outras mais. 

(1) O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 39.
(3) Os até então felizes proprietários de bons imóveis não devem ter achado graça nenhuma em ter de sair de casa.


terça-feira, 12 de novembro de 2019

Extravagâncias nos triunfos de César

Caio Júlio César - sim, o do Primeiro Triunvirato - teve não um, nem dois, nem três e nem quatro, mas cinco triunfos, com pequenos intervalos. Quatro deles foram celebrados em 46 a.C., e o quinto, no ano seguinte, 45 a.C.
Ora, meus leitores, se o número de triunfos é exagerado, mostra, certamente, que, a despeito de todos os inimigos que angariou ao longo da vida, César foi um grande líder militar, ao menos sob o ponto de vista dos romanos. Os inimigos derrotados em combate talvez não tivessem dele uma ideia muito favorável. No entanto, o que mais impressiona são alguns detalhes desses triunfos, que conhecemos através da obra de Suetônio (¹), De vita Caesarum. Vejam só:
  • No triunfo em comemoração à vitória sobre os gauleses, César subiu ao Capitólio em companhia de nada menos que quarenta elefantes, tudo isso à luz de tochas (²); 
  • No triunfo em comemoração à vitória no Ponto (³), uma placa trazia as palavras "Veni, vidi, vici", que, de acordo com Suetônio, tinham por objetivo retratar a velocidade com que a guerra, um grande sucesso, fora feita;
  • Os triunfos foram também ocasião para prodigalidades, e quem é que poderia fugir à suspeita de que, com elas, César pretendia, literalmente, comprar o favor popular? Seus soldados das legiões veteranas receberam, cada um, vinte e cinco mil sestércios, além de terras para cultivo; quanto ao povo em geral, recebeu donativos em dinheiro, trigo e azeite, além da participação em um banquete público;
  • Houve ainda grande variedade de espetáculos, tais como lutas de gladiadores, peças teatrais, espetáculos de circo, uma batalha naval simulada e competições esportivas, e isso em vários pontos da cidade de Roma, para que todos os que quisessem assistir, tivessem oportunidade;
  • Com tanta fartura de comida e diversão, a cidade ficou abarrotada de gente, chegando a haver acampamentos nas ruas, feitos por aqueles que vinham de longe para participar dos festejos. Sucede, porém, que a Roma desse tempo tinha ruas diminutas para tanto movimento. A consequência, trágica para alguns, é que, com as multidões que se aglomeravam, houve gente que foi pisoteada e asfixiada. Entre os mortos, contaram-se até dois senadores.
Suetônio viveu muito tempo depois desses acontecimentos, e é possível que seu relato contenha algum exagero, devido à idealização dos "tempos de César", que romanos do Século II talvez fizessem. Contudo, de seu registro, depreende-se um fato inquestionável: a grandeza dos triunfos era um retrato da importância que os romanos atribuíam às conquistas militares, enquanto a prática de pão e circo, como política e como estilo de vida, ganhava força, para glória e desgraça do Império que, em poucos anos, iria se firmar.

(1) 69 - 141 d.C.
(2) Não havia lâmpadas de LED naquele tempo...
(3) Ponto era o nome dado na Antiguidade à região na costa sul do mar Negro.


quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Um lugar para o treinamento de ciclistas no final do Século XIX

"Ponho de lado igualmente as corridas de bicicletas e velocípedes, por serem recentes, o que não quer dizer que não tenham graça."
Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 29 de março de 1896

Em parte por influência estrangeira, em  fins do Século XIX crescia o interesse por esportes no Brasil. Havia controvérsias, no entanto, não faltando quem achasse que exercícios atléticos, qualquer que fosse a modalidade, não passavam de um modismo ou perda de tempo para desviar a juventude, e mesmo os de mais idade, de ocupações reputadas, então, mais nobres e cerebrais. O partido oposto se desdobrava em argumentos a favor dos esportes como promotores da saúde e do desenvolvimento físico, qualidades desejáveis em bons cidadãos para a República que o Brasil, há pouco, se tornara.
Com tal cenário, não é difícil imaginar que os apaixonados por algum esporte enfrentavam problemas para encontrar lugar adequado às suas atividades. Ciclistas, por exemplo: onde treinar, sem atrapalhar o trânsito ou colocar em risco a segurança dos pacatos caminhantes? Parece-me que, nesse tempo, a maioria das pessoas olhava para as bicyclettes, mais ou menos menos como nós olharíamos, hoje, na hipótese da aparição de alguma bike voadora...
De acordo com o jornal Semana Sportiva, na edição de 18 de novembro de 1899 (¹), ciclistas do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, que gostavam de pedalar na Praça da República, enfrentavam restrições quanto ao horário para suas práticas. Dizia o jornal: 
Na edição de 18 de novembro de 1899,
o jornal Semana Sportiva protestava
contra as restrições aos ciclistas (²)
"Ainda está vigorando o edital mandando que seja permitido o ingresso de ciclistas no jardim da praça da República somente das 11 horas da manhã às 4 da tarde.
Reconhecido o inconveniente dessa ordem, expedida em virtude de abusos cometidos por alguns ciclistas sem critério, estamos certos de que o ilustre diretor geral dos jardins públicos, Sr. Dr. Júlio Furtado, espírito culto e cordato como é, a revogará, pois é sabido que o parque da praça da República é hoje o único ponto do centro desta capital onde se pode fazer o salutar e higiênico exercício do pedal, tão preconizado e aceito em todo o mundo civilizado." (³)
Não era implicância a recusa do horário oferecido (ainda que, como já visto, o jornal reconhecesse que havia alguns ciclistas de comportamento inadequado). É que das 11 às 16 horas os atletas amadores estavam, com toda certeza, cada um em seu respectivo local de trabalho ou estudo, conforme a Semana Sportiva iria ainda lembrar: "A limitação, como está feita, equivale quase a uma interdição, pois das 11 às 4 horas só os desocupados poderão aproveitar-se da licença, e é considerável o número de cavalheiros distintos que usam a bicyclette e têm ocupações nesse interregno."
Observem, leitores, que as palavras do jornal mostram que bicicletas, nesse tempo, não eram ainda vistas como um meio de transporte, e, ao que parece, não passaria pela cabeça de quase ninguém a ideia de ir ao trabalho pedalando. O correr do tempo se encarregaria de trazer mudanças: hoje é sugerido o uso de bicicletas para desafogar o trânsito caótico gerado por automóveis nas cidades.

(1) Ano XI, nº 360.
(2) O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Essa afirmação é facilmente compreensível no contexto do Brasil que se desejava na época. Na prática, o recado seria este: se queremos ser civilizados, precisamos admitir as bicicletas. Está dada a licença para o riso, leitores!