quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A Revolução Russa de 1917

Uma revolução que aconteceu "no lugar errado"

Segundo o entendimento daqueles que em meados do Século XIX defendiam o chamado "socialismo científico", o mundo industrialmente desenvolvido caminhava para uma grande revolução. Nas palavras de Marx e Engels em Manifest der Kommunistischen Partei (¹), "a história de todas as sociedades até agora existentes tem sido a história das lutas de classes. [...] Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres de ofício e empregados, em uma palavra, opressor e oprimido, em constante oposição, têm travado um confronto ininterrupto, seja ele oculto, seja ele aberto, que vez após vez termina, ou com uma completa reconstituição revolucionária da sociedade, ou com a ruína de ambas as classes contendoras". 
Mais adiante, depois de expor uma interpretação da queda do feudalismo por obra da burguesia, o mesmo documento passava a tratar do modo pelo qual o proletariado suplantaria o capitalismo, impondo uma nova ordem social, política e econômica:
"As mesmas armas com as quais a burguesia derrubou o feudalismo voltam-se agora contra ela.
Entretanto, não somente a burguesia forjou as armas que lhe darão a morte, ela chamou à existência os homens que manejarão essas armas - a moderna classe trabalhadora, os proletários."
Uma leitura atenta dos escritos de Marx e Engels leva à conclusão de que, para esses pensadores:
  • a) A revolução socialista era inevitável (²); 
  • b) A revolução somente poderia ocorrer em lugares nos quais as forças produtivas do capitalismo chegassem ao seu máximo desenvolvimento. Aí, no apogeu da luta de classes entre burguesia e proletariado, a revolução socialista encontraria terreno altamente favorável. 
Ora, meus leitores, se havia um país que estava muitíssimo longe dos píncaros do capitalismo, esse país era a Rússia de 1917. Portanto, em obediência à lógica do pensamento de Marx e Engels, a Rússia era um lugar onde a revolução não poderia acontecer. Mas aconteceu.
Por quê? O que veremos a seguir são algumas dentre as razões que podem explicar a ocorrência de uma revolução socialista "no lugar errado":
  • Pobreza extrema do campesinato e dos trabalhadores urbanos, estes últimos não muito numerosos, ainda que, até certo ponto, politizados;
  • A participação russa na Primeira Guerra Mundial, que contribuiu para enfraquecer ainda mais a economia, uma vez que os escassos recursos disponíveis eram direcionados para propósitos militares;
  • Fragilidade da monarquia sob Nicolau II e do governo supostamente democrático implantado após a queda do regime czarista em fevereiro/março de 1917 (³) (Kerenski devia ter negociado imediatamente um acordo com a Alemanha para sair da guerra, mas decidiu permanecer no conflito, gerando enorme insatisfação contra o governo);
  • Deserções em massa no front, não havendo, contra elas, ameaças que valessem;
  • Ocorrência de um inverno precoce e ainda mais rigoroso que o habitual entre 1916 e 1917(⁴);
  • Falta de suprimentos básicos nas cidades, como lenha e carvão (para aquecimento) e cereais para alimentação;
  • Os bolcheviques parecem ter feito a promessa "certa", que a população queria ouvir: paz, terra, pão e libertação das etnias dominadas pelo Império Russo;
  • Vácuo de poder com a "saída" (⁵) de Kerenski.
Ao perceber o momento favorável em outubro/novembro de 1917, Vladimir Ilyich Ulyanov, a quem todos chamamos Lenin, ofereceu, com os bolcheviques, uma alternativa de liderança que parecia apresentar novas propostas e confiabilidade. Desse modo, a Rússia saiu da guerra (⁶), mas os anos seguintes não foram nada fáceis, diante da necessidade de reconstrução após a sangrenta guerra civil ocorrida para sustentar o domínio socialista. Isolado internacionalmente, o novo regime, que parecera tão promissor, tendeu cada vez mais à radicalização, principalmente após a morte de Lenin e ascensão de Stalin como mandatário virtualmente absoluto.

Como a notícia da Revolução Russa chegou ao Brasil

Na edição de sexta-feira, 9 de novembro de 1917, o jornal Correio Paulistano noticiava:
"Deu-se em Petrograd, quase no meio da indiferença geral, um pequeno golpe de Estado [sic!], que transferiu o poder das mãos do sr. Kerensky para as do "Soviet" militar [sic], encarnação da política maximalista (⁷). Os telegramas da Havas, duma sobriedade onde se reconhece a ação da censura (⁸), não dão pormenores do acontecimento; constatam laconicamente o fato sem aludir aos meios empregados pelos revolucionários para se tornarem senhores da capital da Rússia e do governo. O "Soviet", logo que se instalou no palácio imperial, decidiu expor ao público o seu programa de realização imediata. Esse programa consiste exclusivamente [sic] em concluir a paz separada com o inimigo, no mais curto prazo, sem dependência de cláusulas restritivas. Donde se conclui que o golpe de Estado de Petrograd, antes de ser uma revolução nacional, foi uma revolução alemã [sic!!!], fato que não pode surpreender ninguém, atendendo às estreitas ligações que sempre existiram entre os agentes germânicos e os maximalistas. É possível, provável até, que os revolucionários de maio, os que obedecem ao sr. Kerensky, não reconheçam o novo estado de coisas nem sancionem a política internacional que o "Soviet" militar se propõe seguir, com absoluto desprezo dos compromissos tomados com os países aliados."
Entendam, leitores, que na data em que a notícia foi publicada, a situação era ainda bastante confusa, até mesmo para os próprios russos. Além disso, para chegar ao Brasil, essas informações precisaram quase dar a volta ao mundo, passando pelo crivo da censura de guerra (como o jornal assinalou), a fim de evitar que a certeza quanto à posição da Rússia em abandonar o conflito mundial afetasse o moral das tropas da Entente no front. De qualquer modo, é fácil perceber que as palavras do Correio Paulistano, revelando algum desconhecimento sobre a situação política na Rússia para além da tomada do poder pelos bolcheviques, demonstram, também, pouca ou nenhuma simpatia pelo movimento revolucionário, na suposição de que, afinal, tudo não passaria de uma arruaça a ser, em breve, sufocada.
O jornal, porém, estava errado. Lenin e os bolcheviques, contra as expectativas internacionais, conseguiriam suplantar a "resistência branca" (⁹), fundando um novo regime que controlaria o poder, não por uns poucos anos, mas por longas décadas.

(1) Conhecido, em português, como Manifesto Comunista. As citações que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Atendendo a uma espécie de "lei" que supostamente regeria os acontecimentos da sociedade.
(3) Somente em 1918 é que a Rússia passou a adotar o Calendário Gregoriano; por essa razão é que se diz que a "revolução branca" ou "democrática" aconteceu em fevereiro ou março de 1917, dependendo do calendário a ser considerado, valendo o mesmo para a revolução socialista (outubro ou novembro de 1917).
(4) Com estações agrícolas curtas, era preciso produzir muito para assegurar suprimentos para os meses (muito) frios; as obras dos romancistas russos do Século XIX estão repletas do pessimismo resultante, ao menos em parte, da parceria entre conjuntura político-econômica e longuíssimos invernos.
(5) Fuga, na verdade. Impossível não questionar o raciocínio político de Kerenski - o que esse indivíduo tinha na cabeça (além do chapéu, é claro)?
(6) Lenin já negociara com a Alemanha o fim da participação russa na guerra, mesmo antes que a Revolução Bolchevique fosse uma realidade.
(7) Referência aos bolcheviques.
(8) Não se esqueçam, leitores, de que a Primeira Guerra Mundial estava em andamento, e a divulgação de notícias era, mais do que nunca, uma questão de Estado.
(9) Em referência ao fardamento usado pelas forças militares adeptas do regime czarista.


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