Bruzundanga, o país imaginário (ou nem tanto) do qual nos conta Lima Barreto, dava a seus presidentes o título de "Mandachuvas". Pois um Mandachuva era, quase sempre, um sujeito roceiro, mais preocupado com suas lavouras que integrado à cultura urbana da capital em que, como chefe de Estado e de Governo, devia viver. Assim é que um Mandachuva típico odiava deveres do ofício, tais como ir a concertos ou assistir a peças de teatro. Para ele, bom mesmo era o gramofone (que podia ouvir em casa) ou, quem sabe, ir ao cinema. Nada de peças cujo sentido não conseguia apreender: "As necessidades artísticas de sua natureza se cifram no gramofone doméstico e nos cinemas urbanos ou do arrabalde em que reside. Faz coleção dos programas destes últimos e, com eles, organiza a sua opulenta biblioteca literária." (¹)
Desnecessário é lembrar que, na crítica mordaz de Lima Barreto, retratava-se nada menos que o Brasil da República Velha. Mas seria inútil qualquer tentativa de ser convincente quanto às virtudes de uma representação teatral - ao vivo, por suposto - em oposição ao que, na época - se chamava de "cena muda". O nascente cinema caiu rapidamente no gosto da população brasileira e, com ele, vieram mudanças significativas no comportamento das pessoas.
Antes do cinema, o auge do luxo era a "última moda em Paris", que chegava ao Brasil com meses de atraso e, portanto, já não era a última de jeito nenhum. Agora, o padrão passava a ser o dos atores e atrizes dos Estados Unidos, e isso não apenas no vestuário, mas também nos penteados, nas maneiras, até nas estudadas expressões fisionômicas que o público adorava imitar. Bastava anunciar que esta ou aquela celebridade das telas usava o perfume X, o sabonete Y, o cigarro Z, este ou aquele cosmético, para que todo mundo que tivesse recursos para tanto, corresse a comprar tais coisas, na esperança de tornar-se mais parecido ou parecida com seu herói ou heroína do cinema. As atrizes apareciam de cabelos curtos? Então os cabeleireiros tinham serviço, não importando o quanto os novos cortes escandalizassem os mais conservadores. Valia a mesma regra para o vestuário ou para qualquer outra coisa que tivesse a mínima possibilidade de tornar alguém semelhante às novas estrelas cinematográficas.
Em vão a crítica censurou a mania de copiar costumes estrangeiros - de resto, isso sempre havia acontecido. Era evidente uma certa disposição para mudanças, o que acabou por refletir-se até na vida política (²). O fato é que, qual uma onda gigantesca, os novos ícones do capitalismo, propostos sutil mas persistentemente nos cinemas (ainda que não só neles), invadiram a vida de gente comum, nas ruas e nos lares, estabelecendo paradigmas substancialmente diversos dos que haviam imperado até então. Para bem e/ou para mau? Eis aí uma coisa que pode dar a você o que pensar, leitor.
Para se ter uma ideia de como as "novidades" eram percebidas nos anos vinte, sob uma perspectiva algo conservadora, veja abaixo dois cartuns de Belmonte, que apareceram na revista paulistana A Cigarra:
Cabelos e roupas curtíssimos, de evidente inspiração nos novos modelos propostos pelo cinema (³) |
Cabelos curtos para elas, nem tanto para eles... (⁴) |
(1) BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Os Bruzundangas.
(2) Cabe aqui uma consideração de não pouca importância. Era inevitável que a sociedade, assim predisposta a aceitar ou pelo menos a tolerar novos padrões de comportamento se tornasse mais questionadora, mais consciente de que direitos civis não deviam ser apenas um enfeite na Constituição e acabasse rumando para novas tendências políticas, que culminaram com a supressão da hegemonia cafeeira, que já durava várias décadas, até porque a grande crise econômica que afetou o mundo no final da década de vinte deu uma contribuição relevante para isso. Não por acaso, os anos vinte foram tempos de grande agitação, com uma sequência de revoltas militares (o "Tenentismo") ou a proposição de novos parâmetros culturais (a Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo). Por outro lado, não se pode esquecer que todas as mencionadas transformações, por razões bastante evidentes, afetavam muito mais os centros urbanos, do que a população do Brasil rural, que ainda predominava.
(3) A CIGARRA, nº 209, Ano 11, 1º de junho de 1923.
(4) Ibid., nº 240, Ano 13, 1º de novembro de 1924.
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