quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Infanticídios na Roma Antiga

Um indicativo do grau de civilização de um povo é o modo como trata aqueles, dentre a população, que são mais frágeis ou têm alguma deficiência, de modo a prestar-lhes a assistência necessária, oferecendo oportunidades de educação e desenvolvimento pessoal. Mas saibam, leitores, que nem sempre foi assim. 
Façamos um breve passeio pela Antiguidade greco-romana, mas antes, preparem os nervos. Em Esparta, todos sabem, um bebê, tão logo nascia, era apresentado pelo pai à Gerúsia (¹). Se fosse julgado saudável, ficava com os pais, que deveriam cuidar dele até que tivesse sete anos.  A partir dessa idade, toda criança era entregue aos cuidados do Estado, que lhe ministrava uma educação verdadeiramente espartana (e não vai aqui qualquer redundância). Contudo, se o bebê fosse frágil ou apresentasse alguma deficiência, deveria ser imediatamente jogado no abismo de Taigeto. 
Busto de menino romano desconhecido (⁴)
Isso assusta? Passemos a Roma. A Lei das Doze Tábuas (²) era peremptória: "Um bebê severamente deformado deve ser morto de imediato". Notem, meus leitores, que, neste caso, não havia crime em tirar a vida de uma criança - conservar vivo um bebê reputado pouco saudável é que seria desobediência à lei romana. E, se isso parece coisa de tempos incultos, vamos ao Século I, quando Sêneca, filósofo estoico e um dos sujeitos mais instruídos de seu tempo (³), escreveu, justificando o proceder de seus concidadãos: "Matamos cães raivosos e touros que não conseguimos domar, degolamos ovelhas doentes para que sua enfermidade não se espalhe por todo o rebanho, asfixiamos recém-nascidos deformados e afogamos crianças fracas e defeituosas, não por ira, mas racionalmente, para apartar o que pode trazer doença àquilo que é saudável" (⁵). Percebam, leitores, que, nesta passagem, Sêneca teve ainda o cuidado (não intencional) de revelar, para o futuro, a informação relativa aos métodos de infanticídio que eram usuais em seus dias. Tudo racionalmente, como ele mesmo frisou.
É de congelar o sangue. Pergunto, apenas, como é que cronologicamente tão perto de nós, ideias semelhantes ainda encontraram terreno fértil para germinar. Digo isso, porém, sem a mínima convicção de que ideologias análogas tenham desaparecido por completo.

(1) Um conselho composto pelos dois reis e por vinte e oito anciãos cujo mandato era vitalício.
(2) Foram escritas em 450 a.C.; antes disso, as leis de Roma eram conservadas em segredo pelos pontífices (!!!), resultando, portanto, em inúmeros abusos dos patrícios contra os plebeus. As leis originais se perderam, de modo que apenas se sabe delas aquilo que foi citado em obras literárias da Antiguidade.
(3) Nunca é demais lembrar que foi professor de Nero.
(4) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 235. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) De ira. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Quilombolas capturados eram marcados a ferro quente e tinham uma orelha cortada

Tempos sombrios no Brasil Colonial, em que imperou este bárbaro costume: ao escravo fugitivo que se unisse a um quilombo e fosse capturado era feita a marca de um F com ferro quente, e, se reincidisse, teria uma orelha cortada. E não se imagine que tais práticas decorressem da crueldade pura e simples dos senhores, já que eram autorizadas por um alvará régio datado de 3 de março de 1741. Para que não fique dúvida, vou transcrevê-lo na íntegra:
"Eu el-Rei faço saber aos que este alvará virem, que sendo-me presentes os insultos, que no Brasil cometem os escravos fugidos, a que vulgarmente chamam calhambolas (¹), passando a fazer o excesso de se juntarem em quilombos; e sendo preciso acudir com remédios que evitem esta desordem, hei por bem que todos os negros, que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F, que para este efeito haverá nas câmaras (²); e se quando se for executar esta pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha, tudo por simples mandado do juiz de fora, ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia." (³)
É possível que alguns leitores concluam que estas ordens horripilantes não passavam de ameaça, cujo efeito seria dissuadir, mesmo os mais corajosos entre os escravos, da ideia de fuga para algum quilombo. Mas não. Aconteceu dez anos depois que entrara em vigor a ordem para marcar a ferro quente e cortar uma orelha de quilombolas capturados: "[...] desempenhou tanto o conceito que se formava do seu valor e disciplina da guerra contra esta canalha [sic], que se recolheu vitorioso, apresentando 3.900 pares de orelhas [sic!!!] dos negros, que destruiu em quilombos, sem mais prêmio que a honra de ser ocupado no real serviço [...]." Está na Nobiliarchia Paulistana (⁴), em referência a Bartolomeu Bueno do Prado. A intenção era, evidentemente, elogiar.

(1) O escrivão de Sua Majestade talvez quisesse dizer "quilombolas".
(2) Referência às Câmaras Municipais.
(3) Cf. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1868, pp. 70 e 71.
(4) Escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme.


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quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Se você fosse um viking

Vindos do Norte, os vikings varreram as cidades litorâneas da Europa entre c. 790 d.C. e c. 1066 (¹), incendiando, pilhando e espalhando o pânico entre a população. Já se nota, pela data, que os ataques começaram quando Carlos Magno (²) ainda vivia, mas ganharam intensidade depois de sua morte, em decorrência do enfraquecimento e fragmentação do império que governara (³).
Existe alguma controvérsia quanto à causa da expansão viking, mas poucos duvidam de que, entre elas, pode ser mencionada a insuficiência de terras para cultivo, aliada aos poucos meses favoráveis à agricultura em sua Escandinávia natal. Isto, porém, não explica por que as viagens seguidas de invasões não ocorreram antes.
Lâmina de um machado viking (⁴)
Tente imaginar, leitor, como seria sua vida se você fosse um viking. Para ajudar, vão aqui algumas informações:
  • Você provavelmente moraria em uma casa muito simples, que, para evitar a perda de calor, não teria janelas, mas apenas algumas frestas para a entrada e saída do ar, além de uma porta;
  • A lavoura e a criação de gado ocupariam grande parte do tempo ao ar livre durante os meses em que o frio não fosse muito intenso;
  • Você passaria os meses menos frios ocupado, também, em estocar alimentos e lenha para o inverno;
  • Devido às condições restritivas de prática da agricultura, a caça seria um recurso importante para suplementar a alimentação;
  • O alimento seria cozido em um fogão cavado no chão de sua casa, de modo que haveria muita fumaça no ambiente;
  • As condições climáticas na Escandinávia favoreceriam o uso de roupas quentes, com predomínio do uso de peles e lã, embora o emprego de linho, como complemento ao vestuário, não fosse desconhecido;
  • Para que roupas de lã fossem confeccionadas, seria preciso que alguém na casa (você ou outra pessoa de sua família) fosse hábil no uso do tear (será útil, portanto, esclarecer que, entre os vikings, tecer e costurar eram tarefas reservadas às mulheres);
  • Tudo aquilo de que precisasse e não fosse produzido por sua própria família poderia vir de um mercado ou feira em alguma das cidades vikings, nas quais artesãos ofereciam seus serviços e produtos aos interessados (⁵);
  • O ataque a povoações ao sul da Escandinávia seria uma fonte importante de riquezas e, se você fosse um viking do sexo masculino, teria muito interesse em participar de uma dessas expedições;
  • Se, no entanto, você fosse uma mulher, deveria, durante a ausência dos envolvidos nas expedições de invasão e comércio, cuidar não apenas dos afazeres rotineiros de manutenção da casa e da família, como também comandar as tarefas locais que, de hábito, eram feitas pelos homens (⁶).
Então, que lhe parece, leitor? Era divertido ser um viking? A realidade não soa exatamente como na fantasias populares, concorda?

(1) A derrota dos vikings na batalha de Stamford Bridge, em 25 de setembro de 1066, é tradicionalmente apontada como um marco na decadência de sua capacidade bélica; entretanto, a aceitação dessa data não descarta a ocorrência de ataques menores posteriormente.
(2) 742 - 814.
(3) O sucessor de Carlos Magno foi Luís, conhecido como "o Piedoso", cujos filhos, estando este ainda vivo, iniciaram uma disputa acirrada pelo poder. Mais tarde, a assinatura do Tratado de Verdun (843 d.C.) sacramentou a fragmentação do império que Carlos Magno tentara construir.
(4) ANDERSON, Joseph. Scotland in Pagan Times. Edinburgh: David Douglas, 1883, p. 97. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) Apesar de frequentemente associados a atitudes truculentas, os vikings eram ótimos comerciantes e tinham rotas para troca de mercadorias que alcançavam longas distâncias, indo muito além das terras que originalmente habitavam.
(6) Separadas das mulheres vikings por uma distância enorme tanto no tempo quanto no espaço, mulheres paulistas dos tempos coloniais viviam situação parecida quando os homens se juntavam às bandeiras que iam ao sertão para capturar indígenas e procurar metais preciosos. 


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terça-feira, 20 de novembro de 2018

Como indígenas obtinham sal

Gabriel Soares foi senhor de engenho na Bahia, e é razoável supor que tinha grande interesse na prosperidade de seu empreendimento. Porém, em oposição a muitos colonizadores, cujo único objetivo era enriquecer tão rápido quanto possível, deve ter dedicado muito tempo em aprender tudo o que podia sobre o Brasil: relevo, hidrografia, vegetação, fauna... Ao que parece, tinha verdadeira sede de conhecimento. Como informações em primeira mão vinham, não raro, da população ameríndia, travou contato com ela. Por isso, ao escrever o Tratado Descritivo do Brasil em 1587 teve muito a dizer, não somente sobre o território colonial, mas também sobre seus habitantes. Chega a ser surpreendente a quantidade de detalhes nas informações que, graças a seu livro, chegaram até nós. Comparando-as aos escritos de outros autores quinhentistas, como Anchieta e Pero de Magalhães Gândavo, é possível esboçar um panorama do Brasil na época, e, malgrado eventuais erros ou exagerada credulidade desses escritores, devemos muito a eles. Provenientes de culturas ágrafas, povos indígenas mencionados pelos autores coloniais não deixaram suas próprias informações escritas, para que pudéssemos estudar.
Há quem pense que todos os povos indígenas do Brasil desconheciam o uso de sal na alimentação. Ora, meus leitores, o testemunho de Gabriel Soares mostra que tal ideia não corresponde à realidade. Embora grupos que viviam nas florestas interiores de fato não empregassem sal no preparo de alimentos, alguns, especialmente os que viviam perto do litoral, sabiam como obtê-lo, de diferentes fontes e por diferentes processos. É o que veremos agora.

Sal para os indígenas de Cabo Frio


De acordo com Gabriel Soares, tudo o que os indígenas da região de Cabo Frio precisavam fazer para obter sal era esperar a ocasião certa a cada ano:
"Por esta baía entra a maré muito pela terra adentro, que é muito baixa, onde de 20 de janeiro até todo o fevereiro se coalha a água muito depressa, e sem haver marinhas tiram os índios o sal coalhado e duro, muito alvo, às mãos-cheias, de debaixo da água [...]." (¹)

Como os tapuias da Bahia salgavam os alimentos


Tapuias eram chamados os indígenas que não falavam tupi, e que, como regra geral, não viviam junto à faixa litorânea. Por essa razão, os tapuias do sertão da Bahia, segundo informação de Gabriel Soares, desenvolveram um método algo complexo para salgar os alimentos:
"Costumam estes tapuias, para fazerem sal, queimarem uma serra de salitre, que está entre eles, de onde tomam aquela cinza, e a terra queimada, lançam-na na água do rio em vasilhas, a qual logo fica salgada, e põem-na ao fogo onde a cozem [...] até que se coalha, e fica feito o sal em um pão, e com este temperam seus manjares [...]." (²)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 81.
(2) Ibid., p. 353.


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

A Lei das Doze Tábuas

Os plebeus de Roma que viveram antes de 450 a.C. tinham um sério problema: precisavam, como todo mundo, obedecer às leis, mas nem mesmo sabiam que leis eram essas. Isso acontecia porque o patriciado, a pretexto de pias intenções religiosas, mas tencionando conservar para si todo o poder na cidade, havia resolvido que as leis eram um segredo que devia ser guardado pelos pontífices. Assim, uma pessoa podia ser acusada e punida por um delito que sequer sabia ser crime. Tal situação provou-se insustentável, de modo que, finalmente, as leis foram compiladas (¹) e passaram a ser de conhecimento público. De acordo com Tito Lívio (²), foram escritas em dez tábuas, às quais, posteriormente, foram anexadas outras duas, por se verificar que faltavam algumas leis. O conjunto da obra recebeu o nome de Lei das Doze Tábuas (³), porque foi exatamente assim que as normas foram afixadas no Fórum Romano. 
Infelizmente, o texto original da Lei das Doze Tábuas foi perdido, e o que hoje sabemos dela vem das citações em outros documentos e obras de autores da Antiguidade. É o suficiente, porém, para que se tenha a certeza de que, perto dela, leis severas como as do Código de Hamurabi pareceriam um enunciado humanitário. Vejamos, então, algumas amostras:
  • Aquele que fizer ou cantar uma música para insultar alguém deverá ser espancado até que morra.
  • Os frutos de uma árvore que venham a cair na propriedade de um vizinho podem ser recolhidos pelo dono da árvore.
  • Mulheres, ainda que adultas, permanecerão sob tutela [do pater familias], com exceção das virgens vestais, que serão livres.
  • É passível de punição aquele que deixar seu gado pastar no terreno de um vizinho.
  • É proibido consagrar [a um templo / aos deuses] qualquer coisa sobre a qual haja dúvida quanto ao verdadeiro proprietário [...].
  • Quem puser fogo [intencionalmente] em uma construção ou em [um campo de] cereais nas proximidades de uma casa será preso, chicoteado e queimado até a morte, desde que fique provado que sua ação foi consciente; se, porém, fizer isso por acidente, deverá reparar o dano [de acordo com suas posses].
  • Juízes ou árbitros legais que receberem suborno para favorecer alguém serão sentenciados à morte.
  • Fica proibido executar quem quer que não tenha sido [formalmente] condenado.
  • Escravos detidos em flagrante por roubo serão açoitados e jogados da rocha [Tarpeia].
  • Qualquer pessoa que for chamada a testemunhar e mentir será jogada da rocha Tarpeia.

(1) Pelos decênviros, dez homens especialmente designados para isso. 
(2) Ab urbe condita libri. Outra fonte importante para os mesmos acontecimentos (ainda que posterior à obra de Tito Lívio) é Epitome rerum Romanarum, de Aneu Floro.
(3) Lex Duodecim Tabularum.


terça-feira, 13 de novembro de 2018

Leilão de escravos

Quando alguém queria comprar um ou mais escravos, podia ir ao estabelecimento de um vendedor de "escravos novos", ou seja, de escravizados que haviam chegado recentemente da África e iriam para as mãos de seu primeiro "senhor" em solo brasileiro. Era também possível comprar cativos de um particular que planejava vender alguns dos que tinha. Havia, ainda, a opção de comprar escravos em um leilão. Dentre outras razões, escravos eram leiloados quando se tratava de converter em dinheiro (para partilha entre herdeiros ou satisfação de dívidas) os bens deixados por alguém que havia morrido. Escravos eram seres humanos como nós, tinham sentimentos como vocês e eu temos. Não obstante, eram comprados, vendidos, leiloados. Pensem nisso, leitores.
Vamos adiante. Para que vocês tenham uma ideia de como funcionava um leilão de escravos, vejam estes anúncios publicados em jornal, ambos no ano de 1852:

"Pelo Juízo de Órfãos e cartório do escrivão Castro se faz público que acham-se em praça duas escravas de nomes Francisca e Catarina, pertencentes à herança do finado José Justiniano Vieira Falcão; hão de as mesmas se arrematarem na casa da polícia no dia 10 do corrente às 10 horas da manhã, cujas avaliações acham-se no cartório do dito escrivão, e as escravas em poder de Tomás Luís Álvares, testamenteiro do dito finado." (¹)

"Por ordem do Ilustríssimo Sr. Dr. José Antônio Vaz de Carvalhaes, juiz de órfãos desta cidade e seu termo, se faz público que no dia vinte e oito do corrente, nas casas de audiência deste Juízo, ao meio-dia se arrematarão os escravos Generosa e seu filho, pertencentes à herança da finada Esméria Maria, da Freguesia da Penha, e a escrava Felicidade, de 16 anos de idade, pertencente a dois herdeiros do finado Joaquim Nunes Ribeiro, da Freguesia de Itapecerica. São Paulo, 12 de agosto de 1852. - O escrivão, Manoel José Simões Guimarães." (²)

Percebam que, como regra, não era dada a mais ínfima relevância à opinião dos escravos quanto à mudança de senhor. Talvez pareça que os cativos, em razão dos contínuos maus-tratos a que eram submetidos, aceitassem passivamente a mudança de "dono". Mas nem sempre era assim. Sabemos de um incidente, por registro do pintor francês Auguste François Biard, ocorrido no Rio de Janeiro em 1858. Com ele, a palavra:
"Durante minha permanência no Rio venderam-se sete escravos que pertenciam a um senhor de bom coração; esses pobres diabos [sic], habituados a ser tratados com doçura, não se conformavam com a ideia de irem cair a outras mãos e, nesse propósito, revoltaram-se, entrincheiraram-se. Ofereceram desesperada resistência a uns sessenta soldados e muitos deles só foram dominados depois de gravemente feridos. Levaram-nos então para a Correção. [...]." (³)
Sendo pintor, Biard fez um esboço de um leilão de escravos que presenciou, também no Rio de Janeiro. Convertido em desenho por E. Riou, esse esboço foi publicado na edição francesa de 1862 de Deux Années au Brésil, e vocês podem vê-lo logo abaixo:

Leilão de escravos (⁴)

Não deixem de observar, leitores, que, em posição dominante no cenário, o leiloeiro é retratado com seu emblemático martelinho, enquanto à volta, em meio a uma variedade de objetos, um potencial comprador, sem muita cerimônia, examina os dentes de uma escrava. Como se sabe, esse mesmo procedimento era usual, na época, entre os compradores de animais de carga.

(1) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 57, 3 de julho de 1852, p. 4.
(2) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 68, 21 de agosto de 1852, p. 4.
(3) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 48.
(4) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 94.


quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O que é proletariado

O conceito de proletariado mais difundido atualmente é aquele proposto por Marx e Engels: "Por proletariado entende-se a classe dos modernos trabalhadores assalariados que, não tendo seus próprios meios de produção, são reduzidos a vender a força de trabalho para sobreviver" (¹).      
Contudo, o termo "proletariado" existe muito antes que o Manifesto Comunista viesse a público em 1848. Teria sido posto em uso político por Sérvio Túlio, o penúltimo dos sete reis de Roma, quando dividiu a população da cidade em centúrias. Os romanos muito ricos teriam maiores obrigações quanto ao sustento do Estado, mas também maiores direitos políticos. Os muito pobres, porém, não estavam completamente isentos de direitos, porque também tinham uma obrigação, e já verão o que era, leitores. 
Tem a palavra Marco Túlio Cícero, político, orador e escritor romano do Século I a.C.: "[...] àqueles que no censo demonstraram não ter outra posse além de suas pessoas, [Sérvio Túlio] chamou proletários, dos quais se esperava apenas que tivessem filhos, para assegurar a continuidade da cidade [de Roma]" (²). Assim, tudo se explica: a procriação por parte dos proletários, gerando uma descendência (³) que se desejava tão numerosa quanto possível, foi incentivada como um dever patriótico, por ser vital para compor o exército, garantindo a Roma o domínio do mundo à sua volta (⁴). 

(1) MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei, 1848. 
(2) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro Segundo.
(3) Prole!
(4) Os trechos citados de Manifest der Kommunistischen Partei e De re publica foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Providências do padre Antônio Vieira para agilizar a catequese de indígenas no Maranhão

Vieira é conhecido dos jovens estudantes pelas aulas de Literatura, nas quais se estudam seus famosos Sermões. Mas foi também um missionário dedicado e, a seu modo, um protetor dos indígenas, de acordo com aquilo que, em seu tempo, se pensava ser o melhor para eles.
Reconhecendo que havia poucos missionários para a aventura da catequese em um território gigantesco, o padre Antônio Vieira adotou algumas medidas de ordem prática, cujo propósito era agilizar a doutrinação nas aldeias formadas por índios já catequizados e/ou catecúmenos. A ideia era simples: contar com a ajuda dos próprios ameríndios para a instrução religiosa, sempre que não fosse possível ter a presença de um jesuíta. Então, de acordo com a História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará (¹), escrita pelo padre José de Moraes:
  • Todas as aldeias indígenas controladas pela Companhia de Jesus deviam ter livros para registro de batismos, casamentos e óbitos;
  • Em cada aldeia deveriam ser selecionados dois rapazes, que receberiam instrução que os capacitasse a, diariamente, dirigir orações e doutrina na igreja;
  • Alguns índios deveriam receber preparo para que, na ausência dos padres, pudessem batizar catecúmenos e prestar assistência aos que estivessem para morrer.
Observando, de passagem, o quanto Vieira se mostrava pragmático na adoção dessas medidas, cumpre explicar que, na primeira delas, atendendo a uma determinação do Concílio de Trento, o missionário pretendia assegurar que ninguém, em cada aldeia, deixasse, a seu tempo, de receber o batismo, além de, com o registro dos casamentos, impedir a poligamia e as uniões consanguíneas vetadas pela Igreja - em tal contexto, tarefas bastante difíceis. 
Digam-me, leitores, estão curiosos para saber qual foi o resultado dessa estratégia? Nas palavras do padre José de Moraes, "exercitaram eles [os missionários] a ordem com tão grande zelo e atividade, que dentro em breve tempo não faltaram mestres para os homens e já sobejavam mestras para as mulheres, que de ordinário são as mais hábeis em aprender, e de melhor retentiva para ensinar" (²). Ao que parece, o plano de Vieira funcionou.

(1) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus. O tom bastante encomiástico em alguns trechos da obra pode, assim, ser facilmente explicado.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, pp. 391 e 392.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Deuses da Mesopotâmia

Povos de diferentes etnias, falando línguas distintas, viveram na Mesopotâmia na Antiguidade. Apesar disso, compartilhavam o culto a quase todos os deuses. É verdade que, às vezes, um mesmo deus ou deusa era venerado com nomes diferentes, mas, a despeito da variação na nomenclatura, sabemos que se tratava da mesma divindade porque a mitologia associada era muito semelhante. Além disso, não eram poucos os deuses vinculados à guerra, chamados "deus-sol", "deus-lua" (ou "deusa-lua") ou relacionados aos planetas, à fertilidade do solo, ao amor, à procriação, aos fenômenos da natureza. Em se tratando do culto aos deuses, povos da Antiguidade não tinham por hábito economizar nos encômios. Eram títulos e mais títulos, de modo que, às vezes, fica até difícil identificar a que deus, exatamente, se referiam.
Por que isso acontecia?
A antiga Mesopotâmia, em tempos nos quais o nomadismo era bastante comum, foi área de trânsito para muitos povos. Conviviam um pouco, pacificamente ou não, assimilavam algo da cultura alheia e seguiam em frente. O passar do tempo amalgamou elementos às vezes muito diversos, de modo que, com a sedentarização, as diferentes cidades, em se tratando de religião, tiveram muito em comum, ainda que, como regra, cada uma venerasse um deus principal, sem descartar o culto secundário a outras divindades. Portanto, a lista de deuses e deusas que veremos a seguir inclui, sem ser exaustiva, apenas as principais divindades cultuadas por assírios e babilônios (¹). Lembrem-se, leitores, de que havia uma infinidade de outros deuses e deusas. Era politeísmo às últimas consequências.


Relevo assírio retratando uma procissão em homenagem aos deuses (²)

Divindades cultuadas por assírios, babilônios e outros povos da Mesopotâmia


Marduk - Era o deus principal da Babilônia, retratado, muitas vezes, em companhia de quatro cães, embora também representado ao lado de um dragão dotado de dois chifres.  Era relacionado ao nascer do Sol. Sua companheira era Sarpanitu, vinculada ao nascer da Lua e, às vezes, a Vênus.
Ashur - Era cultuado exclusivamente pelos assírios, sendo, portanto, seu deus nacional e protetor da cidade de Ashur, que foi, durante muito tempo, a capital assíria. Representado frequentemente por um círculo dotado de asas, estava relacionado ao sol durante um eclipse.
Nusku - Guerreiro notável, esse deus era particularmente venerado pelos reis assírios. Era também considerado mensageiro de Marduk.
Nebu (ou Nebo, ou ainda Nabu) - Filho de Marduk, era cultuado em Borsipa. Tido como o deus-profeta, patrocinador das ciências, mensageiro dos deuses. Os escribas tinham em Nabu o seu patrono. Sua companheira chamava-se Tasmetu.  
Shamash - Seguramente uma das mais antigas divindades da Mesopotâmia, era o deus-sol (³). Por sua capacidade de iluminar todas as coisas, estava identificado como juiz tanto do céu como da terra. Ele e Aa, sua companheira, eram particularmente venerados em Larsa e Sippar. 
Ishtar - Deusa da criação, também venerada como Nina e, por isso, particularmente relacionada à cidade de Nínive, uma das capitais assírias. Um aspecto curioso de seu culto era a prática das oferendas de peixes. 
Amurru - Foi muito popular nos dias de Hamurabi. Era considerado o deus das montanhas.  
Sin Nannar ou Narnar - deus-lua; cujo principal centro de culto estava em Uru (⁴). Sua companheira era Nin-Uruwa, ou seja, a senhora de Uru. 
Rammanu (ou Rimmon, ou ainda Hadad) - Conhecido como o trovejador, era o deus das tempestades (⁵), vendavais e outros fenômenos correlatos. Sua companheira era Shala. 
Tamuz - Um dos deuses mais antigos e de culto mais amplo, a ponto de exceder os limites da Mesopotâmia. Era retratado como um pastor cuidando de seu rebanho. Sua companheira era Ishtar, deusa do amor e da guerra, cultuada principalmente em Erech e Nínive. Tamuz morria e ressurgia anualmente, sendo, por isso, identificado com a sucessão das estações do ano. 
Nin-Girsu (ou Ninurta) - Era cultuado em Lagash.  Às vezes Identificado com Tamuz, por ser, como ele, deus da agricultura. Bau, a deusa-mãe de Lagash, era sua companheira. 
Nergal - Era o deus do mundo dos mortos, do fogo, da guerra e causador das epidemias. Promovia destruição e, por isso, era invocado quando se esperava que agisse contra os inimigos na guerra. Seu principal centro de culto estava em Kutha, perto de Babilônia. Tinha Eresh-Kigal por companheira.

Relevo assírio em que o rei vitorioso é mostrado sob um círculo alado,
símbolo do deus Ashur (⁶)


A consagração de uma estátua de Nebu na Assíria


Agora, meus leitores, veremos um desses documentos que, escritos em argila, sobreviveram para que soubéssemos como era a consagração da estátua de um deus na antiga Mesopotâmia. 
Foi em 798 a.C.: sob as ordens de um governador provincial assírio, uma estátua de Nebu foi edificada. Não devia ser um monumento qualquer, tendo em vista a grandiloquência de sua consagração, à qual não faltou nem mesmo um recadinho para os que viveriam muito tempo depois:
"Para Nebu, o protetor exaltado [...] que tudo vê, sem limites, o grande, o poderoso [...], cuja autoridade é suprema, mestre das artes, que vê tudo o que acontece no céu e na terra, que tudo sabe e tudo ouve, portador do estilo (⁷) de escriba [...], gracioso e majestoso, capaz de todo conhecimento e adivinhação, amado de Bel, senhor de senhores, cujo poder não tem rival, sem cujo conselho nada se faz no céu [...], ao grande senhor [...], para o bem de Ramman-nirari o rei da Assíria, seu senhor, e para o bem de Sammuramat, senhora do palácio e sua companheira, Bel-tarsi-iluma, governador das províncias de Kalach, Chamedi, Sirgana, Temeni e Yaluna, para que sua vida seja preservada e seus dias prolongados [...], para que haja paz em sua casa e em sua descendência e para que seja livre de toda enfermidade [esta estátua] foi feita e dedicada. Homem do futuro! Confie em Nebu, não confie em nenhum outro deus!"
Quem vivia na Antiguidade quase não tinha controle sobre as doenças, já que as verdadeiras causas das diferentes moléstias eram desconhecidas. A expectativa de vida, por consequência, era baixa e, na busca por cura e sobrevivência, era usual a invocação de divindades. É nesse contexto que se insere a dedicação da estátua de Nebu, homenageado, dessa vez, por assírios, embora fosse, também, estimadíssimo entre os babilônios. É bastante provável que proclamações semelhantes fossem realizadas onde quer que a consagração de um novo templo ou estátua ocorresse entre os demais mesopotâmios.  

(1) A ideia é apenas colocar um pouco de ordem no vastíssimo panteão da Mesopotâmia, venerado por sumérios, acádios, babilônios, assírios, etc.
(2) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Ou um deles...
(4) Também conhecida como Ur.
(5) Quase toda mitologia tem um.
(6) LAYARD, Austen Henry. Op. cit. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) Pequeno bastão destinado à gravação da escrita cuneiforme em placas de argila.


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