sexta-feira, 31 de julho de 2015

O uso da música na catequese empreendida por jesuítas no Brasil Colonial

Para os jesuítas que em meados do Século XVI trocaram as aparentes certezas da Europa pelo desconhecido da América, no rumo da missão que se atribuíam de catequizar os "gentios", ou seja, os povos indígenas, logo surgiu a questão de qual seria o método de maior eficácia, tanto para uma primeira aproximação como para o estabelecimento de um sistema regular de doutrinação entre os nativos. Algum tempo de experiência mostrou aos missionários que um poderoso recurso era a música, pela qual os indígenas eram apaixonados. Desse modo, nas escolas estabelecidas por jesuítas nas aldeias (¹) era usual que, ao lado de ler, escrever e contar, fossem ministradas lições de música, tão importantes, naquele contexto, quanto as de doutrina cristã.
O Padre Anchieta é bem conhecido por sua habilidade em pôr os ensinos em versos simples, que podiam ser facilmente memorizados, quer por filhos dos colonos, quer por meninos indígenas, ou ainda por catecúmenos já adultos. Consta ser ele mesmo o autor desta informação:
"No princípio do ano de 1578 veio por governador Lourenço da Veiga, o qual por si mesmo visitou as aldeias da doutrina que estão a cargo dos padres, com muito gosto e lágrimas de devoção, vendo as doutrinas, procissões, disciplinas e comunhões dos índios e as missas oficiadas em canto de órgão, em flautas, pelos filhos dos mesmos índios." (²)
E ainda o mesmo Anchieta, tratando da catequese de meninos que se empreendia em certa aldeia, observou:
"Em uma delas lhes ensinam a cantar e têm seu coro de canto e flautas para suas festas [...]." (³)
Segundo o Padre Simão de Vasconcelos, cujos escritos datam da segunda metade do Século XVII (⁴), foi o Padre Manuel da Nóbrega quem teve a ideia de fazer uso da música como recurso de catequese:
"Nenhuma outra satisfaz tanto a esta gente, como a doçura do canto: nela põem a felicidade humana. Chegou a ser opinião de Nóbrega que era um dos meios com que podia converter-se a gentilidade do Brasil, a doce harmonia do canto; e por esta causa ordenou se lho pusessem em solfa as orações e documentos mais necessários de nossa santa fé; porque à volta da suavidade do canto entrasse em suas almas a inteligência das coisas do céu." (⁵)
Para que ajudassem na catequese que se empreendia na recentemente fundada São Paulo de Piratininga, Nóbrega teria mandado que viessem meninos de São Vicente, já destros na arte de cantar:
"Para mais fácil catecismo de tanta gente, ordenou o Padre Nóbrega que viessem da vila de São Vicente aqueles meninos filhos de índios que [...] tinham ali criado os padres em seminário de boa doutrina, e sabiam já ler, escrever e cantar muitos deles: foram estes de grande ajuda a toda a sua gente, continuando na nova aldeia sua escola e ajudando a beneficiar os ofícios sagrados em canto de órgão com destreza e instrumentos músicos [...]. Juntavam-se à noite a cantar pelas casas cantigas de Deus em sua própria língua, contrapostas às que eles costumavam cantar, vãs e gentílicas [sic] [...]." (⁶)
E acrescentaria, quanto ao gosto que indígenas demonstravam pela música:
"São afeiçoadíssimos à música, e os que são escolhidos para cantores da igreja prezam-se muito do ofício, e gastam os dias e as noites em aprender e ensinar outros. Saem destros em todos os instrumentos músicos [...], com eles beneficiam em canto de órgão Vésperas, Completas, Missas, Procissões, tão solenes como entre os portugueses." (⁷)
Com algum esforço da imaginação, quase podemos ver e ouvir os missionários e seus pequenos discípulos cantando e tocando pelas aldeias. A favor dos jesuítas deve-se notar que, se ensinavam português aos índios, punham, simultaneamente, todo o empenho em aprender a língua dos nativos, fixando-lhe a gramática e nela fazendo escrever e publicar um catecismo.

(1) Quase sempre aldeamentos forçados pelas autoridades coloniais, como condição para a paz com os povos nativos do Brasil.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 305.
(3) Ibid., p. 416.
(4) Cerca de um século mais tarde, portanto.
(5) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 71.
(6) Ibid., pp. 91 e 92.
(7) Ibid., p. 120.


Veja também:

2 comentários:

  1. A música chega facilmente ao coração das pessoas, é uma linguagem universal. E também abriu caminho para os jesuítas noutras lugares longínquos. Por exemplo, o padre Tomás Pereira tornou-se ministro no governo Qing (China), no século XVII, e amigo pessoal do imperador Kangxi em grande parte por ser um músico exímio e ser capaz de construir instrumentos musicais. Fantástico não é?
    beijinhos, querida Marta
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Impressionante. Fico pensando como seria se tivéssemos hoje ministros-músicos e/ou ministros-luthiers... Vê-se que o mundo todo (não só o Ocidente) mudou muito.

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.