Escrever, hoje, é algo comum e mesmo indispensável, ao menos no mundo ocidental. Na Antiguidade, porém, a escrita não era para todos. Egípcios e mesopotâmios tinham especialistas em escrita - os escribas -, donde se vê que, nesse tempo, a capacidade de escrever era, por si mesma, uma profissão. No caso da Grécia e de Roma Antigas, o desenvolvimento cultural conduziu à ideia de que o estudo, a começar pela escrita, era importante para a formação da elite política. A capacidade de escrever, tanto quanto a de falar em público, passou a ser vista como algo essencial ao exercício da cidadania.
Os papiros e pergaminhos, suportes frequentes para escrita daquilo que se pretendia durável, eram caros, de modo que nem todo mundo tinha acesso a eles. Nas escolas do mundo romano era usual que as crianças escrevessem com pequenos bastões sobre tabuinhas cobertas de cera, que tinham a vantagem da reutilização. Entre os antigos gregos não era nenhuma raridade que pequenas anotações fossem feitas em pedaços de cerâmica.
E quanto àqueles rabiscos comuns do dia a dia, aqueles que ninguém acreditava merecessem a honra de ficar para a posteridade?
Temos uma pista do que acontecia através de um episódio referido por Aurelius Augustinus (ou Santo Agostinho, se preferirem) em suas Confissões. Afirmava ele ter-se dedicado, quando jovem, ao estudo das Categorias de Aristóteles, obtendo delas uma compreensão excelente. O mesmo não acontecia com seus companheiros que, a despeito de muito esforço, não conseguiam meter na cabeça o pensamento do filósofo estagirita. Augustinus, disposto a ajudar os amigos, tecia comentários, dava explicações e (eis aqui o que mais nos interessa), fazia esboços na areia. Essa era uma prática comum entre povos antigos (¹), embora hoje esteja restrita, em quase exclusividade, ao universo das brincadeiras infantis.
Mais de mil anos depois de Santo Agostinho, outro escritor traçaria palavras na areia, e olhem leitores, que também era em latim. O jovem missionário José de Anchieta, detido entre os tamoios, ocupou-se, no Século XVI, em escrever versos de seu poema dedicado à Virgem. Como naquele momento não dispunha de papel e queria memorizar o que ia compondo, traçava as palavras ao longo da praia de Iperoig (²). No tempo de Agostinho ou no de Anchieta, escrever na areia tinha um grave defeito: a transitoriedade.
(1) Já imaginaram, leitores, quanta coisa interessante deve ter-se perdido por causa desse costume?
(2) Muito provavelmente localizada no litoral norte do atual Estado de São Paulo.
(2) Muito provavelmente localizada no litoral norte do atual Estado de São Paulo.
Veja também:
Conclusão: funcionava como uma espécie de "folhas voláteis de memória ram"...
ResponderExcluirA mim, agrada-me pensar, quando vejo alguém escrever na areia da praia que está a enviar uma desesperada canção de amor pelas ondas do mar...
Gostei da comparação rsrsrsss...
ExcluirJá quanto a mandar uma "canção de amor pelas ondas do mar", parece coisa dos cancioneiros medievais. Só falta o som de um alaúde!
Falando sério: a última vez que vi alguém escrever na praia, o "memorando" era sobre futebol - nem Santo Agostinho e nem Anchieta iriam entender alguma coisa.
E hoje? São tantas as formas de registros virtuais, que não faltaram materiais para os historiadores do futuro. Todas noites, eu e um amigo de SP,trocamos ideias via face: sobre nossas buscas por emprego, sonhos de voltar a estudar, oportunidades, amores... Tudo isso, de certa forma, diz muito sobre o cenário atual do país... Interessante pensar nisso, né? que estamos deixando novos registros, ;)
ResponderExcluirSim, é interessante pensar que deixamos nossas "marcas" para o futuro.
ExcluirOutra questão, que também considero relevante: Como será que historiadores do futuro irão interpretar nossos registros? Se algumas interpretações do passado servirem como pistas, dá pra imaginar situações inusitadas.
Cada um, para melhor ser entendido, socorre-se daquilo que tem à mão, embora no caso da areia estivesse mais ao alcance do pé. :)
ResponderExcluirUm bom final de semana, Marta :)
Precisei parar de rir, para só agora começar a responder rsrsrssss...
ExcluirCada tempo tem seus hábitos, não é mesmo?
Tenha um ótimo final de semana! :-)))))))))))))
Marta,
ResponderExcluirMuito expressiva essa
sua publicação.
Aqui no ES há uma
uma programação que tem
por nome "Os passos de Anchieta",
Pessoas se juntam e caminham
de Vitória (capital) até Anchieta (depois de Guarapari) é um ato de fé e de cultura local. Cada participante leva um bastão
como Anchieta caminhava e parava para escrever na areia.
Bjins
CatiahoAlc.
Isso é muito interessante! Acho que lembra um pouco as peregrinações medievais, algumas delas existindo até hoje (como a do Caminho de Santiago). Muito válido, certamente, para preservar a memória de Anchieta e da colonização.
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