quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Travessuras dos deuses gregos

Deuses greco-romanos não foram incontestáveis nem na Antiguidade


Mesmo quando a antiga civilização grega estava em boa forma, já havia críticas às crenças religiosas populares. Platão, em sua República idealmente configurada, propunha que de modo nenhum a juventude devia ser induzida a crer em deuses como Zeus e Hera, que não podiam ser apresentados como paradigmas de autocontrole e moralidade. O raciocínio de Platão era simples: quem pretendia formar bons cidadãos não poderia ensinar a devoção a deuses que não passavam de maus exemplos. 
Estaria o filósofo exagerando? Vai aqui uma pequena coleção de travessuras, talvez pouco conhecidas, que mostram o que deuses gregos eram capazes de aprontar:
  • Um caso de teofagia: segundo a Teogonia de Hesíodo, Zeus Olímpico (ele mesmo!) devorou Métis, sua primeira esposa (¹), que era a personalidade mais sábia que havia, tanto entre os deuses como entre os humanos.
  • Mais Hesíodo: Zeus Olímpico era pai de uma infinidade de seres; entre eles estavam as nove musas, cuja mãe era Mnemósine. Oh! Acontece que Zeus era casado com Hera, e sua filharada tinha uma variedade de mães, e não apenas deusas: vez por outra Zeus se apaixonava por uma mortal... E então nascia um semideus.
  • Ainda segundo Hesíodo, Urano foi emasculado por seu filho Cronos (que depois seria pai de Zeus). Que estirpe!
  • Palas Atena (até ela), enciumada pelos belos trabalhos de agulha feitos por uma mortal de nome Aracne, tão bons que se equiparavam aos seus (se é que não levavam vantagem), teria presenteado a infeliz bordadeira humana com a capacidade de tecer e tecer, eternamente - transformada em uma aranha (²), é claro.
  • Vingança desproporcional: Acteon, um caçador, viu, um dia, por acaso, a deusa Diana (também caçadora), que saía do banho em um riacho. Irritadíssima, Diana transformou o indiscreto caçador em um cervo que (nem é preciso lembrar), foi logo perseguido e estraçalhado pelos cães de caça que acompanhavam a deusa.
  • Para escapar do assédio de Apolo, Dafne, uma ninfa que pastoreava ovelhas, viu-se transformada em um loureiro. 
  • Mais Apolo, e mais vingança desproporcional: Furioso com Marsias, um flautista que ousou desafiá-lo em um torneio de música, o deus que conduzia a carruagem do sol ordenou que seu oponente, amarrado a uma árvore, fosse esfolado vivo. Os berros de Marsias foram suficientes para comover as outras divindades, que resolveram transformar o infeliz torturado em um rio, com águas compostas de lágrimas e sangue.
Vaso grego com decoração retratando
o nascimento de Palas Atena (⁴)
Algumas dessas estripulias parecem, hoje, até poéticas, mas, na Antiguidade, nem sempre eram vistas com tanta benevolência. No final do Século II, em face da perseguição imposta aos cristãos pelo Império Romano, Tertuliano escreveu na Apologia endereçada ao Senado:
"Vossa justiça é uma ofensa aos céus, porque, ao condenar ladrões, assume que há deuses que deveriam ser enforcados." (³)
Indo mais longe na argumentação, chegou a sugerir que seria mais sensato ter homens virtuosos na conta de divindades, e não deuses cheios de defeitos de caráter, como eram aqueles do panteão greco-romano:
"Há, porventura, entre vossos deuses, algum que seja mais sábio que Sócrates, ou mais justo que Aristides, melhor soldado que Temístocles, melhor comandante que Alexandre, de mais sucesso que Polícrates ou mais eloquente que Demóstenes? Há entre os eleitos para deuses alguém mais sábio que Catão, mais justo e melhor general que Cipião, ou melhor comandante que Pompeu, ou mais feliz que Sila, ou melhor orador que Túlio? Se a divindade é questão de mérito, melhor seria ser atribuída a eles, do que a Júpiter ou Saturno." (³)
Portanto, leitores, tudo indica que, quanto ao conceito que faziam dos deuses venerados entre o povo, Tertuliano e Platão estavam de acordo, ainda que, quanto ao tempo, tenham vivido separados por vários séculos.

(1) As lendas da Antiguidade divergiam quanto ao modo como isso ocorreu, mas uma tradição corrente era de que Métis, transformada em água, fora engolida por Zeus.
(2) Havia outras explicações para a origem dos aracnídeos, mas esta é perfeitamente compatível com o caráter de Palas Atena, ciumenta e vingativa como poucos.
(3) As citações da Apologia de Tertuliano que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) BIRCH, Samuel. History of Pottery vol. 1. London: John Murray, 1858.


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