Nas Repúblicas ocidentais o conceito da igualdade de todos os cidadãos diante da lei é visto como um dos pilares da democracia. Não se admitem, ou não deveriam ser admitidos, ao menos em teoria, quaisquer privilégios relacionados, por exemplo, à condição de nascimento de quem quer que seja. A atribuição de penalidade em caso de uma infração às leis não deve, também, estar relacionada à origem ou condição social do infrator. Não se reconhece, portanto, a existência de uma nobreza, camada social dotada de direitos superiores aos dos demais indivíduos. Mas nos antigos tempos das monarquias absolutistas as coisas eram explicitamente diferentes, com as desigualdades figurando de forma clara nas leis.
Vejamos o caso de Portugal. Como se justificava a diferença de tratamento atribuído à gente da nobreza e aos não-nobres?
Diz o Livro Segundo das Ordenações do Reino (¹), no Título 45:
"Como entre as pessoas de grande estado e dignidade e as outras é razão que se faça diferença, assim nas doações e privilégios concedidos às tais pessoas, costumaram os reis pôr mais exuberantes cláusulas, e de mais prerrogativas, para se mostrar a maior afeição e amor que lhes tinham."
Como se vê, o caso não carece de mais explicações. Vamos adiante, com algumas consequências práticas desse tratamento distinto.
Em caso de um réu da nobreza ser condenado à morte pela Casa da Suplicação, o mais importante tribunal do Reino, a sentença somente seria executada com o conhecimento e consentimento do rei, coisa que, em absoluto, não se concedia às "pessoas comuns":
"Porém, sendo o réu cavaleiro ou daí para cima, e condenado em morte natural, não se fará nele execução sem no-lo fazerem saber." (²)
No rito das audiências dos tribunais havia também prescrições relativas ao tratamento diferenciado de pessoas, conforme se vê no Livro Terceiro das Ordenações, Título 19, § 4:
"...Se na audiência estiverem pessoas religiosas, as ouvirá logo e despachará, para se logo irem, e então ouvirá as mulheres que aí estiverem, primeiro que ouça algum homem. E se alguns cavaleiros ou escudeiros, ou pessoas poderosas vierem à audiência, ouça-os, e lhes mande que se vão, e não lhes consinta que aí mais estejam [...]". Neste caso, no entanto, a providência era importante porque se pretendia evitar que as tais "pessoas poderosas" criassem tumulto nos tribunais, tentando impor pontos de vista pela força da posição social que ocupavam, como se vê no mesmo título e parágrafo: "...Se quiserem levantar palavras, defenda-lhes que não venham aí mais, e por seus procuradores requeiram seu direito nos casos em que procuradores o podem requerer."
Quando todos se iam, ouvia-se a gente do povo:
"E depois ouça os homens de menor qualidade, os quais virão um a um à vara com aquele acatamento que à Justiça é devido, e enquanto a ela estiverem, estarão sempre com o chapéu na mão, salvo se o julgador, por alguma causa ou qualidade de suas pessoas os mandar cobrir." (³)
Finalmente, resta acrescentar que, quando a Câmara de uma cidade ou vila lançava uma finta (⁴), havia uma lista enorme de pessoas que estavam dela isentas, o que, em última análise, significa que, para se atingir o valor necessário para cobrir o propósito da finta, todos os outros tinham que pagar mais:
"E as pessoas que são escusas de pagar na dita finta, quando assim for lançada, são as seguintes: os fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem, ou de criação de algum fidalgo [...], e assim mesmo os doutores, licenciados e bacharéis em Teologia, Cânones, Leis ou Medicina, que forem feitos por exame em estudo geral, e assim os juízes, vereadores, procurador do Conselho e tesoureiro no ano em que servirem [...]" (⁵)
Essa isenção não teria validade, porém, quando a finta tivesse por objetivo a efetivação de obras para defesa do lugar, como muros e fortalezas, ou ainda para construção de fontes, pontes e calçadas. A lei, podia, apesar de tudo, ser tida como generosa: ficavam também isentas das fintas "algumas pessoas que tão pobres sejam, que principalmente vivam por esmolas"...
(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Livro I, Título Primeiro, § 16.
(3) Livro Terceiro, Título 19, § 4.
(4) Imposto em forma de quota que se lançava para uma necessidade específica do lugar.
(5) Livro Primeiro, Título 66, § 42.
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