sexta-feira, 24 de julho de 2015

O momento em que os escravos deixaram de ser mercadoria

Retrato de um escravo (¹)
Nos tempos coloniais, Antonil afirmou que os escravos eram "as mãos e os pés do senhor de engenho" (²). Já no Império, o segundo Barão de Paty do Alferes, Francisco P. de Lacerda Werneck, escreveu que os escravos eram, para o fazendeiro, "a máxima parte de sua fortuna" (³). 
Tinham razão, tanto um quanto outro. 
Terras, por si mesmas, não produziam canaviais, algodoais, cafezais. Não. Era a mão de obra dos escravos que derrubava as matas, preparava o terreno, plantava, colhia, gerava riqueza, enfim, não para benefício dos próprios cativos, é evidente, mas para a prosperidade de seus senhores.
Além de força de trabalho, escravos eram mercadoria. Se um senhor quisesse, podia, a qualquer momento, vender os escravos que tinha, ou então comprar mais alguns. O preço dos escravos era determinado pela lei de mercado. Houve circunstâncias em que o preço de um escravo jovem e robusto foi quase às nuvens (nas minas de ouro, durante o Século XVIII, por exemplo). Uma escrava doméstica, capaz de cozinhar muito bem, passar e engomar a roupa com perfeição e, além disso, habilidosa em trabalhos de agulha, era igualmente muito valiosa.
Mas chegou um momento em que o valor de mercado dos cativos despencou. Ou seja, na prática, escravos deixaram de ser mercadoria. Ainda davam lucro pelo trabalho que faziam, quer nas fazendas, quer vendendo coisas pelas ruas ou ainda alugados para determinadas tarefas, mas não havia quase ninguém que quisesse comprá-los, razão pela qual o preço veio abaixo. Isso aconteceu intensamente na última década de vigência do regime escravista no Brasil.
Um livrinho publicado no Rio de Janeiro em 1885, sob o título A Abolição e o Crédito, afirmava que "os escravos, já de algum tempo custando preço insignificante, dão entretanto altos aluguéis, ou prestam serviços de valor a estes equiparados" (⁴).
Era assim mesmo. Por quê?
A perspectiva da abolição, que se mostrava inevitável, fazia com que ninguém mais quisesse arriscar o capital disponível em comprar escravos. Sociedades abolicionistas pipocavam por quase todo o país, auxiliando escravos com recursos para a compra da liberdade, uma tarefa grandemente facilitada diante dos baixíssimos preços que poderiam alcançar no mercado. As fugas de escravos que, no passado, eram casos isolados, agora ocorriam em massa, principalmente em áreas rurais, sem que as autoridades tivessem, então, muito ânimo em sair à sua procura. Vê-se que não havia mais espaço para a escravidão, ainda que alguns senhores muito teimosos insistissem que a abolição feriria o direito à propriedade assegurado pela Constituição, e que, portanto, cabia ao Estado indenizá-los.
Porém, a pressão, decorrente de interesses econômicos e políticos, ou em virtude de questões humanitárias, era enorme. A abolição veio, sem mais prazos e sem qualquer indenização, em maio de 1888.

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 22.
(3) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 16.
(4) PENIDO, José. A Abolição e o Crédito. Rio de Janeiro: Typographia da Escola de Serafim J. Alves, 1885, p. 12.


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2 comentários:

  1. Não fazia ideia dessa oscilação do mercado! O que se aprende por aqui. Mas faz todo o sentido, se pensarmos nisso. E não consigo deixar de pensar também nessas pessoas que tudo faziam para ajudar os escravos a comprarem a sua liberdade. Fantástico.
    Beijinhos, uma linda semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. A luta abolicionista no Brasil teve lances incríveis, estando, até certo ponto, associada ao movimento republicano, embora nem todos os abolicionistas quisessem o fim do Império. É certo que havia gente de sentimentos humanitários, mas, como sempre acontece, interesses econômicos ditaram parte considerável dos acontecimentos, o que explica o motivo pelo qual a abolição demorou tanto a acontecer.

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