terça-feira, 30 de maio de 2017

Incêndios durante a estiagem

Incêndio no cerrado

Vejam, leitores, estes versos de A Confederação dos Tamoios:

"Era o tempo em que o sol abrasa tudo,
Em que as secas florestas se incendeiam,
E se extinguem as águas das torrentes."

De saída, cabe um reparo: a obra citada de Gonçalves de Magalhães (da chamada Primeira Geração Romântica) supõe descrever a natureza do Brasil no território em que viviam os tamoios. Pois digo que a descrição está errada. Os tamoios viviam principalmente em terras dos atuais Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, áreas cuja vegetação nativa é a Mata Atlântica. Não tem cabimento, portanto, a descrição contida nos versos. Ela se aplicaria, com toda correção, ao que sucede no cerrado durante a estiagem. Na Mata Atlântica, mesmo na estação em que as chuvas são menos frequentes, a vegetação jamais perde o verde, embora a ocorrência de incêndios seja sempre uma possibilidade. Sabe-se, porém, que os tamoios, assim como outros povos indígenas, costumavam atear fogo, intencionalmente, a qualquer área na qual pretendessem fazer algum tipo de cultivo, um costume explicável por não disporem de ferramentas adequadas à derrubada de árvores.
Bombeiros apagando incêndio em uma área
de cerrado em Brasília (ao fundo,
a Esplanada dos Ministérios)
Já no caso do cerrado, incêndios ocasionais são até benéficos e garantem a sobrevivência do bioma - há sementes que só germinam depois do fogo. Basta um raio, e as chamas proliferam. A questão é que, com a presença crescente de bípedes humanoides sem nenhum respeito pelo ambiente, o inferno, que era eventual, tornou-se corriqueiro. Gente descuidada e descumpridora das leis atira pontas de cigarro à beira das estradas (¹), e, não mais que alguns minutos mais tarde, o incêndio se alastra, por estar a vegetação brutalmente ressequida em razão da estiagem prolongada. Com o crescimento dos núcleos urbanos, o problema é gravíssimo, já que as chamas, por vezes, chegam muito perto das cidades. Exageradamente perto.
No Século XIX, quando a Expedição Langsdorff percorria parte do Brasil Central, Hércules Florence notou que as queimadas em áreas de cerrado eram usadas deliberadamente, na suposição de que facilitariam a prática da agricultura e/ou favoreceriam o desenvolvimento das pastagens. O desenhista francês conjecturou, com acerto, que cedo ou tarde a natureza acabaria por cobrar o preço dos repetidos incêndios:
"De pronto não nos era fácil adivinhar a razão por que todos os troncos e ramos das tortuosas árvores desses cerrados negrejavam como azeviche e o capim resplendia de verde tão uniforme. É que o fogo por ali passara e que tudo ressurgia simultaneamente; devendo esse hábito do caipira, que sem trabalho quer todos os anos renovar as pastagens para seu gado, produzir a esterilidade dessas belas regiões, caso não repare cultura mais inteligente tantos e tão seguidos estragos." (²)
É fácil constatar que, na primeira metade do Século XIX, os danos ambientais provocados pelas queimadas recorrentes não eram ainda compreendidos, em particular entre a população que vivia, no interior do Brasil, à margem de qualquer progresso científico. Muito estranho, porém, é que em nosso tempo, quando somos quase soterrados por informação (em quantidade e qualidade), ainda haja quem pense ser aceitável atear fogo à vegetação, da maneira mais inconsequente, seja lá pelo motivo que for.

O cerrado renasce após um incêndio - fotografia infravermelha

(1) Pior que isso: o incêndio é, às vezes, deliberado.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 160.


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quinta-feira, 25 de maio de 2017

Leis sobre escravidão no Código de Hamurabi

Ser escravo nunca foi fácil, mesmo quando movimentos abolicionistas passaram a questionar a legitimidade da apropriação do trabalho de um ser humano por outro, lutando para, em definitivo, extirpar tamanha injustiça. Imaginem, então, leitores, qual seria a condição dos cativos quando a escravidão era vista como a coisa mais "natural" deste mundo!...
Voltemos no tempo. No Século XVIII a.C. um rei da Babilônia, chamado Hamurabi, colocou em vigor um Código que, entre muitos outros assuntos, tratava de disciplinar (¹)  a escravidão. Como em quase tudo o mais que existia no Código, as penalidades que envolviam cativos eram terríveis. O exemplo seguinte comprovará o quanto isso é verdade:
"Se um escravo disser a seu senhor: Você não é meu senhor! Se ele for culpado, seu senhor lhe cortará uma orelha."
Que tal, leitores? Sem mais delongas, tratemos de considerar quatro aspectos das leis de Hamurabi relacionadas à escravidão.

I. Punição para quem acolhia um escravo fugitivo

"Se alguém receber em sua casa um escravo fugitivo, quer seja propriedade da corte real ou de um homem livre, e não o apresentar para restituição quando for feito o aviso de fuga, o dono da casa será condenado à morte."
Notem, leitores, que havia pelo menos duas questões envolvidas. A primeira delas é que alguém podia ficar com um escravo fugitivo em casa para mantê-lo na condição de cativo, e isso caracterizaria furto de algo que era propriedade de outra pessoa; a outra questão possível é que era crime facilitar a fuga de escravos, porque atentava contra a ordem social vigente. Será útil acrescentar que, caso alguém capturasse um escravo fugitivo, ao devolvê-lo devia ser recompensado com certa quantidade de prata - nesse tempo ainda não havia dinheiro amoedado.

II. Punição para quem feria um escravo

No Código de Hamurabi imperava a chamada "lei de talião", ou seja, o ofensor devia, tanto quanto possível, ser punido exatamente com a mesma ofensa que praticara. Tal princípio, porém, não era válido quando envolvia um escravo, que, como mercadoria, era avaliado apenas por seu preço. Esse ponto pode ser satisfatoriamente entendido se considerarmos o que acontecia quando dois homens livres brigavam e, com um golpe, um deles feria o outro no olho, deixando-o cego. Neste caso, o agressor era condenado a também perder a visão (o método usual para isso era arrancar um olho), valendo a mesma regra em caso de outras lesões. Todavia, se a pessoa agredida era um escravo, a lei prescrevia coisa diferente:
"Se um homem livre golpear um escravo, de modo que fique cego, ou quebrar um osso de um escravo, deverá pagar [ao senhor] a metade do valor do escravo."
A interpretação óbvia é que a lesão diminuía a capacidade de trabalho do escravo e, portanto, era o senhor que deveria ser indenizado.

III. O que acontecia aos filhos de um homem livre com uma mulher escrava

A esta altura, os leitores talvez imaginem que, no Código de Hamurabi, todas as leis eram brutais. Mas não era assim, se a comparação acontecer em relação a outros códigos da Idade Antiga. Sim, havia traços de humanidade... Era o que ocorria quando um homem de condição livre tinha filhos com uma escrava que lhe pertencia. Eles somente teriam direito aos bens deixados pelo pai se, ainda em vida do senhor, fossem reconhecidos como seus filhos; porém, ainda que isso não acontecesse, por ocasião da morte do pai, tanto a escrava como os filhos seriam, de imediato, postos em liberdade (²).

IV. Situação de pessoas nascidas livres que eram temporariamente vendidas como escravas em consequência de dívidas

O Código de Hamurabi estipulava:
"Se um homem não conseguir pagar suas dívidas e precisar vender-se a si mesmo, ou sua mulher, filho ou filha para trabalhos forçados, então trabalharão durante três anos na casa daquele para quem forem vendidos, e no quarto ano serão postos em liberdade."
Embora essa lei pareça abominável em nosso tempo, era bastante suave, se comparada ao que estipulavam outros códigos da Antiguidade. Levava em conta que as pessoas escravizadas por dívidas haviam nascido livres e, portanto, não admitia que servissem perpetuamente. 

(1) Se é que cabe aqui tal palavra.
(2) Comparem, leitores, com o que ocorria, no Brasil, em relação aos filhos de um senhor com sua escrava.


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terça-feira, 23 de maio de 2017

Caça aos ratos

Ratos são nojentos e propagam doenças. É verdade que, como todos os seres vivos, têm seu lugar no ambiente, mas vivem extrapolando os limites razoáveis, com um crescimento populacional indescritível. Bem, se não fossem assim, não seriam ratos.
Quem vinha viver no Brasil Colonial, fosse por vontade própria ou não (¹), logo percebia que ratos eram mesmo um problema. Nos canaviais, por exemplo, deram muita dor de cabeça, e não só nos primeiros tempos do cultivo de cana-de-açúcar (²). Disso sabemos pelo que escreveu frei José Mariano da Conceição Veloso, em O Fazendeiro do Brasil:
"Requerem as canas serem mondadas cuidadosamente, tanto que vier crescendo a erva bravia. Fica-se livre deste trabalho quando elas, pelo seu crescimento, podem sufocar a erva que lhes nascer junto. Deve-se afastar toda a espécie de gado dos canaviais, e perseguir os ratos, que são mui gulosos delas." (³)
Holandeses que tentaram ocupar a Ilha de Fernando de Noronha no Século XVII tiveram que desistir do projeto. Adivinham o motivo, leitores? Sim, ratos, de acordo com o que informou J. Nieuhof (⁴), que esteve no "Brasil holandês" entre 1640 e 1649. E há também o famoso caso do primeiro casal de gatos que foi vendido em Cuiabá no ano de 1725 por nada menos que uma libra de ouro. Os bichanos ainda não existiam por lá quando uma praga de ratos nas plantações de milho e feijão levou a fome a essa rica área de mineração. Entende-se, portanto, a brutal inflação felina.
Que fazer quando os ratos eram uma calamidade? 
Pelo que lemos em alguns autores dos tempos coloniais, não era incomum o recurso às práticas indígenas para dar jeito nas infestações de murídeos. Gabriel Soares referiu, no Século XVI, que havia índios que usavam venenosos baiacus assados para exterminar ratos, mas não explicou como, exatamente, isso acontecia:
"Baiacu é um peixe que quer dizer sapo [...]; com os quais peixes assados os índios matam os ratos [...]." (⁵)
Outro que relatou, com certo humor, um método indígena de combate aos ratos, foi o capuchinho francês Yves d'Évreux, que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614:
"Há outra caçada de um verme [sic], tão divertida e agradável [...], é a dos ratos domésticos e selvagens.
[Os indígenas] não comem os domésticos, ao menos que eu saiba, porém caçam-nos cruelmente, porque se entra um rato em qualquer casa, reúnem-se todos os habitantes, uns com arcos e outros com flechas e paus, e com auxílio também de alguns cães (⁶) não escapa o pobre rato." (⁷)
D'Évreux teve o cuidado de especificar, ainda, o que se fazia com o rato morto:
"Depois de morto é espetado na ponta de uma vara fincada no meio da aldeia, para servir de alvo ao exercício das flechas dos meninos." (⁸) 

Rato, de acordo com uma publicação do Século XVI (⁹)

Mudanças políticas não acabam com ratos (óbvio, ou nem tanto). Após a independência continuava a haver ratos em quantidade no Brasil, e nem mesmo a capital do Império escapava ao domínio dessas repugnantes criaturinhas. Schlichthorst, um militar alemão contratado para o Segundo Batalhão de Granadeiros, relatou que frequentava, às vezes, algum modesto restaurante francês (sempre que seu magro salário, que vivia atrasado, permitia), indo, depois, para o lugar em que morava, onde roedores insistiam em fazer residência:
"Ali [num restaurante francês], tomo um copo de ponche, ouço muita asneira enfadonha e vou, afinal, para minha casa dormir esplendidamente, se os mosquitos e ratos deixarem, pois eles coabitam em toda choupana e em todo palácio da muito heroica cidade dos muito leais cariocas." (¹⁰)

(1) Havia, como se sabe, "colonizadores" forçados, ou seja, aqueles que, tendo cometido algum crime em Portugal, eram condenados a degredo no Brasil. Alguns ficaram tão felizes com a vida na América que nunca mais voltaram ao Reino.
(2) Uma planta que não era nativa do Brasil e que os ratos apreciaram muito.
(3) VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil  Tomo I, Parte II. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1799, p. 89.
(4) A primeira edição dos escritos de Nieuhof foi publicada na Holanda em 1682.
(5) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 291 e 292.
(6) Tanto poder de fogo para um animal tão pequeno?!
(7) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 153 e 154.
(8) Ibid., p. 154.
(9) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560, p. 114.
(10) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 88.


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quinta-feira, 18 de maio de 2017

Inimigos derrotados pelos romanos preferiam a morte ao aprisionamento

Os romanos amavam os triunfos, grandes desfiles militares em que eram homenageados os comandantes vitoriosos e seus soldados. Os inimigos vencidos não tinham, de modo algum, o mesmo apreço por essas ostensivas demonstrações de força. Nada de bom esperava os derrotados: presos por correntes, eram obrigados a acompanhar o carro triunfal. Às vezes eram brutalmente arrastados.
Diante dessa perspectiva terrível, não eram poucos os que, na iminência da derrota, preferiam o suicídio. Uns poucos exemplos, mencionados por Aneu Floro (¹) em Epitome rerum Romanarum serão útil esclarecimento:
  • No último cerco a Cartago, ao final das Guerras Púnicas (²), foram os próprios moradores que atearam fogo à sua capital, de modo que os romanos nada tivessem para levar ao triunfo - muitos cartagineses se lançaram às chamas, que, segundo Floro, arderam incessantemente por dezessete dias.
  • Palavras de Floro, relativamente à guerra na Espanha: "Não restou, da Numância, um único para ser acorrentado, não sobrou botim de guerra e as próprias armas foram queimadas. O triunfo só se fez de nome." (³)
  • Quando Roma fez guerra contra a ilha de Creta, a pretexto de que seus habitantes teriam favorecido Mitridates, rei do Ponto e inimigo de Roma (⁴), muitos cretenses ingeriram veneno, já que não queriam cair nas mãos dos romanos.
  • Um caso menos numeroso e mais famoso: Marco Antônio e Cleópatra cometeram suicídio para evitar que, aprisionados, fossem submetidos à terrível humilhação que os aguardava no triunfo de Otávio, o mesmo que mais tarde seria chamado César Augusto (⁵).
Apenas para que os leitores tenham uma ideia do que acontecia a quem era capturado vivo, basta citar o caso de um bárbaro, também mencionado por Floro:
"Teutobocus não encontrou um cavalo para fugir e, aprisionado, foi arrastado no triunfo, proporcionando um espetáculo notável, porque sua altura ultrapassava a de todos os troféus de guerra." (³)
Ao final do triunfo, como é do conhecimento dos leitores, os derrotados eram executados ou escravizados. Há, no entanto, registro de alguns casos especiais em que vencidos foram libertados.

(1) Aneu Floro viveu entre os Séculos I e II d.C. e foi contemporâneo do imperador Adriano.
(2) 264 - 146 a.C.
(3) Os trechos citados de Epitome rerum Romanarum são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) O próprio Aneu Floro dizia que a acusação era inverídica.
(5) Aquele que é reconhecido como o primeiro imperador de Roma.


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terça-feira, 16 de maio de 2017

Brinquedos que já fizeram a alegria da criançada

Vejam isto, leitores, e digam se concordam ou não com José de Alencar:
"Nunca reparaste numa coisa. O menino a quem se dá um brinquedo, começa por mordê-lo e espedaçá-lo; se o brinquedo resiste, joga-o fora; se quebra-se, então o amima e afaga." (¹)
Bem, dirão alguns de vocês, isso era no Século XIX!... Sim, de acordo, mas quem é que nunca viu um pequeno triste por um brinquedo quebrado, ao qual, até então, não dera grande importância?
Mas falemos de brinquedos - não dos que se vendem, agora, em qualquer loja especializada, mas daqueles que eram comercializados há mais ou menos um século. Vem, a seguir, uma pequena coleção deles, em imagens que, algum dia, foram publicadas em revistas, com a intenção de atrair as boas graças dos pais. Eles, como sempre, é que pagavam a conta.

1. Tricicleta com cavalinho e carrinho sport (²)


2. Triciclo (³)


3. Trenzinho a corda (⁴)


4. Bonecas de porcelana (⁵)


5. Carrinho de corridas para crianças (⁶)


Não podemos deixar de notar que todos esses brinquedos, agora centenários, mas que já foram novidade, têm legítimos sucessores. Há alguns brinquedos, no entanto, que, mesmo sendo muito simples, têm atravessado os séculos. Séculos? Melhor dizer milênios. Aqui e ali, ainda podemos ver crianças brincando com bonecas de pano, com piões, com bolinhas de gude. Isso me dá a ideia de lançar um desafio aos leitores: qual seria o segredo da longevidade desses brinquedinhos que se recusam a desaparecer?


(1) A Expiação (comédia).
(2) O ECHO, Ano VIII, nº 75 - São Paulo, maio de 1908.
(3) A CHRONICA, Ano I, nº 2, p. 39 - São Paulo, fevereiro de 1908.
(4) PARA TODOS, Ano XII, nº 615 - Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1930.
(5) O ECHO, Ano XV, nº 2 - São Paulo, Agosto de 1916.
(6) O ECHO, Ano XV, nº 4 - São Paulo, outubro de 1916.


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quinta-feira, 11 de maio de 2017

Escrever na areia

Escrever, hoje, é algo comum e mesmo indispensável, ao menos no mundo ocidental. Na Antiguidade, porém, a escrita não era para todos. Egípcios e mesopotâmios tinham especialistas em escrita - os escribas -, donde se vê que, nesse tempo, a capacidade de escrever era, por si mesma, uma profissão. No caso da Grécia e de Roma Antigas, o desenvolvimento cultural conduziu à ideia de que o estudo, a começar pela escrita, era importante para a formação da elite política. A capacidade de escrever, tanto quanto a de falar em público, passou a ser vista como algo essencial ao exercício da cidadania. 
Os papiros e pergaminhos, suportes frequentes para escrita daquilo que se pretendia durável, eram caros, de modo que nem todo mundo tinha acesso a eles. Nas escolas do mundo romano era usual que as crianças escrevessem com pequenos bastões sobre tabuinhas cobertas de cera, que tinham a vantagem da reutilização. Entre os antigos gregos não era nenhuma raridade que pequenas anotações fossem feitas em pedaços de cerâmica.
E quanto àqueles rabiscos comuns do dia a dia, aqueles que ninguém acreditava merecessem a honra de ficar para a posteridade? 
Temos uma pista do que acontecia através de um episódio referido por Aurelius Augustinus (ou Santo Agostinho, se preferirem) em suas Confissões. Afirmava ele ter-se dedicado, quando jovem, ao estudo das Categorias de Aristóteles, obtendo delas uma compreensão excelente. O mesmo não acontecia com seus companheiros que, a despeito de muito esforço, não conseguiam meter na cabeça o pensamento do filósofo estagirita. Augustinus, disposto a ajudar os amigos, tecia comentários, dava explicações e (eis aqui o que mais nos interessa), fazia esboços na areia. Essa era uma prática comum entre povos antigos (¹), embora hoje esteja restrita, em quase exclusividade, ao universo das brincadeiras infantis.
Mais de mil anos depois de Santo Agostinho, outro escritor traçaria palavras na areia, e olhem leitores, que também era em latim. O jovem missionário José de Anchieta, detido entre os tamoios, ocupou-se, no Século XVI, em escrever versos de seu poema dedicado à Virgem. Como naquele momento não dispunha de papel e queria memorizar o que ia compondo, traçava as palavras ao longo da praia de Iperoig (²). No tempo de Agostinho ou no de Anchieta, escrever na areia tinha um grave defeito: a transitoriedade. 

(1) Já imaginaram, leitores, quanta coisa interessante deve ter-se perdido por causa desse costume?
(2) Muito provavelmente localizada no litoral norte do atual Estado de São Paulo.


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terça-feira, 9 de maio de 2017

O que se devia fazer quando não havia açúcar (e, por consequência, faltava dinheiro)

Conselho do padre Antônio Vieira para um momento de crise econômica


A população da Cidade da Bahia (Salvador) era famosa, nos tempos coloniais, por amar a ostentação, tanto no vestuário quanto no luxo das casas. Isso era possível porque a produção e a exportação de açúcar eram bastante lucrativas, ainda que quem mais ganhasse com a indústria açucareira não estivesse em solo brasileiro.
Entretanto, na penúltima década do Século XVII, uma epidemia (¹) que levou muita gente à morte (e, portanto, também muitos escravos), fez declinar temporariamente o cultivo da cana. Não havendo cana para moer, os engenhos não podiam produzir açúcar e, não havendo açúcar para exportar, nada de dinheiro - nem para as necessidades básicas, menos ainda para o supérfluo. Os sobreviventes estavam mesmo em má situação (²).
Que fazer?
O padre Vieira, que era tão hábil no emprego da pena de escrever quanto no uso da língua em seus afamados sermões, propôs uma solução, conforme se vê em uma carta datada de 13 de julho de 1689:
"Este ano deixarão de moer muitos engenhos, e no seguinte haverá muito poucos deles que se possam fornecer. Aconselham os mais prudentes que se vista algodão, se coma mandioca, e que na grande falta que há de armas (³), se torne aos arcos e flechas, com que brevemente tornaremos ao primitivo estado dos índios, e os portugueses seremos brasis (⁴)." (⁵)
Que dizem os leitores: serviria a mesma ideia para outros momentos de crise econômica? 
Não deixemos de notar, porém, que as palavras do padre Vieira revelam uma espantosa dependência, por parte da população de origem europeia, de mercadorias que vinham do Reino, e que integravam, ainda, os hábitos quotidianos nas povoações coloniais.

(1) Descrições da época levam à conclusão de que se tratava de uma variedade de febre amarela, não originária do Brasil, já que os primeiros que manifestaram os sintomas da doença foram marinheiros que acabavam de chegar da costa da África.
(2) Principiava, também, a descoberta de ouro nas Gerais, um fato que contribuiria para agravar a escassez de mão de obra e o desinteresse pela produção açucareira.
(3) A preocupação com a falta de armas decorria dos frequentes ataques de corsários em vários pontos do litoral brasileiro.
(4) Era comum, na época, que os indígenas fossem chamados "brasis".
(5) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 2. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 382.


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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Os doze trabalhos de Hércules - um herói descontrolado e sua coroa de salsa

Há salsa (¹) na sua horta, leitor? Pois fique então sabendo que o grande Hércules (²) - é coisa da mitologia grega - usou, em certa ocasião, uma coroa de salsa. Em memória desse acontecimento obviamente lendário, os atletas que venciam nos jogos de Nemeia, bem como nos Jogos Ístmicos, recebiam, como prêmio, não uma coroa de louros, e sim uma de salsa. Isso é que é glória fugaz!...
E, por falar em Hércules, que tal relembrar o que a mitologia dos antigos gregos dizia sobre os doze trabalhos executados por esse herói descontrolado, que num acesso de fúria matou a mulher e os filhos? Sim, porque foi depois disso que, disposto a cumprir uma espécie de severa penitência, Hércules teve de realizar os tais trabalhos, tão célebres que, de boca em boca, já ninguém sabia ao certo quais eram, e até poderiam ser quatorze ou quinze. Arbitrariamente, vai aqui uma lista de doze dos mais recorrentes nos relatos antigos.

1. Primeiro trabalho (³) - Hércules mata o leão de Nemeia, famoso por atacar animais de pastoreio. Como a pele do leão era imune às setas de Hércules, só restou ao herói agarrar tão notável fera e matá-la com as próprias mãos. A propósito, Hércules era frequentemente representado com uma pele de animal sobre os ombros: a pele do leão de Nemeia.

2. Segundo trabalho - Hércules mata a hidra de Lerna. Mas que bicho era esse? Uma serpente de sete cabeças. Se uma cabeça era cortada, nasciam logo outras sete... Cortar cabeças da hidra resultaria, sem demora, em um curioso problema matemático. Portanto, Hércules resolveu a questão colocando fogo no lugar em que vivia a hidra. Morto o animal, teve a ideia de usar o sangue venenoso que dele escorria para preparar flechas com pontas que causavam feridas incuráveis.

3. Terceiro trabalho - Hércules captura, vivinho da silva, o javali de Erimanto, um animal tão perigoso quanto célebre pelos estragos que fazia. O caso é que Hércules precisou capturar o javali à unha, depois de uma correria insana.

4. Quarto trabalho - Do brutal para o meigo: Hércules captura, também viva, a corça de Cerineia, que tinha chifres de ouro e patinhas de bronze. Haja esforço! Hércules teve de andar à sua procura durante nada menos que um ano.

5. Quinto trabalho - Hércules mata os pássaros do lago Estínfalo. Não eram pássaros quaisquer: tinham dimensões gigantescas e seus bicos eram de ferro. Os cruéis voláteis matavam quem quer que ousasse se aproximar. Hércules, porém, fazendo uso de algumas das setas envenenadas com o sangue da hidra de Lerna, pôs fim à ameaça.

6. Sexto trabalho - Hércules captura e doma um touro feroz que aterrorizava a ilha de Creta (isso lembra outra história, não é?).

7. Sétimo trabalho - Hércules colhe maçãs de ouro no jardim das Hespérides (⁴). Que haveria de incomum nisso, a não ser o fato de que as maçãs eram de ouro? É que o tal jardim era guardado por uma criatura antipática, ou seja, um dragão de cem cabeças. Hércules, porém, não precisou matar o dragão, já que a ingrata tarefa coube ao gigante Atlas, a quem competia, com as costas e braços, sustentar o céu, para que não despencasse. Enquanto Atlas matava o dragão, Hércules ficou encarregado de segurar o céu. Depois, só fez o trabalho leve de entrar no jardim e colher as maçãs.

8. Oitavo trabalho - Hércules limpa os estábulos do rei Áugias. Parece fácil? Os estábulos não eram limpos há trinta anos, de modo que seu cheiro horrendo andava a tornar a vida insuportável em toda a Grécia. "Marmelada", dirão: Hércules, após desviar o curso de um rio, fazendo com que as águas, qual inundação, lavassem os estábulos, concluiu a tarefa em um só dia.

9. Nono trabalho - Hércules, depois de dominar as éguas de Diomedes, rei da Trácia, joga o próprio monarca para ser devorado por elas. É que as éguas, ao contrário dos animais de sua espécie, eram carnívoras e, habitualmente, alimentadas com a carne de quaisquer estrangeiros que chegavam ao reino de Diomedes. Problema resolvido!

10. Décimo trabalho - Depois de derrotar as famosas amazonas, Hércules rouba o cinto mágico de Hipólita, a rainha guerreira.

11. Undécimo trabalho - Hércules mata Gerion, singular figura dotada de três corpos, seis braços e, ainda por cima, seis asas. O assassinato tinha por objetivo capturar os bois que eram propriedade de Gerion. Detalhe: os bovinos eram guardados dia e noite por um cão feroz (que tinha duas cabeças), e por um dragão (de sete cabeças). Hércules deu jeito nos dois, é claro. Esse trabalho bem poderia ser classificado como morticínio em série, já que morreram Gerion, o cão e o dragão.

Hércules enfrentando Gerion, de acordo com uma ânfora grega (⁵)
12. Duodécimo trabalho - Hércules vai ao mundo dos mortos para buscar Cérbero, o cão terrível que guardava a entrada dos domínios de Hades (⁶). Interessante é que, ciente de que Hércules apenas executava aquilo que o deus Destino previra para sua vida, Hades consentiu na captura de Cérbero, desde que seu animal de estimação não fosse morto e que o herói não usasse armas. Será preciso dizer que Hércules concluiu com sucesso mais essa façanha? Cérbero, depois de ser apresentado triunfalmente ao rei Euristeu (⁷), foi devolvido a seu legítimo proprietário.

Não se enganem, leitores. O significado dos mitos ligados a Hércules (assim como acontece com todos os demais), vai muito além daquilo que está à superfície. Basta pensar um pouco.

(1) Petroselinum crispum. Para evitar que os leitores de língua espanhola tenham problemas em entender o texto, quero lembrar que "salsa", em português, é o mesmo que "perejil" em espanhol.
(2) Ou Héracles.
(3) Na Antiguidade, enquanto as lendas eram relatadas oralmente, parece que não havia uma ordem fixa para os trabalhos. Por isso, diferentes autores referem os trabalhos em ordens distintas. Aqui são apresentados segundo uma das sequências mais comuns. Os trabalhos, sempre doze, também variavam de um relato para outro.
(4) Filhas de Atlante - a mitologia vai longe...
(5) BUSCHOR, Ernst. Griechische Vasenmalerei. Mûnchen: R. Piper & Co., 1913, p. 111.
(6) Divindade que, segundo a mitologia grega, dominava o submundo ou mundo dos mortos.
(7) Segundo a mitologia, Euristeu era um pérfido meio-irmão de Hércules, encarregado de verificar o cumprimento das tarefas propostas ao herói.


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terça-feira, 2 de maio de 2017

Casamentos indígenas (na visão de colonizadores europeus)

De acordo com Gabriel Soares, que foi autor, colonizador e senhor de engenho do Século XVI, o casamento entre indígenas (¹) não era usualmente assinalado por grandes cerimônias: "Não têm em seus casamentos outra cerimônia mais que dar o pai a filha a seu genro, e como têm ajuntamento natural, ficam casados" (²). A poligamia não era incomum, principalmente no caso dos grandes chefes. Cada homem e mulher tinha, na habitação coletiva, sua própria rede de dormir e, supondo a curiosidade que há de passar pela cabeça dos leitores, já vai aqui a resposta à questão que imaginaram: "Quando o marido se quer ajuntar com qualquer delas [suas mulheres], vai-se lançar com ela na rede, onde se detém só aquele espaço deste contentamento [...]." (³)
Adiante, leitores! 
Para a maioria dos autores dos tempos coloniais, indígenas casados pareciam viver muito bem, sendo raro, entre eles, algum desentendimento. Não obstante, há frequentes menções ao fato de que, em uma aldeia indígena, as mulheres faziam quase todo o trabalho, enquanto os homens, ocupados com a caça e a pesca, viam nessas atividades quase um lazer, e não uma obrigação para a subsistência. (⁴)
Hércules Florence, desenhista francês que andou pelo interior do Brasil com a Expedição Langsdorff, afirmou em 1827 que mulheres indígenas preferiam o trabalho nas fazendas à vida na aldeia de origem: "Mais facilmente acostumam-se as mulheres [indígenas] nas fazendas, porque em sua tribo são escravas e infelizes." (⁵) E, ao descrever o desenho que fizera de uma índia bororo, explicou que, quando a tribo ia de um lugar para outro, era às mulheres que competia levar toda a carga:
"Carrega às costas um fardo, que posto em terra era da altura dela. Esse fardo compõe-se de esteiras, couros, peles enroladas e jacás cheios de vários objetos (⁶), peso enorme para essas infelizes mulheres que são os animais de carga daqueles índios. Tudo aquilo é amarrado com embiras e suspenso por uma faixa mais larga que lhes passa pela cabeça, acima da testa, o que as obriga a abaixarem o pescoço e a fronte, e a curvarem o corpo para diante.
Com tal carga, levam por cima uma criança escanchada nos ombros e um cãozinho. Ainda não é tudo, pois quando os maridos matam um porco-do-mato ou qualquer outra caça, metem-no num dos jacás que elas trazem às costas." (⁷)
Alguém poderá conjecturar que esse tratamento desumano para com as mulheres seria fruto da desestrutura social provocada pela colonização - afinal, as observações de Hércules Florence foram feitas no Século XIX, em ocasião um pouco posterior à Independência. Entretanto, o capuchinho francês Yves d'Évreux, que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, observou algo muito semelhante entre indígenas daquela área (⁸):
"[A mulher indígena] acompanha seu marido carregando na cabeça e às costas todos os utensílios necessários ao preparo da comida, às vezes a própria comida, ou os víveres necessários à jornada, como fazem os burros de carga com a bagagem e alimentação dos seus senhores." (⁹)
É óbvio que esses registros (de Florence e d'Évreux) não cobrem, nem de longe, a totalidade dos povos indígenas do Brasil. São casos específicos, mas parecem mostrar, ainda que em âmbito restrito, o que acontecia dentro dos grupos observados. Há quem argumente que os homens indígenas caminhavam livres de carga porque deviam estar prontos para a defesa do grupo.
Bem, já que falamos no padre d'Évreux, vamos a um incidente que prova que toda regra tem exceção, ao menos quanto às frequentes afirmações de que casais indígenas costumavam viver em paz. Às vezes, porém... Vejamos o que escreveu o capuchinho francês, testemunha ocular de um espetáculo digno de gladiadores da antiga Roma:
"Enquanto aí morei, aconteceu aborrecer-se um selvagem do mau gênio de sua mulher, a ponto de empunhar com a mão direita um cacete, e na esquerda segurar os cabelos dela, querendo experimentar se este óleo e bálsamo adoçaria o azedume de seu mal, porém admirou-se de ver, que caindo o fogo na chaga mais o aumentasse, porque podendo escapar-se de suas mãos, à vista dos vizinhos, tomou também ela outro cacete, quis fazer o mesmo ao marido, e depois de se haverem espancado reciprocamente com grande aplauso de todos [sic!!!], ficaram ambos em igualdade de circunstâncias frente a frente um do outro, sendo depois o marido a fábula e o assunto de todas as conversas, quer dos grandes, quer dos pequenos." (¹⁰)
Entendo, leitores, que podemos ficar por aqui, pois já temos asteriscos demais. O incidente não carece de maiores considerações...

(1) Neste caso, em particular, Gabriel Soares falava dos tupinambás.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 311.
(3) Ibid.
(4) Ver, sobre essa questão, o que escreveu Jean de Léry no Século XVI, relativamente aos tupinambás, em Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil.
(5) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 180.
(6) A descrição fornece uma ideia do que eram os pertences usuais nesse grupo indígena.
(7) FLORENCE, Hércules. Op. cit., p. 182.
(8) D'Évreux parece falar dos indígenas em geral, que conheceu no Maranhão, e não de algum grupo específico.
(9) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 81.
(10) Ibid., p. 91.


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