domingo, 29 de dezembro de 2013

Como se fazia a cobrança do que era vendido "fiado"

Não é de hoje que pequenos comerciantes se veem em dificuldades para receber o valor de mercadorias que algum freguês levou sob a condição de pagar depois. Difícil, mesmo, é encontrar ainda quem se disponha a vender assim. As Ordenações do Reino (¹), no entanto, previam, antigamente, um mecanismo para solucionar esse tipo de problema, mecanismo que, como se verá, dificilmente poderia ter algum uso em nosso tempo.
Imagine-se, pois, que alguém vendesse, carne, pão ou vinho "fiado", e passando o tempo, não recebesse o valor correspondente. Em tempos nos quais a maioria das pessoas não sabia escrever, não se devia esperar que houvesse qualquer documento do comprovasse a dívida e que pudesse ser apresentado diante do magistrado a quem se dirigisse o credor. Que fazer? Dizia o Título XVIII do Livro 4º das Ordenações:
"O carniceiro (²) que der carne fiada a alguma pessoa, ou padeira pão, ou taverneiro vinho, e demandarem em juízo seus devedores a que ditas coisas fiaram, posto que não tenham testemunhas por que possam provar as dívidas, havemos por bem que sejam cridos por seu juramento, contanto que a dívida não passe de mil réis." (³)
Deve-se entender que o juramento era, de costume, feito sobre os Evangelhos. Sendo as pessoas muito religiosas, levavam a coisa a sério, de tal modo que - ao menos assim se esperava - o vendedor jurasse dizendo, necessariamente, a verdade. A legislação dava por suposto que ninguém ousaria trazer sobre si as penas do inferno por quantias tão modestas.
Havia, o caso, porém, em que a dívida alegada ocorrera há mais de um ano. Neste caso, era impossível exigir que fosse paga apenas mediante juramento. Fazia-se necessário haver pelo menos uma testemunha:
"Porém se o carniceiro, padeira ou taverneiro se calar por um ano, contado do derradeiro dia que deixou de dar carne, pão ou vinho fiado a seu devedor, sem nunca mais requerer a paga a quem o fiou, sendo eles ambos no lugar, e não tendo legítimo impedimento por que o não pudesse requerer, não sejam cridos por seu juramento em quantidade alguma, mas poderão demandar o que somente provarem. E neste caso valerá a prova de uma testemunha ou a confissão da parte, posto que seja fora do Juízo, e em ausência da outra parte, ou outra qualquer semelhante prova, na quantia dos ditos mil réis." (⁴)
O fato de que a prova fosse simplesmente a palavra de uma testemunha e não um documento escrito e assinado é, meus leitores, outro sintoma de uma sociedade com grande número de analfabetos. As coisas resolviam-se por palavra, mesmo porque, às vezes, nem mesmo o juiz sabia ler e escrever, conforme já mostrei em uma postagem anterior, datada de 23 de junho de 2013, que tinha por título "No Reino de Portugal, nem todos os juízes sabiam ler e escrever", e que foi parte da série "Ler e escrever, eis a questão".

(1) Publicadas no início do Século XVII. Valiam, pois, não apenas em Portugal, mas também em seus domínios ultramarinos, o que incluía, portanto, o Brasil durante todo o Período Colonial.
(2) Açougueiro.
(3) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(4) Ibid.


Veja também:

domingo, 22 de dezembro de 2013

O padre Anchieta fazia alpargatas

Os europeus que, no século XVI, iniciaram a colonização do Brasil, tiveram, não necessariamente por opção, mas por razões de sobrevivência, de aprender com os povos indígenas novos hábitos e costumes. Isso significava o uso, como alimento, de coisas que até então desconheciam, dormir em redes (como os índios) e até mesmo novos modos de preparar o vestuário e construir habitações. Afinal de contas, que poderiam fazer quando roupas e calçados, trazidos do Reino, após muito uso devessem ser substituídos?
Como parte ativa no processo de colonização, os jesuítas trataram, em suas tentativas de aproximar-se dos nativos para doutriná-los, de viver tanto quanto possível segundo os hábitos e recursos locais, enquanto se esforçavam para aprender a língua da terra, instrumento indispensável à catequese.
Nas areias de Iperoig em Ubatuba (SP),
encontra-se este monumento em
homenagem 
ao Padre José de Anchieta
 que,
no Século XVI,
foi missionário no Brasil.
É possível, hoje, conhecer algo das dificuldades e soluções encontradas pelos religiosos europeus se lermos as cartas que enviavam e nas quais, com uma periodicidade quase sempre anual, davam conta a seus superiores das atividades, dos progressos e mesmo dos fracassos em relação ao que empreendiam na América. Assim, em 1554, em carta mandada a Coimbra, José de Anchieta escreveu:
"Agora estou aqui em São Vicente, que vim com nosso padre Manuel da Nóbrega para despachar estas cartas. Demais disso tenho aprendido um ofício que me ensinou a necessidade, que é fazer alpergatas (¹), e sou já bom mestre e tenho feitas muitas aos irmãos, porque se não pode andar por cá com sapatos de couro pelos montes." (²)
E em outra carta, desta vez tendo por destinatário o Geral da Companhia de Jesus, datada de julho de 1860, o mesmo Anchieta relatou:
"... fazemos vestidos, sapatos, principalmente alpercatas de um fio como cânhamo, que nós outros tiramos de uns cardos lançados n'água e curtidos, cujas alpercatas são mui necessárias pela aspereza das selvas e das grandes enchentes d'água." (³)
Esse costume de usarem os padres as alpargatas não era, no entanto, devido apenas às condições do terreno em que andavam. Devia-se, também, à falta de calçados como os que estavam disponíveis no Reino. Isso registrou o mesmo Anchieta, muito mais tarde (⁴), ao falar do Padre Diogo Jacome:
"Era isto mui comum naqueles tempo trabalharem os Irmãos de saberem alguns ofícios proveitosos para a comunidade. E assim o dito Padre (⁵) e outros Irmãos aprenderam a fazer alpargatas, porque então não havia sapato nem meia." (⁶)
Ora, em terras do Brasil, no Século XVI, já era bastante, para quem se aventurava pelos sertões, dispor de umas alpargatas para os pés. Afinal, não será demais lembrar que a maioria dos índios dispensava qualquer calçado. Sendo muito hábeis em andar descalços, ensinaram aos portugueses o modo como o faziam, e que, posteriormente, foi adotado pelas levas de bandeirantes que cruzaram o interior da Colônia.

(1) O termo "alpargata", de mesmo significado, é mais usual atualmente no português falado no Brasil.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 63.
(3) Ibid., p. 151.
(4) A data exata é desconhecida, mas as circunstâncias do texto apontam para a segunda metade da década de 1580.
(5) Refere-se a Diogo Jacome.
(6) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Op. cit.,  pp. 482 e 483.


Veja também:

domingo, 15 de dezembro de 2013

Motetos medievais

O que pensariam os leitores se, indo a uma igreja para um serviço religioso, acabassem ouvindo, em meio à música sacra, uma romântica e apaixonada canção? Impossível? Nada disso.
No moteto, usual como composição para a Igreja nos Séculos XII, XIII e XIV, em princípio todas as vozes da polifonia cantavam segundo um só texto. Como eu disse, em princípio.
Buscando inovar sempre, os compositores passaram, posteriormente, a introduzir outros textos em suas obras, que eram cantados em simultaneidade ao texto principal - este sim, de natureza sacra, estritamente. Pois bem, o aspecto curioso é que os tais textos secundários podiam não ter nada a ver com o texto principal, nem eram sequer religiosos: podiam ser, exemplificando, lamentos amorosos bem ao gosto da época, e quem prestasse atenção à música que se cantava acabaria por ouvi-los. Em um caso extremo, incluiu-se até um protesto contra a corrupção entre membros do alto clero...
Malgrado a oposição da Igreja - por razões mais que evidentes - esse estilo polifônico, o moteto, foi na época bastante popular. Valia até mesmo a inclusão de textos em idiomas diferentes, embora o texto principal fosse habitualmente em latim, a língua usada nos ofícios da Igreja do Ocidente.


Veja também:

domingo, 8 de dezembro de 2013

Perucas e penteados exagerados do Século XVIII

O pequeno Wolfgang A. Mozart, ao visitar Paris em 1763 para concertos com o pai e a irmã, observou, com espanto, e a despeito de sua pouca idade (¹), que a moda para cabelos era lá, então, sobremodo exagerada. Em carta à mãe, descreveu os penteados das parisienses como uma verdadeira indecência.
Seria isso coisa de menino educado em costumes muito severos? Talvez não.
Alguns exemplos de cabeleiras exageradas
do Século XVIII (⁵)
No Século XVIII estava no auge a moda de perucas (²) e arranjos exóticos para cabelos. Mesmo gente séria e importante não ousava aparecer para compromissos públicos sem passar um bom tempo sob os cuidados de um cabeleireiro experiente. O próprio Mozart acabou por adotar essa prática quando, já adulto, deixou definitivamente a sua Salzburg, para residir em Viena.
No Brasil, as perucas também andavam na moda, e mesmo oficiais militares as usavam - pode-se dizer que se esperava que o fizessem, ainda que com alguma moderação. Não quer dizer, no entanto, que não se ouvissem vozes discordantes. Nuno Marques Pereira, em O Peregrino da América, observou:
"E vede agora, como poderão estes tais ser ligeiros soldados e destros guerreiros, vivendo com tantos melindres e resguardos. Porém nasce esta desgraça, sem dúvida, por andarem os portugueses cegos e presos pelos cabelos, pelas mãos das mais nações. A este respeito vos contarei o que vi, sendo bem rapaz, trazerem as mulheres por enfeites e toucados nas cabeças, e vinha a ser que se usava naqueles tempos uma moda que chamavam patas, feitas também de cabelos, porém presos em arames. Foi crescendo tanto a demasiada moda e com tão supérfluo custo, que havia patas que custavam vinte, trinta, quarenta e cinquenta mil réis, e tão disformes que, para poder entrar uma mulher com este enfeite nas igrejas, era necessário que estivessem as portas desimpedidas de gente. Vieram depois a chamar a este uso desenganos. Correram os anos, até que se desenganaram de sorte (com serem mulheres) que lançaram as patas fora de si, e nem por isso ficaram feias." (³)
Não contente em criticar os penteados das mulheres, passou o mesmo autor a fazer suas considerações sobre as perucas usadas pelos homens:
Mais alguns exemplos, leitores. Qual é o favorito? (⁶)
"Assim também é justo que suceda agora aos homens com a presente moda, ou abuso das cabeleiras, de que falamos. No princípio chamavam aos cabelos postiços, cabeleiras; agora chamam-lhes perucas, devendo chamar-lhes Speluncas, que em latim quer dizer cova de ladrões, porque com elas roubam os estrangeiros o dinheiro daqueles que lhas compram para se enfeitarem. Melhor dissera para se sujarem, porque antes destas modas estrangeiras, vestiam-se os portugueses para andarem limpos, e hoje vestem-se para se sujarem. E isto com tanto custo e dispêndio, que bem se poderia escusar, como dantes se escusava, e nem por isso deixavam de ser mui prezados, estimados e talvez que mais livres de tantas ofensas contra Deus." (⁴)
Difícil é crer que apenas a mania das perucas pudesse acarretar a ruína econômica de uma nação...
Como todas as modas, as perucas "obrigatórias" saíram de cena e, curiosamente, para não mais voltar, embora ainda tenham permanecido em uso em uns poucos lugares para fins bastante restritos, que mais parecem um incentivo ao turismo aliado a um certo gosto pelas tradições. Bem, ainda vigoram, por suposto, em filmes de época e, vez por outra, no carnaval. Já os penteados exóticos, ao menos para mulheres, fazem uma ou outra aparição de vez em quando, sem terem, para bem ou para mal, as dimensões daqueles do Século XVIII.

(1) Nasceu em 1756.
(2) Não se discutem aqui, evidentemente, as perucas usadas por pessoas que não têm cabelos ou que desejam uma aparência diferente de vez em quando. Fala-se das perucas enormes, geralmente brancas para homens e às vezes coloridas de rosa, azul, lilás, etc., para mulheres, que estavam em uso no Século XVIII. As ilustrações desta postagem dão ótimos exemplos.
(3) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 434 e 435.
(4) Ibid., p. 435.
(5) RIMMEL, Eugene. The Book of Perfumes 5ª ed. London: Chapman and Hall, 1867, p. 220.
(6) Ibid., p. 221.


Veja também:

domingo, 1 de dezembro de 2013

O Brasil já foi a "Nova Lusitânia"

Há tempos escrevi aqui sobre os nomes que o Brasil recebeu, antes de ser mesmo "Brasil": Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz... 
A substituição dos nomes com referências ao Cristianismo por um outro que designava a madeira então muito comum no litoral - "pau de tinta", se dizia - não agradou aos religiosos envolvidos na catequese. Onde é que já se viu trocar a cruz de Cristo por um nome de árvore, cujo interesse estava fundamentalmente vinculado a questões econômicas?
Gabriel Soares de Souza, em seu famoso Tratado Descritivo do Brasil em 1587 refere, porém, que um outro nome foi ainda empregado, o de "Nova Lusitânia":
"Esta terra se descobriu aos 25 dias [sic] do mês de abril de 1500 anos por Pedro Álvares Cabral, que neste tempo ia por capitão-mor para a Índia por mandado de El-Rei D. Manuel, em cujo nome tomou posse desta província, onde agora é a capitania de Porto Seguro, no lugar onde já esteve a ilha de Santa Cruz, que assim se chamou por se aqui arvorar uma muito grande, por mandado de Pedro Álvares Cabral, ao pé da qual mandou dizer, em seu dia, a 3 de maio, uma solene missa com muita festa, pelo qual respeito se chama a vila do mesmo nome, e a província muitos anos foi nomeada por de Santa Cruz e de muitos Nova Lusitânia [...]." (¹)
Não deve esse fato causar surpresa. Diante da ameaça frequente da vizinha Espanha (²), por vezes os governantes lusos cogitaram transferir Portugal... para o Brasil. Consta que até mesmo o Marquês de Pombal chegou a fazer planos nesse sentido, para uso em alguma emergência. A vinda da Família Real em 1808 não pode, portanto, ser tida como uma louca solução ou saída intempestiva face à ameaça napoleônica: era coisa que se ruminava há muito tempo, para a qual a conjuntura histórica apenas contribuiu ao ensejar a prática.

(1) SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 15.
(2) Quando Gabriel Soares escreveu o seu Tratado Descritivo, estava em vigor a chamada União Ibérica (1580 - 1640).


Veja também:

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Presentes para as visitas

Uma prática interessante de hospitalidade no Período Colonial


Conta Pedro Taques de Almeida Paes Leme, na Nobiliarchia Paulistana, que Francisco Rodrigues Penteado, cidadão de São Paulo, foi um dos primeiros a explorar o ouro das Gerais, tornando-se, por isso muito rico. Estabeleceu-se em sua fazenda em Araçariguama, na qual fundou uma capela em honra de Nossa Senhora da Piedade.
Ora, tão devoto era o nosso homem, que, anualmente, fazia celebrar grandes festas para homenagear a santa de sua devoção, e isso sem poupar despesas que tornassem ainda mais grandiosos os ofícios religiosos, como refere Pedro Taques:
"Enquanto durou a vida do fundador havia anualmente festa da mesma Senhora, que durava um oitavário de missas cantadas, com três distintas festividades em que havia sermão, conduzindo-se para elas a música da cidade em distância de onze léguas, e sendo convidadas várias pessoas de autoridade que faziam uma corte daquela opulenta fazenda, na qual em todos os dias reinava a profusão e bom gosto. Completava-se o oitavário com um aniversário pelas almas do purgatório com ofício de nove lições, música a canto de órgão, sermão etc."
Até aqui meus leitores podem estar considerando que este era um costume, na época, mais ou menos frequente entre devotos de uma certa capacidade econômica, que se traduzia, algumas vezes, em festas religiosas como a descrita, outras em construir e deixar legados para capelas e igrejas, ou ainda deixar, em testamento, recursos que, devidamente administrados, deviam servir para contínuas celebrações de missas por intenção das almas dos mortos - dentre as quais, é claro, a do próprio testador. Não desconsideremos, também, um certo exagero, aliás típico em Pedro Taques, quando se tratava de gabar o que ele supunha serem virtudes da gente de São Paulo.
Há, porém, um aspecto curioso em relação às festas que fazia celebrar Francisco Rodrigues Penteado, e que pode muito bem nos dar uma ideia de costumes que então estavam em vigor e que hoje nos pareceriam, à primeira vista (se descolados do respectivo contexto), exóticos e até ridículos (*). Diz a Nobiliarchia, referindo-se ao retorno dos convidados a suas casas, após o encerramento das festas em Araçariguama:
"No regresso para a cidade eram conduzidos os hóspedes com a mesma grandeza de tratamento, sendo além disso brindados com presentes de toucinho e mais pertences de grandes capados, por forma de viático para o caminho."
Que lhes parece, senhores leitores? Fica pois aí a sugestão, para a próxima vez que estiverem em busca de ideias de um presentinho para as visitas...

(*) Lembrem-se os leitores de evitar o julgamento dos valores de outros tempos pelos nossos. O que pensaria alguém do século XVII ou XVIII dos costumes do século XXI? No entanto, o fato não deixa de ter seu lado humorístico.


Veja também:

domingo, 1 de setembro de 2013

Servos e escravos: qual a diferença?

Servos e escravos eram a mesma coisa? Há quem defenda que sim. Afinal, uns e outros tinham que trabalhar, trabalhar, trabalhar, não é mesmo? Mas as semelhanças não iam muito além disso.
Os servos, é preciso dizê-lo, tinham condições de sobrevivência bastante variáveis, de acordo com o lugar em que viviam. De um modo geral, porém, estavam ligados à terra, o que significa que não podiam deixá-la quando bem entendessem, nem podiam, livremente, mudar de senhor, procurando algum que lhes fosse mais agradável. Mudavam de senhor se a terra na qual viviam tivesse, por qualquer razão, um novo dono. E mais, sua condição era hereditária: quem nascia servinho, crescia servo e passava a vida toda como servo, sem ter a possibilidade de mudar de estrato social, e sua descendência seria sempre restrita à servidão.
Sim, essa não era uma perspectiva animadora. Mas não parava aí.
Os servos estavam obrigados a trabalhar um determinado número de dias a cada semana nas terras de seus respectivos senhores. Podiam ser dois, três ou mais dias, porém nos dias restantes trabalhavam para si mesmos e para a manutenção de suas famílias. Apesar de tudo, isso era para eles uma garantia importante, já que sempre tinham assegurado um pedaço de terra que cultivavam para o próprio sustento. E tanto isso é verdade que, que quando esse direito começou a ser desrespeitado, todo o sistema acabou ruindo. Cabe, no entanto, observar que, via de regra, as terras cultivadas para os senhores eram as melhores, ficando as inferiores reservadas aos servos. A humanidade não mudou tanto assim, como se vê.
Indo adiante, convém lembrar que, além do trabalho compulsório nas terras do senhor, estava o servo obrigado a pagar certos impostos. Exemplificando, se precisavam usar o moinho (que era propriedade do senhor), deviam pagar uma taxa. Valia o mesmo para outras instalações.
Porém...
Porém, nunca, nunca mesmo, um servo poderia ser vendido. Não era mercadoria. Não havia nada que pudesse ser chamado de um "mercado de servos". E é exatamente nisto que reside a grande diferença em relação aos escravos.
Um escravo estava obrigado a trabalhar, e isso tanto quanto seu senhor determinasse. Se, eventualmente, recebia um pequeno terreno para cultivar para si mesmo em suas mais do que escassas horas de folga, era, com frequência, na intenção de que desse menos despesas ao seu "proprietário". Não foi sem causa que Antonil escreveu que, no Brasil, para manter escravos eram necessários PPP:
"No Brasil costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que é o pau, contudo prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada ou levantada, e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado." (¹)
Mas, principalmente, um escravo era, sim, mercadoria. Era vendido, comprado, outra vez vendido, talvez novamente comprado, conforme os desejos ou o humor dos senhores. Houve tempo, em se tratando do Brasil, que nesse comprar e vender escravos não havia qualquer respeito a algum vínculo familiar ou afetivo que os escravizados pudessem ter entre si, e não me refiro apenas aos escravos de origem africana, já que a mesma coisa pode ser dita em relação aos indígenas reduzidos à escravidão pelos colonizadores. Se quisermos referir em poucas palavras qual era a condição do escravo, basta dizer que, para os senhores e para a legislação que vigorava, os escravos eram tidos como "coisas", tais como eram os móveis de uma casa ou os animais de carga. E, para que não reste nenhuma dúvida quanto à veracidade desse fato, vou citar alguns exemplos extraídos da legislação portuguesa, as célebres Ordenações do Reino (²) que, é bom lembrar, não valiam somente em Portugal - eram também vigentes no Brasil.
Lê-se no Terceiro Livro das Ordenações, Título LIII:
"Se o autor demandar uma herdade ou casa, deve declarar nos artigos o lugar certo [...]. E se demandar um escravo, cavalo ou outra coisa móvel ou se movente, deve declarar os sinais certos ou qualidades dela [...]."
Novamente no Livro Terceiro, aparece "escravo" em uma lista de possíveis litígios (conforme o Título LXXXII, § 1):
"E se for contenda sobre algum escravo, besta ou navio, e pendendo a instância da apelação morresse o escravo ou besta, ou perecesse o navio, não deixarão por tanto de ir pelo feito em diante [...]."
Agora no Livro Quarto, Título I, § 2, quando se expressa a questão da compra e/ou venda de escravo e outras mercadorias:
"Assim como se o vendedor vendesse um tonel de vinho ou de azeite, ou um escravo ou uma besta, e o comprador comprasse essa coisa, contentando-se dela a tempo certo, em tal caso, se durando o dito tempo, o comprador for dela contente, valerá a venda e será firme [...]."
Creio, meus leitores, que já temos o suficiente para demonstrar que escravo, ao contrário de servo, era, legalmente, mercadoria. Essa era, portanto, a maior e  mais brutal diferença entre um e outro.

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 26.
(2) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


Veja também:

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 4

Não deveríamos ter estradas de ferro em lugar de tropas de muares?


Na postagem anterior mencionei um cálculo que apareceu no jornal O Agricultor Brasileiro em novembro de 1853, segundo o qual a perda com a morte de escravos em todas as Províncias brasileiras, a contar do ano da Independência (1822), seria de, pelo menos, 509.175 contos de réis, quantia essa que, se aplicada a juros de 6% ao ano, estaria produzindo naquele mesmo ano de 1853 uma renda anual superior a 30 mil contos de réis, um valor enorme para a época. Esse cálculo era feito na suposição de que um escravo morto significava imediatamente a compra de um novo escravo, prática que, conforme mostrei na primeira postagem desta série, era habitual entre os latifundiários brasileiros.
Pois bem, se todo esse dinheiro não se gastasse em escravos, que se poderia fazer com ele? A resposta vinha prontamente no jornal citado: devia ser investido na construção de ferrovias:
"Dada a hipótese que ela houvesse sido aplicada à confecção de estradas de ferro, e supondo que cada légua destas estradas importasse em cem contos de réis, teria hoje o Brasil não menos de 305 léguas de caminhos de ferro." (¹)
Não havia, no entanto, nesse ano de 1853, nem mesmo uns poucos metros de estrada de ferro devidamente inaugurados.
Expliquemos.
A parte mais lucrativa da lavoura brasileira era, no Século XIX, aquela destinada à exportação. Ocorre, no entanto, que muitas propriedades agrícolas localizavam-se bem longe dos portos e, por esse motivo, era preciso fazer transportar a produção, toda ela, até os locais de embarque, de onde seria enviada para a Europa e, um pouco mais tarde, também para os Estados Unidos. O caso é que esse transporte era feito, nem mais, nem menos, que nas costas de mulas!... Haja eficiência, pois.
Aqui o fazendeiro tinha duas possibilidades, e podia escolher uma delas ou, ainda, adotar um sistema misto: ter sua própria tropa de muares ou contratar os serviços de tropeiros. Em ambos os casos, teria grandes despesas, mas o pior era a condição das mercadorias, assim transportadas, quando finalmente chegavam aos portos, depois de serem carregadas, mundo afora, por caminhos péssimos e empoeirados, mal-acomodadas ao lombo dos pobres animais, e expostas de contínuo ao sol e à chuva. Tal sistema de transporte resultava em depreciação do produto, nem seria preciso dizer.

Tropa de mulas, de acordo com desenho aquarelado de Thomas Ender (²)

A despeito de um sistema tão deficiente, demorou para que as primeiras ferrovias chegassem a operar. Afinal, os investimentos em sua construção precisavam ser muito grandes e não havia certeza de que os lucros chegassem a ser compatíveis com os riscos envolvidos. Excetuando-se a pequena ferrovia de Mauá datada de 1854, linhas mais importantes somente começaram a funcionar a partir de fins da década de 1850. Resultaram, porém, em uma melhoria geral nas condições de exportação e provaram ser um investimento compensador. Ferrovias de São Paulo, por exemplo, em época de safra do café, chegavam a rejeitar o transporte de outras mercadorias, tal era a demanda dos cafeicultores para que o produto chegasse rapidamente ao porto de Santos. (³)

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6. O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Para ter uma ideia mais completa das mercadorias que eram transportadas nas ferrovias paulistas, veja a postagem "O que se transportava nas ferrovias paulistas no Século XIX".


Veja também:

domingo, 25 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 3

Refletindo sobre o prejuízo gerado pela escravidão


Escravos trabalhando em plantação,
de acordo com gravura de Rugendas (³)
A escravidão era brutal, era desumana, mas considerações desta ordem dificilmente levariam os senhores de escravos a desistirem de seus "direitos de propriedade". Tornava-se necessário convencê-los de que o escravismo era prejudicial aos seus interesses econômicos, o que vinha a ser uma árdua tarefa. A maioria dos grandes latifundiários brasileiros, ao menos durante a primeira metade do Século XIX, estava longe de ter a instrução necessária para compreender o raciocínio que poderia induzi-los à revolução nas práticas agrícolas de que a lavoura brasileira tanto necessitava.
Como argumentar de forma simples o suficiente para fazê-los entender que a escravidão, em última análise, dava prejuízo?
Uma tentativa nesse sentido apareceu na primeira edição do jornal O Agricultor Brasileiro, datada de novembro de 1853. Dizia:
"Suponha-se que desde o ano de 1822 tem morrido em cada província do Império cinco escravos por dia, e que cada um deles não tem custado mais de 500 mil réis, e veremos que cada uma tem perdido
por dia ....................................... 2 contos e 500 mil réis
por ano ...................................... 912 contos e 500 mil réis
Portanto as dezoito províncias do Império têm perdido anualmente a quantia de 16.425 contos de réis, quantia esta que, calculada desde a época da nossa emancipação política, isto é, em trinta e um anos, se eleva à soma espantosa de 509.175 contos de réis, equivalente a um milhão e dezoito mil, trezentos e cinquenta escravos." (¹)
Assim posta, a questão talvez fizesse pensar, não é mesmo? Mas havia mais:
"Se esta quantia houvesse sido empregada de outro modo, ao juro de 6% a.a., produziria atualmente a renda anual de 30.550 contos e 500 mil réis." (²)
Os leitores talvez se perguntem se o argumento deu, logo, algum resultado prático. Ora, basta lembrar, neste sentido, que a escravidão, como se sabe, perdurou no Brasil até 1888.

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6.
O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) Ibid.
(3) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



Veja também:

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 2

Que tal substituir as enxadas por arados?


Até meados do Século XIX, o equipamento de uso agrícola mais moderno que frequentava a maioria das lavouras brasileiras chamava-se enxada, equipamento esse que era, usualmente, posto em funcionamento mediante o emprego da força muscular de escravos vigorosos.
Não venham me dizer, senhores leitores, que isso é inacreditável. Correspondia à rotina das plantações, independente do cultivo que se praticava.
Em O Agricultor Brasileiro, publicação já mencionada na postagem anterior, apareceu um cálculo interessante, demonstrando quanto podia fazer um escravo diariamente em seu trabalho, seguindo-se uma comparação quanto ao que se obteria no caso de se utilizar um arado, um prosaico arado, em lugar de tantos escravos na lavoura. Eis a informação do trabalho feito com enxada e a despesa estimada com escravos:
"A despesa que mais avulta na agricultura é a de braços em número suficiente para lavrar. Um trabalhador não pode lavrar mais de vinte braças quadradas por dia, trabalhado dez horas diárias [sic], e duas braças por hora; de sorte que para lavrar duzentas braças serão necessários dez trabalhadores em um dia, ou dez dias para um trabalhador. Ora, sendo escravos os nossos trabalhadores e custando cada um pelo menos oitocentos mil réis, tem-se a necessidade de empregar oito contos de réis, que produzem, ao juro de 6% ao ano, a renda de 480 mil réis, ou cerca de 1.315 réis por dia, além do sustento e risco do capital empregado nos escravos, que morrem mais cedo ou mais tarde." (¹)
Façamos uma pausa para algumas considerações. Antes de mais nada, observaram os leitores a longa jornada - dez horas - que se estimava como normal para um escravo na lavoura? Além disso, percebe-se que o "normal", da época, era mesmo o trabalho feito sempre com enxadas. Qualquer modernização nas práticas agrícolas devia parecer muito perturbadora aos fazendeiros. Observe-se também que, em 1853, quando foi publicado o primeiro número de O Agricultor Brasileiro, os preços dos escravos estavam ficando cada vez mais altos. A causa disso? O fim do tráfico de africanos, a partir da Lei Eusébio de Queirós, datada de 1850. Mas vamos em frente, com a proposta de adoção do arado para substituir as enxadas:
"Porém, se na nossa lavoura estivesse admitido o uso dos arados, grande seria a economia dos proprietários. Existem presentemente no país arados construídos para diversas sortes de terrenos, e cujos preços variam de 15 mil a 100 mil réis. Este instrumento de tão simples estrutura e de tanta duração lavra tanta terra em um dia quanta podem lavrar dez homens, pelo menos." (²)

Modelo de arado que ilustrava o primeiro número do jornal O Agricultor Brasileiro (³)
Não era recente a advertência quanto à necessidade de pôr fim à escravidão, com a adoção do trabalho livre assalariado e o uso de máquinas agrícolas que reduzissem a demanda por trabalhadores e aumentassem a produtividade. Já na primeira Assembleia Constituinte, instalada em 1823 - aquela que D. Pedro I dissolveu - a questão havia sido levantada. Quase toda mudança no Brasil do Século XIX era, contudo, morosíssima. Por que, nesse caso, seria diferente? A escravidão acabaria acabando, é verdade, mas só mesmo quando já era, na prática, insustentável.

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, pp. 7 e 8.
O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) Ibid., p. 8.
(3) Ibid. p. 7.


Veja também:

domingo, 18 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 1

Investimentos? Só em escravos!


Era abril de 1822 quando Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês em viagem pelo Brasil, escreveu:
"Quanto mais me aproximo da Capitania do Rio de Janeiro mais consideráveis se tornam as plantações (¹). Várias existem também muito importantes, perto da Vila de Resende. Proprietários desta redondeza possuem 40, 60, 80 e até 100 mil pés de café. Pelo preço do gênero devem estes fazendeiros ganhar somas enormes. Perguntei ao francês, a que me referi ontem, em que empregavam o dinheiro. "O Sr. pode ver, respondeu-me, que não é construindo boas casas e mobiliando-as. Comem arroz e feijão. Vestuário também lhes custa pouco, nada gastam também com a educação dos filhos que se entorpecem na ignorância, são inteiramente alheios aos prazeres da convivência, mas é o café o que lhes traz dinheiro (²). Não se pode colher café senão com negros; é pois comprando negros que gastam todas as rendas e o aumento da fortuna se presta muito mais para lhes satisfazer a vaidade do que lhes aumentar o conforto."" (³)
Escravos trabalhando acorrentados, de acordo
com 
desenho aquarelado de Thomas Ender (⁶)
A mentalidade do fazendeiro típico era, deduz-se, a seguinte: "Se tenho mais escravos, planto mais café (ou algodão, ou cana, ou ainda qualquer outra coisa); plantando mais, posso colher mais, e meus ganhos serão maiores. Se ganhar mais... Se ganhar mais, compro mais escravos, porque assim posso plantar mais, colher mais..." Repetia-se o ciclo, indefinidamente, até que más colheitas pusessem tudo a perder, o que não era assim tão incomum.
Não, meus leitores, não passava pela cabeça, pelo menos da maioria desses escravocratas, que fosse necessário aplicar parte dos lucros em modernizar as práticas agrícolas. Bastava, supunha-se, aumentar o número de braços na lavoura - o que significava, na época, comprar mais escravos - e aumentar a área cultivada. O resto viria "naturalmente".
Mas não vinha. Escravos, como se sabe, eram seres humanos. Fugiam, morriam... O resultado disso é que os fazendeiros viam-se sempre envolvidos em comprar, geralmente a crédito, mais escravos, ao menos para repor os que haviam "perdido", pagando depois, quando vendessem a safra. Isso explicava, em parte, a lucratividade bem menor do que a que poderia, de fato, ser obtida.
O pior, no entanto, é que a visão curta desses fazendeiros continuou a vigorar pelos anos afora. A independência política não trouxe, para o Brasil, qualquer mudança significativa no plano econômico. E, tanto isso é verdade, que três décadas mais tarde, no primeiro número do jornal O Agricultor Brasileiro (⁴), datado de novembro de 1853, constava a seguinte afirmação:
"Presentemente o fim do agricultor é obter lucros das suas colheitas para comprar escravos que substituam os que lhe morrem todos os anos, para que com eles possa continuar a lavrar as suas terras [...]." (⁵)

(1) Antes de espalhar-se pelo chamado "Oeste Paulista" na segunda metade do Século XIX, o café foi bastante cultivado no Rio de Janeiro, particularmente no Vale do Paraíba, de onde passou a São Paulo, ainda no mesmo Vale do Paraíba.
(2) Cafeicultores da segunda metade do Século XIX adotariam um estilo de vida radicalmente diverso deste descrito por Saint-Hilaire em 1822.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 119 e 120.
(4) O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado à discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro à Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(5) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6.
(6) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mulheres paulistas do Período Colonial, viúvas de maridos (talvez ainda) vivos

Na Capitania de São Vicente, e em particular na povoação de São Paulo do Período Colonial, era traço marcante o intenso amor que a população masculina devotava às aventuras pelo sertão, fosse no intuito de aprisionar índios para a escravização (quase sempre), fosse na procura por metais preciosos (às vezes). Para os religiosos envolvidos na catequese de nativos, eram os sertanistas considerados um verdadeiro estorvo, e isso desde a infância: a criançada, tão logo aprendia uns míseros rabiscos que só por atrevimento podiam chamar-se de escrita, metia-se com os pais em expedições que duravam meses, até anos. Um belo dia tornavam, na companhia de outros expedicionários, à vila de origem. Embrutecidos pelo viver no sertão, corriam o risco de sequer serem reconhecidos pela família. Haviam-se tornado homens, segundo os conceitos de seu tempo.
Mas em São Vicente não havia, por suposto, apenas homens. Havia as mulheres, havia as meninas...
Casamento era, em geral, coisa que os pais decidiam. A menina, quando vinha de uma família que lhe destinava um dote, apenas tida como apta para procriar (¹), casava-se com aquele que o pai escolhera, não raro um homem muito mais velho, que já se casara outras vezes. Enviuvara, ele, muito provavelmente pela morte de uma ou mais esposas no parto. Casava-se então, novamente. E a infeliz menina via-se, de um dia para outro, esposa de um bandeirante, o que significava, muitas vezes, viver quase como viúva, se levarmos em conta o fato de que os homens passavam grande parte do tempo em suas andanças mato afora. Quando o bandeirante voltava, permanecia, em geral, pouco tempo com a família, até que nova correria pelas selvas o levasse para bem longe. Acontecia, por vezes, durante essas curtas permanências do marido na vila, que a esposa engravidava e, quando o bebê vinha ao mundo, o pai, com grande probabilidade, já não estava mais em casa. Se levarmos em conta a altíssima mortalidade infantil da época, não era raro que um pai não chegasse a conhecer os filhos - muitas crianças morriam antes que o pai retornasse do sertão. Alguns bebês, naturalmente, sobreviviam, e iriam garantir a perpetuação da lógica familiar típica daquele tempo e lugar, que talvez hoje nos pareça muito estranha. (²)
Mas não era só. Para as mulheres casadas com sertanistas, essas verdadeiras viúvas de maridos vivos, ficavam pesadas responsabilidades. Deviam administrar a casa, com a ampla família que ali vivia, cuidar dos filhos, fazer trabalhar a escravaria (³), garantir que as roças fossem cultivadas - sozinhas, às vezes com a ajuda de parentes. Sem reclamar. Rezando sempre pelos que estavam distantes. Referindo-se a seus maridos como "senhores" (⁴). Esperando por um retorno que talvez nunca ocorresse.
Algumas dessas mulheres, ao morrerem, deixavam testamentos (feitos pela mão de terceiros, pois eram poucas as que sabiam escrever). Neles, diziam desconhecer se o marido, que fora ao sertão, ainda vivia. É o que relata Pedro Taques de Almeida Paes Leme em sua Nobiliarchia Paulistana, no trecho abaixo:
"Francisca Pedrosa, faleceu com testamento a 4 de julho de 1725, natural de Itu, e declarou ser filha de Florência Corrêa e Sebastião Pedroso, que fora casada com Bartolomeu Rodrigues Bezaranno, o qual logo depois de casado fora para o sertão do rio Paraguai; até aquele ano não havia notícia se era vivo ou morto."
Ou neste outro:
"Catarina Bicudo casou na matriz de São Paulo a 2 de outubro de 1637 com Gaspar Vaz Madeira [...], que foi para o sertão [...] na tropa de Antônio Raposo Tavares, e ficou dito Pedro Vaz Madeira no Grão-Pará, de onde não tinha vindo mais até o ano de 1686, nem se tinha notícia dele."
Eventualmente, porém, a tal viuvez com marido vivo acabava tomando outros rumos. Ainda segundo a Nobiliarchia Paulistana:
"Sebastiana Pedroso [...] casou em São Vicente com Antônio de Faria Vilas-Boas, natural de Lisboa. [...] Porém, estando ausente seu marido, o dito Vilas-Boas, adulterou com seu cunhado Inácio da Costa de Siqueira, alferes de infantaria da praça de Santos [...]. Deste incesto teve Sebastiana Pedroso três filhas, que foram expostas em diversas casas."

(1) A adolescência, como uma fase de transição, tal qual hoje a entendemos no mundo ocidental, era coisa desconsiderada naquela época.
(2) Talvez não totalmente.
(3) Em geral de origem indígena, e tanto mais numerosa quanto mais sucesso tivesse o bandeirante de quem era "propriedade".
(4) Era usual, na época, e o foi por muito tempo, entre pessoas de origem ibérica, que em público a mulher chamasse o marido de "Senhor Fulano", devendo o marido dizer "Dona Sicrana" ou ainda "Senhora Dona Sicrana".


Veja também:

domingo, 11 de agosto de 2013

Brincando de adivinhar

Quem de meus leitores será capaz de dizer, corretamente, qual o assunto da foto abaixo?


Não, não, senhores. Não se trata do degelo de um dos polos. É coisa bem diferente, asseguro-lhes!
É simplesmente um "detalhe" da poluição química aerada que cobria o rio Tietê na tarde do dia 17 de julho de 2013. Um observador desavisado, que olhasse a foto ao lado, mostrando o Tietê (em primeiro plano) e parte da cidade de Salto - SP, poderia até pensar que os extremos do inverno teriam feito o rio congelar...
Como o poluição do Tietê já foi alvo de várias postagens neste blog, parece-me desnecessário tecer maiores considerações. Basta apenas lembrar o quão hipócrita pode ser a sociedade contemporânea: faz-se um enorme barulho (quase sempre acertadamente) por causa de uma única árvore que eventualmente é cortada, e aceita-se, já quase sem estranheza, uma aberração dessas em um rio que atravessa quase todo o Estado de São Paulo. Os leitores devem conhecer outros exemplos.


Veja também:

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Os saltos do Piracicaba e do Tietê, há quase um século e atualmente

Vai aqui, hoje, uma postagem diferente do habitual. Os leitores verão, a seguir, duas fotos com quase cem anos - a primeira, do salto do rio Piracicaba (na cidade de mesmo nome), tendo M. Ferraz como fotógrafo, publicada na revista A Cigarra em 15 de maio de 1919 (¹), e a segunda, do salto do rio Tietê, (na cidade de Salto - SP), também publicada em A Cigarra, desta vez na edição de 30 de abril de 1918 (²). Não há, neste segundo caso, menção do nome do fotógrafo.
Cada uma dessas fotos quase centenárias está acompanhada de uma outra, atual, dos mesmos lugares (ainda que não com o mesmo ângulo de visão). Para tornar a coisa mais interessante, são dois exemplares de fotografia infravermelha.

Salto do Piracicaba






Salto do Tietê





Divirtam-se, senhores leitores, e tenham um ótimo dia!
Observação muito importante: O aspecto um tanto leitoso do rio Tietê não é obra do acaso, nem uma peça que nos prega a fotografia infravermelha. Trataremos da explicação desse "fenômeno" na próxima postagem.

(1) Ano VI, nº 112.
(2) Ano V, nº 90.


Veja também:

domingo, 4 de agosto de 2013

Peste Negra

Ratos, pulgas e uma doença que devastou a Europa medieval


A "Peste Negra" - peste bubônica - aterrorizou a Europa no Século XIV, embora nos subsequentes XV e XVI ela não deixasse de fazer eventuais aparições, não menos apavorantes, porém territorialmente mais restritas.
Vinda da Ásia, logo fez vítimas nas cidades portuárias, nas quais atracavam navios que traziam gente contaminada. Silenciosamente, os verdadeiros transmissores também desembarcavam: as pulgas dos ratos pretos (Rattus rattus), que infestavam as embarcações da época. (¹)
Declarada a peste, as autoridades faziam tudo o que podiam para impedir que a moléstia se propagasse, o que resultava em quase nenhum proveito, já que o "tudo" que se fazia estava totalmente errado. É que os europeus da época não faziam a mínima ideia de como, de fato, ocorria o contágio, e não podiam imaginar que as desprezíveis e incômodas pulgas eram as verdadeiras emissárias da pandemia.
Dentro das muralhas das imundas e fétidas cidades medievais, em que os mais básicos princípios de higiene eram desconhecidos, o estrago era enorme - alguns autores entendem que cerca de um terço da população europeia teria morrido durante a Peste Negra.
Contemporâneo a toda essa desgraça, o escritor Giovanni Boccaccio narrou em seu Decameron, com toda a clareza somente possível a uma testemunha ocular, o que ocorreu em Florença quando, em 1348, a peste manifestou-se na cidade. Nessa obra, um grupo de dez jovens, moças e rapazes, fugindo à contaminação, refugia-se no campo. Lá, para garantir algum entretenimento, passam os dias a contar histórias uns aos outros - aliás, histórias pra lá de licenciosas, verdadeiramente de arrepiar os cabelos, em se tratando de moral - para os padrões da época, naturalmente.
Pois bem, indo ao texto de Boccaccio, temos logo a descrição da chegada da peste e das providências que se tomaram, ainda que fracassadas, na tentativa de conservar saudável a população:
"No ano da encarnação de nosso Bendito Salvador de 1348, aquela notável mortandade apareceu na excelente cidade, assim como em todo o restante da Itália, cuja praga, por operação dos corpos superiores (²) ou, talvez, por nossas grandes iniquidades, foi, pela justa ira de Deus, enviada sobre nós, mortais. Alguns anos antes ela começara nas partes orientais, ceifando então inumerável quantidade de almas viventes. Estendeu-se de um lugar a outro até alcançar o Ocidente, chegando à dita cidade, onde nenhum conhecimento ou providência humana deixou de usar-se para a prevenção, fazendo-se todo o possível para afastá-la mediante diligentes funcionários para isso designados: nem a proibição da entrada de todas as pessoas doentes, nem toda a provisão diária para a conservação daqueles que estavam saudáveis, com incessantes orações e súplicas do povo devoto foram eficazes para manter distante a tão perigosa doença." (³)
Passa, então, a descrever os sintomas da enfermidade, conforme observou em seus dias:
"Por volta do princípio do ano, ela começou estranhamente, com o aparecimento de vários sintomas admiráveis, não como ocorrera nos lugares do Oriente, onde homens e mulheres por ela atingidos manifestavam os sinais de morte inevitável que se seguia ao sangramento do nariz. Aqui ela começou atingindo as crianças pequenas, tanto meninos como meninas, com o aparecimento de inchaços tanto nas axilas como na virilha, que eram do tamanho de uma maçã, em alguns casos, ou de um ovo, em outros [...]. Em breve espaço de tempo, as partes infectadas cresciam mortalmente, e então se espalhavam para todas as partes do corpo, depois do que, de acordo com a intensidade da doença, apareciam manchas negras ou azuladas, as quais podiam localizar-se nos braços ou nas coxas, ou em qualquer outra parte do corpo. Em alguns, as manchas eram poucas e grandes, e em outros, pequenas e numerosas.
Assim como o inchaço no princípio, as manchas eram um sinal certo de que a morte se aproximava [...]. Todos morriam, três dias depois do aparecimento dos primeiros sintomas [...], comumente sem qualquer febre ou outro acontecimento." (⁴)
Tratem de aguentar, leitores! O que vem a seguir é uma demonstração cabal de como a gente do Medievo não compreendia, em absoluto, como se dava o contágio, e o que é que ratos e pulgas tinham a ver com a peste:
"Esta pestilência era de tal força e violência que não somente as pessoas saudáveis que viam ou falavam com os doentes ou arrumavam suas roupas misericordiosamente para confortá-los arriscavam-se a contrair a doença, mas tocar as vestes ou qualquer alimento oferecido à pessoa enferma, ou qualquer coisa usada em seu serviço, semeava ou transferia a doença do enfermo para o saudável, de muito rara e estranha maneira. Entre tantas coisas absurdas, quero contar uma, que se os olhos de muitos (dentre os quais os meus) não houvessem visto, dificilmente eu teria coragem de escrever e muito menos acreditar, ainda que um homem digno de confiança me relatasse. Eu afirmo que a qualidade do contágio dessa pestilência era não só muito eficaz em passar de uma pessoa a outra, fosse homem ou mulher, mas ela depois se estendia, diante da vista de muitos, de tal modo que as roupas, ou qualquer outra coisa de qualquer um que morrera da doença, sendo tocadas ou postas sobre qualquer animal, independente da origem do morto, não somente contaminavam o dito animal, fosse cachorro, gato ou algum outro, mas também ele morria pouco tempo depois." (⁵)
Pulgas, pulgas, pulgas - pulgas!
Resta uma observação, algo mórbida, mas necessária. Pela época em que grassou a pandemia, a fome não era rara na Europa, em virtude de a produção de alimentos não acompanhar o crescimento populacional. A morte de tanta gente acabou por reduzir essa pressão, ainda que muitos trabalhadores da lavoura tenham acabado também nas valas comuns em que eram, às pressas, sepultadas muitas das vítimas da peste negra. Menos camponeses para trabalhar a terra, é verdade, mas também muito menos bocas para alimentar.

(1) Rattus rattus é o principal "hospedeiro" dessas pulgas, mas alguns outros roedores também podem fazê-lo.
(2) Era comum, na época, atribuir-se aos corpos celestes (planetas, estrelas e, em particular, cometas), a responsabilidade por grandes catástrofes.
(3) BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


Veja também:

quarta-feira, 31 de julho de 2013

As aranhas do padre Anchieta


"Umas são um pouco ruivas, cor de terra..."

Quem dentre meus leitores gosta de aranhas? Imagino que poucas pessoas, excetuando, por certo, os pesquisadores que se dedicam a elas - para bem da humanidade, felizmente.
"...outras pintadas, todas cabeludas"
Os monçoeiros que iam pelo Tietê e outros rios rumo ao interior do Brasil no Século XVIII eram acossados de contínuo por montes de aranhas que, caindo das árvores que margeavam os cursos d'água, iam dar nas embarcações - coisa que suscitava, neles, expressões constantes de desagrado, que beiravam ao horror, em alguns casos.
Muito antes dos monçoeiros, no entanto, o Padre José de Anchieta, missionário jesuíta no Brasil, instado a descrever a colônia portuguesa na América e suas particularidades, assim se referiu às aranhas, em uma carta ao Geral de sua Ordem:
"O que direi das aranhas, cuja multidão não tem conta? Umas são um pouco ruivas, outras cor de terra, outras pintadas, todas cabeludas; julgarias que são caranguejos, tal é o tamanho do seu corpo: são horríveis de ver-se, de maneira que só a sua vista parece trazer diante de si veneno." (*)
A carta da qual fazia parte o trechinho acima foi escrita em São Vicente, no fim de maio de 1560. Não se pode, por ela, concluir que Anchieta fosse um apreciador de aranhas, não é mesmo?

(*) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 115.


Veja também:

domingo, 28 de julho de 2013

Nobres, sim, mas muito pobres

Do que ficou dito na postagem anterior, alguém poderá depreender que os fidalgos portugueses, tão favorecidos pelo rei e pelas leis, deviam ser pessoas muito poderosas e também muito ricas. Mas não era essa a situação da totalidade da nobreza lusitana. Havia os nobres ricos, é claro, mas também os havia muito pobres, como se verá a partir de uma lei que, à primeira vista, poderia indicar mais um favorecimento à fidalguia, mas que devidamente analisada, reflete o estado de penúria em que viviam alguns dos "bem nascidos", "filhos d'algo". Aplicava-se a tal lei (conforme as Ordenações do Reino, Livro III, § 23) (*) no caso de ter a justiça decretado a penhora de bens de algum fidalgo:
"Porém não se penhorarão os fidalgos e cavaleiros e nossos desembargadores nos cavalos, armas, livros e vestidos de seus corpos, nem as mulheres dos sobreditos, nem mulheres fidalgas nos vestidos de seus corpos e camas de suas pessoas, havendo respeito ao que a cada um é necessário para seu serviço e uso, conforme a qualidade de suas pessoas, posto que outros bens não tenham. E nos cavalos, vestidos e coisas sobreditas que lhes não forem necessárias, se fará execução, quando não tiverem outros bens móveis ou de raiz."
Pobre nobreza, essa, que eventualmente nada mais tinha que a roupa do corpo, a cama em que dormia ou o cavalo de que se servia para ir de um lugar a outro!...

(*) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


Veja também:

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Desigualdade perante a lei: Os privilégios da nobreza em Portugal e seus domínios

Nas Repúblicas ocidentais o conceito da igualdade de todos os cidadãos diante da lei é visto como um dos pilares da democracia. Não se admitem, ou não deveriam ser admitidos, ao menos em teoria, quaisquer privilégios relacionados, por exemplo, à condição de nascimento de quem quer que seja. A atribuição de penalidade em caso de uma infração às leis não deve, também, estar relacionada à origem ou condição social do infrator. Não se reconhece, portanto, a existência de uma nobreza, camada social dotada de direitos superiores aos dos demais indivíduos. Mas nos antigos tempos das monarquias absolutistas as coisas eram explicitamente diferentes, com as desigualdades figurando de forma clara nas leis.
Vejamos o caso de Portugal. Como se justificava a diferença de tratamento atribuído à gente da nobreza e aos não-nobres?
Diz o Livro Segundo das Ordenações do Reino (¹), no Título 45:
"Como entre as pessoas de grande estado e dignidade e as outras é razão que se faça diferença, assim nas doações e privilégios concedidos às tais pessoas, costumaram os reis pôr mais exuberantes cláusulas, e de mais prerrogativas, para se mostrar a maior afeição e amor que lhes tinham."
Como se vê, o caso não carece de mais explicações. Vamos adiante, com algumas consequências práticas desse tratamento distinto.
Em caso de um réu da nobreza ser condenado à morte pela Casa da Suplicação, o mais importante tribunal do Reino, a sentença somente seria executada com o conhecimento e consentimento do rei, coisa que, em absoluto, não se concedia às "pessoas comuns":
"Porém, sendo o réu cavaleiro ou daí para cima, e condenado em morte natural, não se fará nele execução sem no-lo fazerem saber." (²)
No rito das audiências dos tribunais havia também prescrições relativas ao tratamento diferenciado de pessoas, conforme se vê no Livro Terceiro das Ordenações, Título 19, § 4:
"...Se na audiência estiverem pessoas religiosas, as ouvirá logo e despachará, para se logo irem, e então ouvirá as mulheres que aí estiverem, primeiro que ouça algum homem. E se alguns cavaleiros ou escudeiros, ou pessoas poderosas vierem à audiência, ouça-os, e lhes mande que se vão, e não lhes consinta que aí mais estejam [...]". Neste caso, no entanto, a providência era importante porque se pretendia evitar que as tais "pessoas poderosas" criassem tumulto nos tribunais, tentando impor pontos de vista pela força da posição social que ocupavam, como se vê no mesmo título e parágrafo: "...Se quiserem levantar palavras, defenda-lhes que não venham aí mais, e por seus procuradores requeiram seu direito nos casos em que procuradores o podem requerer."
Quando todos se iam, ouvia-se a gente do povo:
"E depois ouça os homens de menor qualidade, os quais virão um a um à vara com aquele acatamento que à Justiça é devido, e enquanto a ela estiverem, estarão sempre com o chapéu na mão, salvo se o julgador, por alguma causa ou qualidade de suas pessoas os mandar cobrir." (³)
Finalmente, resta acrescentar que, quando a Câmara de uma cidade ou vila lançava uma finta (⁴), havia uma lista enorme de pessoas que estavam dela isentas, o que, em última análise, significa que, para se atingir o valor necessário para cobrir o propósito da finta, todos os outros tinham que pagar mais:
"E as pessoas que são escusas de pagar na dita finta, quando assim for lançada, são as seguintes: os fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem, ou de criação de algum fidalgo [...], e assim mesmo os doutores, licenciados e bacharéis em Teologia, Cânones, Leis ou Medicina, que forem feitos por exame em estudo geral, e assim os juízes, vereadores, procurador do Conselho e tesoureiro no ano em que servirem [...]" (⁵)
Essa isenção não teria validade, porém, quando a finta tivesse por objetivo a efetivação de obras para defesa do lugar, como muros e fortalezas, ou ainda para construção de fontes, pontes e calçadas. A lei, podia, apesar de tudo, ser tida como generosa: ficavam também isentas das fintas "algumas pessoas que tão pobres sejam, que principalmente vivam por esmolas"...

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Livro I, Título Primeiro, § 16.
(3) Livro Terceiro, Título 19, § 4.
(4) Imposto em forma de quota que se lançava para uma necessidade específica do lugar.
(5) Livro Primeiro, Título 66, § 42.


Veja também: