domingo, 29 de dezembro de 2013

Como se fazia a cobrança do que era vendido "fiado"

Não é de hoje que pequenos comerciantes se veem em dificuldades para receber o valor de mercadorias que algum freguês levou sob a condição de pagar depois. Difícil, mesmo, é encontrar ainda quem se disponha a vender assim. As Ordenações do Reino (¹), no entanto, previam, antigamente, um mecanismo para solucionar esse tipo de problema, mecanismo que, como se verá, dificilmente poderia ter algum uso em nosso tempo.
Imagine-se, pois, que alguém vendesse, carne, pão ou vinho "fiado", e passando o tempo, não recebesse o valor correspondente. Em tempos nos quais a maioria das pessoas não sabia escrever, não se devia esperar que houvesse qualquer documento do comprovasse a dívida e que pudesse ser apresentado diante do magistrado a quem se dirigisse o credor. Que fazer? Dizia o Título XVIII do Livro 4º das Ordenações:
"O carniceiro (²) que der carne fiada a alguma pessoa, ou padeira pão, ou taverneiro vinho, e demandarem em juízo seus devedores a que ditas coisas fiaram, posto que não tenham testemunhas por que possam provar as dívidas, havemos por bem que sejam cridos por seu juramento, contanto que a dívida não passe de mil réis." (³)
Deve-se entender que o juramento era, de costume, feito sobre os Evangelhos. Sendo as pessoas muito religiosas, levavam a coisa a sério, de tal modo que - ao menos assim se esperava - o vendedor jurasse dizendo, necessariamente, a verdade. A legislação dava por suposto que ninguém ousaria trazer sobre si as penas do inferno por quantias tão modestas.
Havia, o caso, porém, em que a dívida alegada ocorrera há mais de um ano. Neste caso, era impossível exigir que fosse paga apenas mediante juramento. Fazia-se necessário haver pelo menos uma testemunha:
"Porém se o carniceiro, padeira ou taverneiro se calar por um ano, contado do derradeiro dia que deixou de dar carne, pão ou vinho fiado a seu devedor, sem nunca mais requerer a paga a quem o fiou, sendo eles ambos no lugar, e não tendo legítimo impedimento por que o não pudesse requerer, não sejam cridos por seu juramento em quantidade alguma, mas poderão demandar o que somente provarem. E neste caso valerá a prova de uma testemunha ou a confissão da parte, posto que seja fora do Juízo, e em ausência da outra parte, ou outra qualquer semelhante prova, na quantia dos ditos mil réis." (⁴)
O fato de que a prova fosse simplesmente a palavra de uma testemunha e não um documento escrito e assinado é, meus leitores, outro sintoma de uma sociedade com grande número de analfabetos. As coisas resolviam-se por palavra, mesmo porque, às vezes, nem mesmo o juiz sabia ler e escrever, conforme já mostrei em uma postagem anterior, datada de 23 de junho de 2013, que tinha por título "No Reino de Portugal, nem todos os juízes sabiam ler e escrever", e que foi parte da série "Ler e escrever, eis a questão".

(1) Publicadas no início do Século XVII. Valiam, pois, não apenas em Portugal, mas também em seus domínios ultramarinos, o que incluía, portanto, o Brasil durante todo o Período Colonial.
(2) Açougueiro.
(3) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(4) Ibid.


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