sexta-feira, 31 de julho de 2015

O uso da música na catequese empreendida por jesuítas no Brasil Colonial

Para os jesuítas que em meados do Século XVI trocaram as aparentes certezas da Europa pelo desconhecido da América, no rumo da missão que se atribuíam de catequizar os "gentios", ou seja, os povos indígenas, logo surgiu a questão de qual seria o método de maior eficácia, tanto para uma primeira aproximação como para o estabelecimento de um sistema regular de doutrinação entre os nativos. Algum tempo de experiência mostrou aos missionários que um poderoso recurso era a música, pela qual os indígenas eram apaixonados. Desse modo, nas escolas estabelecidas por jesuítas nas aldeias (¹) era usual que, ao lado de ler, escrever e contar, fossem ministradas lições de música, tão importantes, naquele contexto, quanto as de doutrina cristã.
O Padre Anchieta é bem conhecido por sua habilidade em pôr os ensinos em versos simples, que podiam ser facilmente memorizados, quer por filhos dos colonos, quer por meninos indígenas, ou ainda por catecúmenos já adultos. Consta ser ele mesmo o autor desta informação:
"No princípio do ano de 1578 veio por governador Lourenço da Veiga, o qual por si mesmo visitou as aldeias da doutrina que estão a cargo dos padres, com muito gosto e lágrimas de devoção, vendo as doutrinas, procissões, disciplinas e comunhões dos índios e as missas oficiadas em canto de órgão, em flautas, pelos filhos dos mesmos índios." (²)
E ainda o mesmo Anchieta, tratando da catequese de meninos que se empreendia em certa aldeia, observou:
"Em uma delas lhes ensinam a cantar e têm seu coro de canto e flautas para suas festas [...]." (³)
Segundo o Padre Simão de Vasconcelos, cujos escritos datam da segunda metade do Século XVII (⁴), foi o Padre Manuel da Nóbrega quem teve a ideia de fazer uso da música como recurso de catequese:
"Nenhuma outra satisfaz tanto a esta gente, como a doçura do canto: nela põem a felicidade humana. Chegou a ser opinião de Nóbrega que era um dos meios com que podia converter-se a gentilidade do Brasil, a doce harmonia do canto; e por esta causa ordenou se lho pusessem em solfa as orações e documentos mais necessários de nossa santa fé; porque à volta da suavidade do canto entrasse em suas almas a inteligência das coisas do céu." (⁵)
Para que ajudassem na catequese que se empreendia na recentemente fundada São Paulo de Piratininga, Nóbrega teria mandado que viessem meninos de São Vicente, já destros na arte de cantar:
"Para mais fácil catecismo de tanta gente, ordenou o Padre Nóbrega que viessem da vila de São Vicente aqueles meninos filhos de índios que [...] tinham ali criado os padres em seminário de boa doutrina, e sabiam já ler, escrever e cantar muitos deles: foram estes de grande ajuda a toda a sua gente, continuando na nova aldeia sua escola e ajudando a beneficiar os ofícios sagrados em canto de órgão com destreza e instrumentos músicos [...]. Juntavam-se à noite a cantar pelas casas cantigas de Deus em sua própria língua, contrapostas às que eles costumavam cantar, vãs e gentílicas [sic] [...]." (⁶)
E acrescentaria, quanto ao gosto que indígenas demonstravam pela música:
"São afeiçoadíssimos à música, e os que são escolhidos para cantores da igreja prezam-se muito do ofício, e gastam os dias e as noites em aprender e ensinar outros. Saem destros em todos os instrumentos músicos [...], com eles beneficiam em canto de órgão Vésperas, Completas, Missas, Procissões, tão solenes como entre os portugueses." (⁷)
Com algum esforço da imaginação, quase podemos ver e ouvir os missionários e seus pequenos discípulos cantando e tocando pelas aldeias. A favor dos jesuítas deve-se notar que, se ensinavam português aos índios, punham, simultaneamente, todo o empenho em aprender a língua dos nativos, fixando-lhe a gramática e nela fazendo escrever e publicar um catecismo.

(1) Quase sempre aldeamentos forçados pelas autoridades coloniais, como condição para a paz com os povos nativos do Brasil.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 305.
(3) Ibid., p. 416.
(4) Cerca de um século mais tarde, portanto.
(5) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 71.
(6) Ibid., pp. 91 e 92.
(7) Ibid., p. 120.


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quarta-feira, 29 de julho de 2015

Conselhos de Hesíodo para camponeses e navegadores gregos da Antiguidade

Sátira da colheita da uva, de acordo com uma ânfora grega (¹)

Hesíodo, o poeta grego, viveu por volta do Século VIII e/ou VII a.C.,  de modo que, em seus dias, a maioria das pessoas passava quase toda a existência em tarefas relacionadas à agricultura e pastoreio. Não chega, pois, a ser nenhuma surpresa que a mais famosa de suas obras, Os Trabalhos e os Dias (ao lado da Teogonia), trate exatamente das ocasiões mais favoráveis, ao longo do ano, para as atividades agropastoris, que, devidamente executadas, podiam garantir o sustento da população, em tempos nos quais prover alimento, particularmente durante o inverno, podia ser um problema sério.
Portanto, Os Trabalhos e os Dias apresenta conselhos para os camponeses gregos, daquela época que o próprio Hesíodo acreditava ser uma "Idade de Ferro":
"Quando as Plêiades, filhas de Atlas, aparecem, é hora de dar início à colheita; quando, porém, desaparecem, chegou a hora de cultivar a terra." (²)
"Trabalho protelado não abastece celeiro."
"Não procure a sombra, nem permaneça na cama pela manhã, ao tempo em que o calor de Hélios faz secar o suor."
Acontece que, em parte devido às características naturais do território que ocupavam, com litoral bastante recortado, os gregos vieram a ser bons navegadores, tendo em vista a realização de empreendimentos comerciais. Era simples: um eventual excedente na produção podia (e até devia) ser vendido em condições vantajosas. Navegar tinha seus riscos, mas trazia lucros e proporcionava uma certa variedade nos artigos disponíveis para consumo.
Para isso, também, Hesíodo tinha lá seus palpites, ainda que demonstrasse não ser um grande adepto dos riscos inerentes às viagens marítimas:
"Para os mortais, a época favorável à navegação tem início cinquenta dias após a conversão de Hélios (³), quando se aproxima o final do verão de muitos trabalhos. Nessa ocasião nenhum barco se quebrará, nem homem algum morrerá no mar, a não ser por intervenção de Poseidon, que faz tremer a terra, ou de Zeus, rei dos deuses, que decidem se virá o sucesso ou o mal." (⁴)
Era também possível navegar na primavera:
"A primavera também é favorável a quem navega; o mar pode ser percorrido quando, na figueira, brotam as primeiras folhas [...]."
Entretanto, era prudente, segundo Hesíodo, não brincar com o humor dos deuses. Quem navegava devia, tanto quanto possível, retornar cedo, não fosse o caso de alguma infelicidade alcançar o ambicioso navegador e comerciante:
"Volta logo para casa, sem esperar pelo vinho novo, pelas chuvas de outono ou pela chegada do inverno [...], quando a navegação se faz impossível."

(1) BUSCHOR, Ernst. Griechische Vasenmalerei. Mûnchen: R. Piper & Co., 1913, p. 144. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Todas as citações de Os Trabalhos e os Dias aqui apresentadas são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) O solstício de verão no Hemisfério Norte.
(4) Para os antigos gregos, o destino dos homens estava submetido aos caprichos dos deuses do Olimpo.


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segunda-feira, 27 de julho de 2015

Deficiências do sistema de distribuição de terras mediante doação de sesmarias

Pode parecer inacreditável, mas houve ocasiões, tanto no Período Colonial como durante o Império, em que chegou a faltar alimentos no Brasil. Como, diante de tamanha extensão de terra?
É fato que, no auge da prosperidade gerada pela cultura canavieira, com sua correspondente produção de açúcar, os agricultores somente à força plantavam gêneros alimentícios, porque a cana era mais lucrativa. Está aí, pois, uma explicação para a falta de comida, similar à que ocorreu nas áreas de mineração, quando havia gente que quase morria de fome, a despeito de ter muito ouro nas mãos. Outro fator era o sistema pelo qual eram distribuídas as terras cultiváveis, mediante a doação de sesmarias.
Pouco antes da independência, Auguste de Saint-Hilaire, um naturalista francês que, em suas pesquisas, percorreu boa parte do Brasil, observou:
"Nada se equipara à injustiça e à inépcia graças às quais foi até agora feita a distribuição das terras. É evidente que, sobretudo onde não existe nobreza, é do interesse do Estado que haja nas fortunas a menor desigualdade possível. No Brasil, nada haveria mais fácil do que enriquecer certa quantidade de famílias. Era preciso que se distribuísse, gratuitamente, e por pequenos lotes, esta imensa extensão de terras vizinhas à capital, e que ainda estava por se conceder quando chegou o Rei. Que se fez, pelo contrário? Retalhou-se o solo pelo sistema das sesmarias, concessões que só se podiam obter depois de muitas formalidades e a propósito das quais era necessário pagar o título expedido." (¹)
A antipatia de Saint-Hilaire pelas ditas concessões de terras vinha do fato de que elas favoreciam os ricos, em detrimento da população pobre:
"O rico, conhecedor do andamento dos negócios, este tinha protetores e podia fazer bons favores; pedia-as [as sesmarias] para cada membro de sua família e assim alcançava imensa extensão de terras. Alguns indivíduos faziam dos pedidos de sesmarias verdadeira especulação. Começavam um arroteamento no terreno concedido, plantavam um pouco, construíam uma casinhola, vendiam em seguida a sesmaria, e obtinham outra. O Rei dava terras sem conta nem medida, aos homens a quem imaginava dever serviços." (²)
Já os pobres... 
"Os pobres que não podem ter títulos, estabelecem-se nos terrenos que sabem não ter dono. Plantam, constroem pequenas casas, criam galinhas e, quando menos esperam, aparece-lhes um homem rico, com o título que recebeu na véspera, expulsa-os e aproveita o fruto de seu trabalho." (³)

Moradia de um agricultor brasileiro  (⁴)
Ainda de acordo com Saint-Hilaire, restava à população de agregados o recurso de plantar apenas aquilo que produzia rapidamente e podia, no caso de uma expulsão da terra, ser levado para outro lugar, por não ser tão facilmente perecível:
"O único recurso que ao pobre cabe, é pedir, ao que possui léguas de terra, a permissão de arrotear um pedaço de chão. Raramente lhe é recusada tal licença, mas como pode ser cassada de um momento para outro, por capricho ou interesse, os que cultivam terreno alheio e chamam-se agregados, só plantam grãos cuja colheita pode ser feita em poucos meses, tais como o milho e o feijão; não fazem plantações que só deem ao cabo de longo tempo, como o café." (⁵)
Fica, portanto, devidamente explicada a carência de determinados produtos no mercado interno. Mas que fique também entendido que, ao cultivarem apenas alguns gêneros de subsistência e não produtos exportáveis como o café, os pequenos lavradores de terras alheias cumpriam uma função dentro da lógica econômica predominante: atendiam às necessidades de consumo dos grandes proprietários e de modo algum metiam-se a fazer concorrência à produção das grandes unidades monocultoras.
Alguém argumentará que seria difícil que a produção de uns poucos cafeeiros pudesse representar concorrência. Sim, exatamente por isso é que se envidavam todos esforços para evitar o fracionamento das terras. A produção de um só lavrador não era concorrência, já a de muitos, bem poderia ser.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 24.
(2) Ibid., pp. 24 e 25.
(3) Ibid., p. 25.
(4) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi restaurada digitalmente e editada para facilitar a visualização.
(5) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 25.


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sexta-feira, 24 de julho de 2015

O momento em que os escravos deixaram de ser mercadoria

Retrato de um escravo (¹)
Nos tempos coloniais, Antonil afirmou que os escravos eram "as mãos e os pés do senhor de engenho" (²). Já no Império, o segundo Barão de Paty do Alferes, Francisco P. de Lacerda Werneck, escreveu que os escravos eram, para o fazendeiro, "a máxima parte de sua fortuna" (³). 
Tinham razão, tanto um quanto outro. 
Terras, por si mesmas, não produziam canaviais, algodoais, cafezais. Não. Era a mão de obra dos escravos que derrubava as matas, preparava o terreno, plantava, colhia, gerava riqueza, enfim, não para benefício dos próprios cativos, é evidente, mas para a prosperidade de seus senhores.
Além de força de trabalho, escravos eram mercadoria. Se um senhor quisesse, podia, a qualquer momento, vender os escravos que tinha, ou então comprar mais alguns. O preço dos escravos era determinado pela lei de mercado. Houve circunstâncias em que o preço de um escravo jovem e robusto foi quase às nuvens (nas minas de ouro, durante o Século XVIII, por exemplo). Uma escrava doméstica, capaz de cozinhar muito bem, passar e engomar a roupa com perfeição e, além disso, habilidosa em trabalhos de agulha, era igualmente muito valiosa.
Mas chegou um momento em que o valor de mercado dos cativos despencou. Ou seja, na prática, escravos deixaram de ser mercadoria. Ainda davam lucro pelo trabalho que faziam, quer nas fazendas, quer vendendo coisas pelas ruas ou ainda alugados para determinadas tarefas, mas não havia quase ninguém que quisesse comprá-los, razão pela qual o preço veio abaixo. Isso aconteceu intensamente na última década de vigência do regime escravista no Brasil.
Um livrinho publicado no Rio de Janeiro em 1885, sob o título A Abolição e o Crédito, afirmava que "os escravos, já de algum tempo custando preço insignificante, dão entretanto altos aluguéis, ou prestam serviços de valor a estes equiparados" (⁴).
Era assim mesmo. Por quê?
A perspectiva da abolição, que se mostrava inevitável, fazia com que ninguém mais quisesse arriscar o capital disponível em comprar escravos. Sociedades abolicionistas pipocavam por quase todo o país, auxiliando escravos com recursos para a compra da liberdade, uma tarefa grandemente facilitada diante dos baixíssimos preços que poderiam alcançar no mercado. As fugas de escravos que, no passado, eram casos isolados, agora ocorriam em massa, principalmente em áreas rurais, sem que as autoridades tivessem, então, muito ânimo em sair à sua procura. Vê-se que não havia mais espaço para a escravidão, ainda que alguns senhores muito teimosos insistissem que a abolição feriria o direito à propriedade assegurado pela Constituição, e que, portanto, cabia ao Estado indenizá-los.
Porém, a pressão, decorrente de interesses econômicos e políticos, ou em virtude de questões humanitárias, era enorme. A abolição veio, sem mais prazos e sem qualquer indenização, em maio de 1888.

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 22.
(3) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 16.
(4) PENIDO, José. A Abolição e o Crédito. Rio de Janeiro: Typographia da Escola de Serafim J. Alves, 1885, p. 12.


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quarta-feira, 22 de julho de 2015

Equipamento básico de viagem no Brasil do Século XIX

O que é que não pode faltar em sua mala ou mochila para uma viagem? Pense um pouco e compare com o que seria preciso levar se vivesse no Século XIX.

Liteira para viagens, Século XIX, construída em madeira e couro (¹)
Viajar pelo Brasil, antes da existência de ferrovias, era coisa que pouca gente fazia. As dificuldades eram enormes. Supondo que a viagem fosse terrestre, era preciso considerar que as distâncias deviam ser cobertas em lombo de animais, e, às vezes, a pé. Sim, havia quem viajasse em liteira, e até em rede. Nesse caso, seria indispensável ter escravos carregadores, embora algumas liteiras pudessem ser carregadas por animais. Eram poucas as estradas, e as que recebiam esse nome não passavam, como regra geral, de caminhos péssimos, repletos de buracos. Eventualmente era necessário atravessar trechos de mata, nos quais toda a confiança devia ser depositada nos conhecimentos de um guia experiente. Mas, se o guia cometesse um erro, os resultados podiam ser desastrosos. 
Hotéis, ao longo do caminho, simplesmente não existiam. Em alguns lugares havia os quase sempre imundos pousos de tropeiros, ou, com sorte, seria possível encontrar abrigo em casa de alguma família. Senão, era preciso acampar, sobre terreno nem sempre favorável.
Tendo andado pelo interior do Brasil um pouco depois da Independência, o Brigadeiro Raimundo José da Cunha Matos deixou um livro de apontamentos de viagem, cujo propósito era auxiliar àqueles que, depois dele, tivessem de enfrentar dificuldades semelhantes às que encontrara. Nessa obra teve o cuidado de anotar sugestões quanto àquilo que considerava ser o equipamento básico para a viagem de um "indivíduo abastado". Sigamos com ele:
"Um toldo ou barraca de brim; cama de campanha com armação de oleado; mesa elástica; uma cantina com um terno de quatro ou seis caçarolas, que tenham malhete para se introduzir o cabo, e possam acomodar-se umas dentro das outras; uma terrina redonda de folha de Flandres dobrada, dentro da qual se acomodem os pratos de folha de sopa e guardanapos; chaleira de ferro, bule, xícaras, pires, facas, colheres e garfos [...]." (²)
A lista incluía, ainda, castiçais, velas e, naturalmente, alimentos. Vê-se, portanto, que não era nada que um homem pudesse carregar sozinho. O tal "indivíduo abastado", para retomar a expressão usada por Cunha Matos, precisaria dispor de vários animais de carga, escravos e/ou tropeiros assalariados e, por suposto, de um guia tarimbado. Além de perigosas e cansativas, as viagens nessa época eram, já se nota, bastante dispendiosas. Correr mundo, como turismo, era coisa que passava pela cabeça de muito pouca gente.

(1) A liteira fotografada para esta postagem pertence ao acervo do Museu Histórico de Itapira - SP.
(2) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 18.


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segunda-feira, 20 de julho de 2015

Leilão de deuses

Estátuas de deuses penhoradas iam a leilão na Roma Antiga


Uma das mais frequentes acusações contra cristãos perseguidos no Império Romano era que, como adeptos de uma nova crença, não prestavam culto aos deuses popularmente venerados (como Saturno ou Juno, por exemplo). Assim, estariam desprezando as antigas tradições de Roma e eram, por consequência, dignos de morte.
Imperador Sétimo Severo (²)
Foi pela época da perseguição movida, a princípio pelo Senado, e depois apoiada pelo imperador Sétimo Severo, que Tertuliano escreveu sua famosíssima Apologia (c. 200 d.C.), obra na qual se propunha a defender os cristãos e sua fé diante dos ataques que sofriam. "Dizem que nós os cristãos", afirmou ele, "somos réus de sacrilégio e lesa-majestade, uma vez que não prestamos culto aos deuses e nem oferecemos sacrifícios em favor do imperador". (¹)
Vê-se que Tertuliano não negava a acusação, e nem havia motivo para fazê-lo. Os cristãos, como todo mundo sabe, eram e são monoteístas. O que Tertuliano se propôs a fazer foi mostrar que, embora não prestassem culto aos deuses de Roma, os cristãos nem de longe eram, com eles, desrespeitosos como os próprios romanos. Com isso registrou para o futuro um fato no mínimo curioso, que já veremos.
Júpiter (³)
Era comum em Roma que alguém, precisando de dinheiro, penhorasse um ou mais objetos. Ora, nem mesmo as estátuas dos deuses eram poupadas. Ocorre que, se não fossem resgatadas, as ditas estátuas iam a leilão em praça pública, juntamente com outras mercadorias, ou seja, no mesmo lugar em que eram comercializados legumes, verduras e outros gêneros alimentícios. E lá ficava o leiloeiro a apregoar a venda de uma estátua de Hércules, ou de Diana, ou de Júpiter... Quem quer comprar? Quem dá mais? Um Júpiter bonito, em muito bom estado!...
É pouco provável que Tertuliano tenha inventado essa história. Já que pretendia fazer a defesa dos cristãos, não iria elencar argumentos falhos, inúteis ou que fossem reconhecidamente mentirosos. Isso apenas reforça a afirmação de que, quando o cristianismo chegou a Roma, já encontrou os antigos ritos tradicionais em franca decadência. Suas festas eram ainda celebradas (afinal, eram festas!), mas os deuses já não convenciam quase ninguém quanto a supostos poderes sobrenaturais. Eram antes uma questão de tradição que de crença, propriamente. O caminho estava aberto, portanto, para uma nova religião, com pressupostos bem diversos daquela que antes fora praticada em Roma, ainda que, com o passar dos anos, a corrente majoritária do cristianismo tenha acabado por assimilar uma série de práticas típicas da religiosidade greco-romana. É o que se chama sincretismo.

(1) Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) STRONG, Eugénie. Art in Ancient Rome vol. 2, New York: Charles Scribner's Sons, 1928, p. 157. A Imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Ibid., p. 166. A Imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 17 de julho de 2015

Hortaliças cultivadas na Bahia no Século XVI

Como parte de seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares incluiu uma lista dos cultivos comuns na Europa que se adaptavam bem ao Brasil. Melhor: se devemos dar algum crédito ao seu relato, os ditos vegetais adaptavam-se bem demais!... 
Para recreação dos senhores leitores, vão aqui alguns trechos especialmente selecionados (*):

"Pepinos se dão melhor que nas hortas de Lisboa, e duram quatro e cinco meses os pepineiros, e dão novidade que é infinita, sem serem regados, nem estercados."

"Abóboras das de conservas se dão mais e maiores que nas hortas de Alvalade, das quais se faz muita conserva e as aboboreiras duram todo um ano sem se secarem, dando sempre novidades mui perfeitas."

"Melancias se dão maiores e melhores que onde se podem dar bem em Espanha, das quais se fazem latadas que duram todo o verão verdes, dando sempre novidades, e faz-se delas conserva mui substancial."

"Nabos e rábanos se dão melhores que entre Douro e Minho; os rábanos queimam muito, e dão alguns tão grossos como a perna de um homem [sic], mas uns e outros não dão semente senão falida e pouca, e que não torna a servir."

"Alfaces se dão à maravilha de grandes e doces, as quais espigam e dão semente muito boa."

"Coentros se dão tamanhos que cobrem um homem [sic], os quais espigam e dão muita semente."

"À hortelã têm na Bahia por praga nas hortas, porque onde a plantam lavra toda a terra e arrebenta por entre a outra hortaliça."

"Alhos não dão cabeça na Bahia, por mais que os deixem estar na terra, mas na Capitania de São Vicente se faz cada dente que plantam tamanho como uma cebola em uma só peça [sic], e corta-se em talhadas para se pisarem."

"Berinjelas se dão na Bahia maiores e melhores que em nenhuma parte, as quais fazem grandes árvores [sic], e torna a nascer a sua semente muito bem."

"Agriões nascem pelas ruas onde acertou de cair alguma semente, e pelos quintais quando chove [...]."

"Manjericão se dá muito bem de semente, mas não se usa dela na terra, porque com um só pé se enche todo um jardim [sic] [...]."

Chega, não?
Sim, a terra era promissora, apenas começava a ser cultivada, não havia invernos rigorosos e, de fato, em muitos lugares a produção era boa, mas não há como negar que, ao menos nesta questão das hortaliças, o senhor Gabriel Soares usou, no melhor dos casos, de certo exagero. Para não dizer outra coisa. 

(*) Todas as citações foram extraídas da seguinte edição: SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 158 - 161.


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quarta-feira, 15 de julho de 2015

Professores de primeiras letras no Brasil Colonial

Era aos jesuítas, nos tempos coloniais, que se atribuía a responsabilidade de ministrar instrução primária no Brasil. Porém, os padres da Companhia não eram nem de longe numerosos o bastante para o atendimento às vilas e cidades de um território tão vasto. Não é, portanto, necessário um grande esforço mental para perceber que a maioria das localidades via seus meninos crescendo na mais sórdida ignorância, até mesmo dos rudimentos de escrita. Não menciono as meninas porque, quanto a elas, geralmente se considerava que toda a instrução necessária tinha a ver com a administração da cozinha e trabalhos de agulha. Raríssimo era o pai que se preocupava com a educação de suas filhas, providenciando para elas um professor particular.
Acontece que em 1759, no reinado de D. José I, sendo ministro o Marquês de Pombal, os jesuítas foram expulsos de Portugal e de seus domínios de ultramar. Em se tratando de educação no Brasil, aquilo que já era deficiente ficou muito pior. As escolas de primeiras letras, mantidas supostamente pelo chamado "Subsídio Literário" (¹), salvo alguma honrosíssima exceção, revelaram-se autênticos desastres, empregando, para a função de professores, indivíduos que quase sempre primavam pela falta de tato em lidar com crianças e que, de conhecimentos, não eram de modo algum espécimes de destaque.
Foi ainda antes da Independência que Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês, andou pelo Rio Grande do Sul. Teve então a oportunidade de observar o estrago, em se tratando de educação, que a expulsão dos jesuítas ocasionara no território das Missões. O salário que o governo joanino destinava aos professores era tão baixo que simplesmente fazia com que ninguém quisesse dar aulas, de modo que as escolas permaneciam fechadas e as crianças cresciam sem qualquer instrução:
"Outrora, ensinava-se a ler e a escrever em todas as aldeias, mas essas lições cessaram há muito tempo. Porém, acaba de ser criado lugar de mestre-escola para todas as vilas reunidas; mas como não se quer pagar mais de 100$000 réis [...] parece que não se encontrará ninguém capaz de ocupar o lugar por esse preço e, realmente, a quantia é muito módica para uma região onde o alqueire de farinha custa 40$000 réis e tanto, e tudo o mais nessa mesma proporção." (²)
Não há, pois, senhores leitores, como questionar a velhice dos problemas relativos à instrução fundamental no Brasil. Estes, como muitos outros, ainda esperam, séculos depois, por uma solução decente.

(1) O Subsídio Literário era cobrado sobre algum produto de destaque na economia de um determinado lugar - cachaça, por exemplo.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 341.


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segunda-feira, 13 de julho de 2015

Leis suntuárias na Roma Antiga

Durante um bom tempo os romanos deram na mania de tentar proibir o luxo entre cidadãos de todas as camadas sociais, entendendo que o livre consumo de artigos sofisticados - de comida a mobiliário - acabava levando à perda dos severos costumes que garantiam a força de Roma. Fizeram-se leis nesse sentido, as chamadas "Leis Suntuárias", que restringiam o direito a usar certas roupas, por exemplo, apenas ao topo da sociedade. Mas não era só. Nos dias de Tibério - foi Tácito quem registrou - o Senado Romano proibiu não apenas que refeições fossem servidas em bandejas de ouro, mas também que homens usassem roupas de seda. Sim, às mulheres de alta posição social elas eram ainda consentidas.
A prática mostrava, no entanto, que as Leis Suntuárias dificilmente eram cumpridas...
As guerras externas trouxeram grandes riquezas para os romanos. Famílias poderosas, em busca de prestígio político junto às camadas populares, não hesitavam em gastar muito dinheiro em festas enormes, espetáculos de circo e de gladiadores, além de banquetes, tudo com o objetivo de ganhar apoio para suas pretensões na esfera do poder.
Dama romana (³) 
Talvez até hipocritamente, por volta do ano 775 da fundação de Roma (nono ano do império de Tibério) voltou o Senado à tentativa de apertar o cerco aos exibicionistas. Tibério foi, por suposto, consultado, e em uma carta que enviou aos senadores fez uma lista das coisas que, a seu ver, eram já excessivas entre o patriciado romano e, por isso mesmo, difíceis de extirpar: "...moradias construídas em grandes propriedades, escravatura numerosa e originária de diversos lugares, grande quantidade de prata e ouro, objetos mágicos (¹), roupas delicadas tanto para mulheres como para homens, joias femininas pelas quais damos nosso dinheiro a estrangeiros que são nossos inimigos [...]." (²)
Pois bem, o fato é que, a essas alturas, o próprio Tibério manifestava uma certa má vontade em combater o luxo, ou devido a achar que não valia a pena, ou mesmo porque também gostasse dele. Vespasiano ainda tentaria, até com o próprio exemplo, pôr obstáculos à ostentação e à gastança, mas sua frugalidade, se é que existia, foi embora com ele. De qualquer modo, as Leis Suntuárias, seja na Roma Antiga, seja em tempos posteriores e nos mais diversos lugares, pertencem à coleção daquelas que "não pegaram". O motivo foi, talvez, bem simples: elas atentavam contra as predileções humanas.

(1) Amuletos, talvez em forma de quadros.
(2) Tácito, Annales, Livro Terceiro. Tradução de Marta Iansen exclusivamente para uso no blog História & Outras Histórias.
(3) STRONG, Eugénie. Art in Ancient Rome vol. 2. New York: Charles Scribner's Sons, 1928. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 10 de julho de 2015

Cadeias públicas no Império do Brasil

Até uma oficina de ferreiro funcionava como prisão


No Brasil, como se sabe, tem havido por vezes uma enorme diferença entre o que as leis determinam/determinavam e o que em realidade sucede/sucedia. Um exemplo notável desse "fenômeno" é o que ocorria em relação às cadeias públicas nos dias do Império.
A Constituição de 1824, outorgada pelo primeiro imperador, D. Pedro I, declarava em seu Artigo 179, XXI:
"As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza dos seus crimes."
Cumpria-se? Nem tanto. Ou nem de leve. 
Joaquim Manuel de Macedo escreveu, entre 1862/1863:
"É verdade que um cárcere sempre é um cárcere. Mas ah! se em vez de passeardes comigo pela capital do Império, empreendêsseis uma viagem instrutiva pelas vilas do interior das nossas províncias, entrando na conta a do Rio de Janeiro [...], e visitásseis suas cadeias; cair-vos-ia, eu o juro, a alma aos pés, observando a inconstitucionalidade, o estado miserável desses focos de peste, onde se amontoam detidos de envolta com sentenciados, simples suspeitos de mistura com celerados, respirando todos ondas pesadas de um ar corrupto e repugnante [...]." (¹)
De passagem, recordemo-nos de que Macedo era, por formação, um médico, daí a preocupação com a qualidade do ar que respiravam os presos nas cadeias públicas. Aliás, a descrição feita por ele, levando-se em conta a atualização necessária, poderia ser perfeitamente aplicada a grande parte das cadeias e presídios da atualidade. Mas não mudemos de assunto...
Herança do período colonial, em muitos lugares a cadeia funcionava no primeiro pavimento de um prédio cujo andar superior era destinado à Câmara Municipal. Aos poucos, essas duas serventias foram ganhando independência, de modo que novas prisões deviam ser construídas. Nem sempre, porém, atendiam a critérios de higiene e de segurança.
Referindo-se à cadeia pública de Juiz de Fora, que viu em 1867, o inglês Richard Burton observou: "A prisão não guardaria um criminoso londrino durante um quarto de hora." (²)
Já sobre a prisão de Sabará, também em Minas Gerais, escreveu:
"Ao sul, fica um prédio pretensioso e antigo, de pedra-sabão embaixo e adobe em cima, tendo na frente uma sacada, apoiada em quatro colunas de madeira. O sino e as armas imperiais em cima mostram que se trata da Municipalidade; as feias janelas gradeadas embaixo mostram que se trata da cadeia. [...] Os presos pobres são aqui, como em todo o Brasil, sustentados pelo poder público, e não deixados, como em Goa e Madeira, na dependência da caridade privada." (²)
Em muito melhores condições estava, de acordo com o mesmo autor, a prisão de Ouro Preto, na época ainda capital da Província de Minas Gerais:
"O lado sul da praça é ocupado por um belo e sólido prédio antigo, a prisão; dizem os mineiros que, em Ouro Preto, só há duas coisas boas: a cadeia e a água. Alegava-se que era a melhor cadeia do Brasil; talvez fosse, mas, agora, não pode se comparar com a bem construída Casa de Correção (³). No local, há um chafariz com uma comprida inscrição, e uma dupla escadaria conduz à entrada, com sentinelas, flanqueada por janelas gradeadas. O primeiro e o segundo pavimentos têm colunas jônicas, com enormes e pesadas volutas, e ao redor do telhado há uma maciça balaustrada de pedra, com uma estátua da Justiça e outras virtudes de cada lado; também não foi esquecido o para-raios. Os presos são 454 homens e 12 mulheres, uma diferença notável. Visitamos, no andar superior, a enfermaria e as salas destinadas aos recrutas dispostos a desertar (⁴); o sistema de esgotos foi um tanto melhorado, mas ainda há algo a fazer, no que diz respeito à limpeza. Os presos mostram-se mais diligentes que habitualmente, e o diretor da prisão, Sr. Joaquim Pinto Rosa, judiciosamente providência para que todos eles executem algum trabalho manual."
Saibam porém os leitores que o caso mais estranho de prisão, cuja descrição conheço, foi mencionado pelo brigadeiro Cunha Matos, que esteve na Vila de São João da Palma poucos anos após a independência. Disse ele:
"Não há nesta vila Casa de Câmara, e uma loja de ferreiro serve de cadeia, de forma que os presos que estão com os pés no tronco, acham-se expostos às faíscas do ferro em brasa." (⁵)
Vejam lá se não havia, afinal, uma curiosa síntese de prisão e câmara de tortura! No entanto, o fato de que Cunha Matos tenha visto gente presa ao tronco, tendo os pés pouco a pouco torrados pelas faíscas, significa que nem mesmo semelhante tormento era suficiente fator de dissuasão à criminalidade.

(1) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 177.
(2) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 78.
(3) Do Rio de Janeiro, capital do Império.
(4) A descrição de Richard Burton data da época da Guerra do Paraguai. Muitos dos chamados "Voluntários da Pátria" nada tinham de voluntários: eram recrutados à força, e conduzidos ao serviço militar sob a mira das armas.
(5) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 146.


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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Feijão, o "pai da casa"


Por sua importância na alimentação de livres e escravos, o feijão recebia, antigamente, um nome muito curioso, de acordo com o que escreveu o segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em sua Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro:
"É este um alimento tanto mais sadio quanto necessário, e do qual um lavrador não deve deixar de ter a sua tulha bem sortida; serve ele para a principal alimentação dos trabalhadores e para o prato quotidiano das nossas mesas, dando-se-lhe o nome vulgar de pai da casa." (*)
Nos tempos coloniais, o feijão era o alimento mais frequentemente preparado para "pessoas comuns", nas viagens marítimas do Brasil ao Reino; era também importantíssimo na alimentação dos monçoeiros, de cujos hábitos em jornada nasceu o famoso "virado à paulista", preparado com farinha de mandioca e, quando possível, com outros ingredientes, como temperos.
Sendo guardado da umidade, o feijão conserva-se bem por um longo período, daí sua enorme utilidade, em tempos nos quais as técnicas de preservação de alimentos não eram as mais eficazes. Conforme menciona o Barão de Paty do Alferes, no trecho acima citado, era, em algumas regiões, a "principal alimentação dos trabalhadores" - dos escravos, entenda-se -, com a adição de farinha (de milho ou mandioca) e de alguma sobra de carne. Vejam, a feijoada estava a caminho!

(*) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 89.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Quando a fome quase arruinou Roma

Os antigos romanos eram muito supersticiosos. Sim, ainda há muita gente que é, até hoje, mas entre eles a coisa tomava forma de religião institucionalizada. Mantinham um colegiado de prognosticadores (áugures), que executavam o trabalho seguindo métodos bem estranhos, como examinar, por exemplo, as vísceras de animais que eram sacrificados.
Pois bem, é Tácito quem conta, nos Annales, que o ano 805 da fundação de Roma (*)  assinalou-se por uma série de eventos prodigiosos, que foram considerados desfavoráveis pelos "especialistas": aves de mau presságio foram vistas voando e pousando sobre o Capitólio, sucessivos tremores de terra resultaram no desabamento de muitas casas e, para cúmulo de todo isso, as colheitas foram muito ruins, sendo seguidas de grande fome, o que, ainda segundo Tácito, também foi considerado um prodígio. Poderia ser de outra forma? 
A situação tornou-se tão grave que o próprio imperador Cláudio, em uma ocasião em que dava audiência no tribunal, foi assediado pela multidão faminta, e só conseguiu sair de lá com o uso da força por parte de sua guarda pessoal. 
Roma, a grande Roma Imperial, estava à beira do caos. Só restava alguma comida para mais uma quinzena.
Porém... magnaque deum benignitate et modestia hiemis rebus extremus subventum... Os romanos acabaram salvos "da miséria extrema pela grande bondade dos deuses e pelo inverno moderado". Na prática, um inverno menos rigoroso possibilitou que não se interrompessem de todo as navegações para o Egito, de modo que generosos suprimentos de trigo foram embarcados e, atravessando o Mediterrâneo, chegaram à Península Itálica e salvaram Roma.
Tácito conclui suas considerações sobre o malfadado ano com uma crítica aguda à administração do Império. Sendo a Itália tão fértil como sempre fora, os romanos preferiam fazer de províncias distantes no norte da África o seu celeiro; podiam ter tão perto a subsistência, mas entregavam-se, afinal, à sorte e às condições de navegação.

(*) 52 d. C.


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sexta-feira, 3 de julho de 2015

Dificuldades para a exportação de produtos agrícolas no Brasil do Século XIX

Faz parte do abc de História nas escolas: o Brasil foi, durante muito tempo, um país economicamente dependente da exportação de produtos agrícolas.
Ora, assim falando, até parece que as ditas exportações eram um grande sucesso. Não era esse o caso, porém.
Em um livrinho escrito pelo Barão de Paty do Alferes (¹), datado de 1847, encontramos esta observação:
"Se o nosso café, o nosso açúcar, o algodão e outros gêneros, tivessem chegado a ganhar nas outras partes do mundo aquele conceito que têm ganho os produtos de outras nações, certamente não estariam meses e anos nos depósitos europeus sem saída." (²)
Situação lamentável! A que se devia?
A produção brasileira era reputada, internacionalmente, como sendo de má qualidade, quando comparada à oferta da concorrência. Latifundiários achavam que a quantidade era tudo o que interessava, mas estavam, como fica claro, incorrendo em erro. Apresentavam as mercadorias a preços relativamente baixos, mas isso não era suficiente para garantir compradores. O mercado exigia qualidade, e isso o Brasil da época não tinha a oferecer, nem mesmo em se tratando da produção da lavoura.
Verdade é que, nas décadas subsequentes, a conjuntura internacional até seria, em alguns aspectos, favorável. A título de exemplo: durante a Guerra da Secessão as exportações de algodão dos Estados Unidos despencaram, abrindo uma oportunidade para a produção algodoeira do Brasil. No entanto, o crescimento nas vendas foi meramente temporário, sem que houvesse uma política para firmar o produto, em caráter definitivo, nos grandes mercados.

Escravos carregando sacas de café, de acordo com Debret (³)
É fato que não se pode atribuir o fracasso no comércio internacional apenas à má qualidade da produção. Havia outros problemas, dentre os quais as dificuldades de transporte, tanto internamente, para escoamento das mercadorias até os portos, como no âmbito da infraestrutura portuária. Recordem-se os senhores leitores que, mesmo na segunda metade do Século XIX, quando foram construídas algumas ferrovias, o café seguia em trens do interior de São Paulo até Santos, mas lá, da estação ferroviária até o porto, era conduzido em carros de bois.
A questão incômoda é que, com cara de Século XXI, alguns desses problemas estruturais persistem até hoje.

(1) Francisco Peixoto de Lacerda Werneck.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 78.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 1 de julho de 2015

Como os indígenas do Nordeste preparavam carne assada

Administradores e militares que estiveram no chamado "Brasil Holandês" no Século XVII demonstravam uma intensa curiosidade sobre a fauna e a flora da América do Sul. Tinham também muito interesse em compreender o modo de vida dos povos indígenas com os quais entravam em contato. Não poucos desses europeus chegaram a ter um razoável conhecimento da língua predominante entre os ameríndios que, na época, viviam no Nordeste do Brasil. 
Joan Nieuhof esteve em Pernambuco entre 1640 e 1649. A maior importância de sua obra está ligada aos relatos vívidos que deixou das escaramuças entre os defensores do domínio holandês e os partidários de senhores de engenho de origem lusitana. Não obstante, em sua Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil há também descrições pitorescas do que era, então, a vida diária no Nordeste açucareiro. É fato que algumas dessas informações são provenientes de outros autores (como Piso e Markgraf), mas Nieuhof viveu bastante tempo na América do Sul e tinha muito para contar.
Uma de suas observações, com certeza resultante do contato com indígenas, refere-se ao modo como eles assavam carne. Escreveu Nieuhof:
"Para assar carne, procedem da seguinte maneira: cavam um buraco no chão, forram-no com folhas sobre as quais colocam a carne que vão preparar; cobrem-na com folhas da mesma espécie e depositam sobre uma camada de terra ou areia. Sobre essa arrumação acendem uma fogueira, que deixam arder até que presumam estar a carne suficientemente assada. Se acertam o ponto, a carne fica excelente, melhor que a preparada por qualquer outro processo. A esse sistema de preparar chamam Biaribi." (*)
Façamos umas poucas considerações:
  • Nieuhof falava apenas de indígenas do Nordeste do Brasil e, portanto, ninguém deve supor que a mesma técnica fosse seguida por todos os demais grupos ameríndios;
  • Ao contrário do que ocorria com muitos colonizadores, Nieuhof parecia ter grande interesse na cultura local, e sua observação sobre a preparação da carne assada sugere que, provavelmente, chegou a experimentá-la;
  • Sendo nômades ou seminômades, os indígenas dominavam técnicas simples de sobrevivência que podem ter sido muito úteis aos militares europeus durante os anos de guerra em Pernambuco, quando era necessário lutar em áreas sem quaisquer dos recursos comuns à civilização da qual provinham.
Para algum leitor que esteja inquieto quanto ao que aconteceu a Nieuhof (sabendo que a Companhia das Índias Ocidentais foi obrigada a sair do Brasil), informo que ele, ao perceber que o domínio holandês no Nordeste estava com os dias contados, conseguiu, depois de muita insistência, uma autorização para regressar à Holanda. Mais tarde continuou suas andanças pelo mundo afora, até que desapareceu sem que dele houvesse mais notícia. A primeira edição da Memorável Viagem Marítima, publicada em Amsterdã no ano de 1682, foi iniciativa de seu irmão, que quis prestar-lhe uma homenagem.

(*) NIEUHOF, Joan. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. São Paulo: Livraria Martins, p. 303.


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