quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Era ou não era o navio de Teseu?

É questão espinhosa e, de acordo com Plutarco (¹), muito debatida na Antiguidade: era ou não era o navio de Teseu? 
Devo explicar. A tradição grega afirmava que, em tempos remotos, os atenienses, depois de uma derrota na guerra, haviam se obrigado a enviar a Creta, como tributo, a cada nove anos, sete rapazes e sete moças, que, lançados no infame Labirinto, seriam devorados pelo Minotauro. Cumpriu-se o acordo algumas vezes, até que o jovem Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, fazendo-se incluir entre os infelizes sorteados para a morte, foi a Cnossos, matou o Minotauro e, com o auxílio de uma estratégia criada por Ariadne, filha de Minos, rei de Creta, conseguiu escapar, retornando vitorioso a Atenas. É coisa lendária, já se vê, ainda que alguns tenham tentado explicar que haveria nisso um fundo de verdade: os jovens atenienses seriam escravizados em Creta, ficando o Minotauro por conta da imaginação. 
Em Vitae parallelae, Plutarco, que se apoiava na tradição oral e em autores cujos escritos, em sua maioria, não chegaram até nós, afirmou que os atenienses, agradecidos aos deuses, trataram de preservar para a posteridade a embarcação de trinta remos que fora usada por Teseu para ir a Creta e de lá retornar. O navio ficou, portanto, ancorado no porto, sem mais ser usado. Ocorre que, pela ação do tempo, uma parte ou outra ia, às vezes, se deteriorando, e era substituída por peça idêntica. Entra aí a questão referida por Plutarco: "O navio foi consertado tantas vezes, que filósofos de várias escolas de pensamento, em seus debates, citavam o caso como exemplo, defendendo alguns que o navio [apesar de tantos consertos] continuava a ser o mesmo que fora a Creta, enquanto outros alegavam que, já não restando nele partes originais, era agora uma nova embarcação." (²)
Ora, leitores, vamos transpor essa história para alguma coisa mais próxima de nós. Suponham que uma das embarcações da frota de Cabral, aquela do descobrimento oficial do Brasil em 1500, houvesse sobrevivido e estivesse ancorada, como relíquia, em um porto, no Brasil ou em Portugal, tanto faz. Com o tempo, para mantê-la viva, as peças danificadas pela maldade dos anos seriam substituídas por outras, mais novas, conservando-se, portanto, a forma, mas não a matéria-prima original. Quinhentos anos depois, pouca coisa restaria sem ser renovada. Seria, ainda assim, o navio da frota cabralina?
Para mais debate, pergunto: nós, quando adultos, somos ainda os mesmos de nossa infância e adolescência? Se sim, ou se não, em que sentido? Não acham, então, que, ainda hoje, o debate dos filósofos da Antiguidade tem lá sua razão de ser?

(1) c. 45 - c. 125.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Traição no escambo com os índios carijós

Colonizadores europeus e indígenas do Brasil, quando viviam em boa paz, praticavam o escambo, ou troca de mercadorias. Essas mercadorias eram chamadas "resgates", porque se dizia que quem ia ao sertão para tal comércio "ia resgatar". 
O escambo parecia interessante para ambas as partes. Aos indígenas, oferecia a possibilidade da aquisição de ferramentas mais eficientes que as suas, tradicionalmente feitas de pedra, além de objetos de adorno e outras quinquilharias. Aos colonizadores, era um recurso para a obtenção de madeiras, alguns alimentos e objetos de artesanato indígena, como redes, por exemplo. As trocas corriam bem quando nenhuma das partes se sentia lesada, ainda que, como se sabe, as ferramentas oferecidas para resgates - machados, facas, tesouras - nem sempre fossem de boa qualidade, e as roupas - camisas, calções, carapuças - não primassem pela excelência.
No entanto, um episódio relatado pelo jesuíta Simão de Vasconcelos em Vida do Padre João de Almeida mostra bem que, não satisfeitos em fazer as trocas, alguns moradores de Santos, uma das povoações coloniais mais antigas, tiveram a ideia de enganar carijós, indígenas que eram da chamada "região dos Patos", acessível por mar, ao sul da Capitania de São Vicente. Escreveu Simão de Vasconcelos:
"Partindo de Santos certos mancebos [...], chegaram ao porto dos Patos com sua embarcação, a título de seus resgates [...], e antes que corressem os índios ao contrato, trataram este estratagema: pregaram os caixões dos resgates no porão, debaixo da escotilha, de tal maneira que não pudessem ser abalados; vinham os simples, fora de tal engano, e desejosos da mercadoria, concorriam a bandos; os mancebos os mandavam abaixo a carregar os caixões para cima, e como eles estavam fortemente pregados, não podiam os índios abalá-los; chamavam mais e mais companheiros, e quanto mais resistência viam nos caixões, tanto mais entravam, sem receio algum e desacautelados, mas os enganadores sagazes, em vendo a embarcação que estava cheia, deram à vela, fechando as escotilhas, e levaram consigo índios e resgates. [...]." (¹)
É óbvio que o acontecimento não passou despercebido aos carijós que não tinham entrado na embarcação. Nas palavras de Vasconcelos, "[...] bramiam de raiva os que ficavam em terra, vendo a traição, e sentidos da perda e apartamento dos parentes, maridos e filhos, batendo logo os arcos, apregoaram guerra" (²). Por outro lado, pode-se imaginar o rebuliço em Santos, quando, de retorno a embarcação, saltaram em terra os seus ocupantes e deram notícia do que haviam feito. Continua Simão de Vasconcelos:
"Chegaram ao porto de Santos os capitães de tão ilustre feito, e sabido ele, acudiram os padres da Companhia (³), estranhando caso tão enorme; e como era o capitão daquela Capitania por nome Jerônimo Leitão, homem nobre e temente a Deus, repreendeu como devia o latrocínio [sic], e enviou por embaixadores dois dos nossos padres, chamados, um, o padre Agostinho de Matos, e outro, o padre Custódio Pires, aos quais fez entregar os índios com recado seu para os principais (⁴), de como estranhara o caso e o castigara, e fazia restituição e queria continuar as pazes com eles." (⁵)
Duas observações são aqui necessárias. A primeira é relativa a Jerônimo Leitão, o capitão-mor. Nobreza e religiosidade talvez não fossem preponderantes na decisão de devolver os cativos à sua gente. Mais importava, naquela hora, manter o bom relacionamento com os carijós, já que a Capitania de São Vicente vivia às turras com seus vizinhos indígenas, e mais um conflito não era exatamente uma coisa desejável. A segunda questão tem a ver com a atuação dos jesuítas no caso. Por que o padre Simão de Vasconcelos teria trabalho em contar o incidente, não fora para encarecer a atuação de seus irmãos de Ordem? Por outro lado, é sabido o quanto jesuítas se empenhavam pela liberdade dos povos indígenas que haviam catequizado ou que tinham a intenção de ainda catequizar. Nenhuma surpresa, portanto, que entrassem no caso, pressionando, talvez, o capitão-mor a agir. 
Como, afinal, acabou tudo isso? Vamos novamente às palavras de Simão de Vasconcelos:
"[...] Fizeram os padres sua embaixada, e aquietaram os índios por sua língua, de tal maneira que suspenderam os arcos, abrandaram sua ira e abraçando os padres prometeram paz e boa amizade, continuando os resgates e trato com os portugueses. [...]" (⁶)

(1) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, pp. 121 e 122.
(2) Ibid., p. 122.
(3) Referência aos jesuítas.
(4) Líderes tribais dos carijós.
(5) VASCONCELOS, Simão de S. J. Op. cit., p. 122.
(6) Ibid.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Raios, Augusto!

A invenção do para-raios, poupando, em consequência, muitas vidas, somente aconteceu no Século XVIII, quando os deuses romanos, com seus raios fulminantes, eram, há muito, coisa do passado. Os que viveram antes disso tinham, portanto, ainda mais motivos para temer as tempestades, que aqueles que vivem hoje.
César Augusto pode ter sido valente na luta contra Marco Antônio, e foi, sem dúvida, um político habilidoso ao tratar com as sensibilidades do Senado romano. Se não foi perfeito - ninguém é - soube, ao menos, conduzir Roma para tempos de alguma ordem, depois das turbulências dos triunviratos. Mas, quanto a Augusto, há mais uma certeza: tinha medo de raios, e levava a sério os cuidados para que os deuses mantivessem bem longe essas poderosas descargas elétricas que enchem a atmosfera terrestre de luz. Bem, é claro que Augusto não sabia que os raios eram isso. Apenas tinha medo deles e cria que vinham dos deuses durante crises de mau humor.
No Livro II de De vita Caesarum, Suetônio contou que, sob instrução dos arúspices, Augusto fez construir um templo no monte Palatino em honra de Febo/Apolo. A alegação dos adivinhos profissionais de Roma é que o deus mandara um raio àquele lugar para indicar que era ali que desejava ser invocado. Brilhante conclusão!
Há mais: o próprio Augusto, em certa ocasião, escapou por muito pouco de ser atingido por um raio. O imperador fazia uma viagem noturna, carregado em uma liteira, quando, durante uma tempestade, um raio caiu muito perto dele. Agradecido por sobreviver incólume, fez consagrar um templo em honra de Júpiter Tonante. Um detalhe, também lembrado por Suetônio, não deve passar despercebido: o escravo que ia à frente da liteira de Augusto, carregando uma lanterna para iluminar o caminho, não teve a sorte do imperador. Foi ele a vítima do raio, e morreu na mesma hora.


terça-feira, 18 de agosto de 2020

A natureza do Brasil na visão de autores da Primeira Geração Romântica

Floresta virgem na Província do Rio de Janeiro, de acordo com M. Rugendas (¹)

Na literatura brasileira, a chamada primeira geração romântica exaltou a natureza, chegando às bordas do exagero. Essa foi, como se sabe, a geração que, passadas as turbulências relacionadas ao processo de Independência política do Brasil, encontrou condições que pareciam propícias à construção da nacionalidade. Nesse cenário histórico, o território do País e seus primitivos habitantes foram aclamados como o que poderia haver de mais perfeito no Universo. Não havia muito espaço para enxergar defeitos: Que escritor pensaria em uma menção a mosquitos para torturar os heróis das selvas, fossem eles indígenas ou colonizadores?
A questão, porém, é que o Brasil desse tempo tinha poucos leitores - a maior parte da população era de um analfabetismo absoluto. As obras demoravam a ser publicadas e a alcançar o público, daí certo descompasso temporal em relação ao Romantismo na Europa (²). Para demonstrar como se expressavam os autores românticos desse tempo, vamos a dois exemplos práticos. Comecemos com um trechinho d'A Confederação dos Tamoios (³), de Gonçalves de Magalhães:

"Das Américas plagas venturosas,
Que às mais plagas do mundo nada invejam,
Ufana-se o Brasil como a primeira.
Formosa é sempre aí a Natureza,
Eterna a primavera, o outono eterno.
Em leitos diamantinos pura linfa
Rega seus campos em caudais correntes.
Inúmeras, pujantes catadupas,
Voz dando à solidão, em cristais curvos
De rochedos alpestres precipitam-se,
E de horrendo estridor pejando os ermos,
De vale em vale, entre ásperas fraguras,
Onde atroam também gritos das feras,
Das serpes os sibilos, e os trinados
Dos pássaros, e a voz dos roucos ventos,
Viva orquestra parece a Natureza,
Que a grandeza de Deus sublime exalta!"

Que tal, leitores? Não se assustem. Se era moda falar difícil, escrever, então... Agora, tentem adivinhar quem é o autor e qual é a obra, da qual se extraiu o trecho abaixo:

"Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que, esvasando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo isto respira uma poesia imensa, que enche a alma."

Sim, é Guarani (⁴), de José de Alencar. Nem poderia faltar exemplo deste, concordam? Em alguns casos, o ufanismo nacionalista era levado a tal ponto, que se perdia o senso de realidade. Quando o Romantismo saiu de moda, ao menos como estilo literário, veio a crítica. Olhem o que disse Lima Barreto, já nos dias da República, em Os Bruzundangas (⁵):
"[...] todos os escritores, tanto os mais calmos e independentes, como os de encomenda, cantam a formosa terra da Bruzundanga. 
Os seus acidentes naturais, as suas montanhas, os seus rios, os seus portos são também assim decantados. Os seus rios são os mais longos e profundos do mundo, os seus portos, os mais fáceis ao acesso de grandes navios e os mais abrigados, etc., etc.
Entretanto, quem examinar com calma esse ditirambo e o confrontar com a realidade dos fatos há de achar estranho tanto entusiasmo."
Fica evidente que a paixão nacionalista, característica dos autores cujas obras datam do princípio do Segundo Reinado, dera lugar a decepções amargas. A República não trouxera, nem de longe, o remédio aos males políticos e sociais do País. Mas, é claro, Lima Barreto falava da Bruzundanga, não do Brasil. Compreendem, meus leitores? 
Passa o tempo, mudam as circunstâncias, observo apenas, a título de conclusão, que a natureza, de fato esfuziante (mas com mosquitos e outras pragas), não dá a ninguém licença para ser destruída como se quer; os maus-tratos contra o meio ambiente têm preço. Um preço muito alto, afinal.

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Ainda que esta não seja a única causa.
(3) A primeira edição é de 1856.
(4) 1857.
(5) A primeira edição, póstuma, é de 1922.


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A busca por um tesouro, um imperador aprisionado e a colocação de uma cruz no principal templo asteca

Tendo chegado e conseguido entrar em Tenochtitlán, a capital asteca, Hernán Cortés se fez convidar pelo imperador Montezuma para ir visitar o principal templo da cidade. Os astecas, como se sabe, eram politeístas e, em seus rituais, incluíam a prática de sacrifícios humanos. Em lá chegando, Cortés teve a ideia de propor a Montezuma que se desfizesse de seus deuses, substituindo-os pelas práticas religiosas que os espanhóis traziam: "Para que vossa majestade e todos os seus sacerdotes  saibam, faça-me o favor e tenha por bem que no alto desta torre coloquemos uma cruz, e junto aos santuários [...] ponhamos uma imagem de Nossa Senhora [...]" (*).
Qual imaginam, leitores, foi a reação de Montezuma? Ficou furioso, é claro, e respondeu, ainda que mantendo a compostura: "[...] Se soubesse que tal desaforo me havias de dizer, não te mostraria meus deuses, que consideramos muito bons, nos dão saúde, água e boas colheitas [...], e a eles temos de adorar e oferecer sacrifícios. Peço que não sejam ditas outras palavras para desonrá-los" (*).
Sabemos desse diálogo porque Bernal Díaz del Castillo, um dos soldados espanhóis, escreveu, muito tempo depois, um relato da chamada "conquista do México", no qual o incidente é referido. Mas, entrando, por um instante, nos domínios da chamada História Contrafactual, convido os leitores a uma reflexão sobre o que poderia ter acontecido se Montezuma, em lugar de ficar furioso com a proposta de Cortés, houvesse concordado, fosse por medo ou curiosidade, ou sabe-se lá que outro sentimento. Tocando as bordas do absurdo: o que sucederia se os astecas houvessem, em massa, decidido que, daí por diante, seriam todos cristãos, pondo de lado suas seculares práticas politeístas? Teriam os espanhóis, num arroubo de alegria, festejado os novos irmãos de fé e, cristãmente, saído do México para ir à Espanha notificar a "seu rei e natural senhor" o sucesso de sua expedição missionária? Quem é que acredita na possibilidade de uma coisa dessas?
Ora, amigos leitores, o bando de aventureiros europeus (espanhóis, majoritariamente), não fora tão longe, passando por tantos riscos e privações, simplesmente pela glória de plantar uma cruz na mais importante pirâmide escalonada do México. Não, a expectativa era outra: riqueza, e muita riqueza, tão rapidamente quanto possível. Que fariam eles, se Montezuma e sua gente concordassem em se fazer cristãos? Iriam, ainda assim, aprisionar o imperador e exigir o gigantesco tesouro, cuja localização haviam, incidentalmente, descoberto?
Posteriormente, tendo aprisionado Montezuma, que, por algum tempo, foi conservado como uma espécie de imperador fantoche, para evitar agitações populares, Cortés impôs aos astecas a concessão de um lugar para símbolos cristãos no templo. Sem capacidade para reagir, Montezuma, a contragosto, teve que concordar. Seguimos com a narrativa de Bernal Díaz: "[...] Montezuma, ainda que com suspiros e semblante muito triste, disse que conversaria com os sacerdotes, e, depois de muitas palavras com eles, se pôs uma altar nosso, afastado de seus malditos ídolos, e a imagem de Nossa Senhora e uma cruz, e com muita devoção e dando graças a Deus, disseram missa cantada o padre da Mercê,  e ajudava a missa o clérigo Juan Díaz e muitos de nossos soldados; ali nosso capitão [Hernán Cortés] mandou pôr um soldado velho como guarda, e pediu a Montezuma que mandasse aos sacerdotes [astecas] que não tocassem em nada, salvo para varrer, queimar incenso e para pôr candeias de cera ardente dia e noite, ramos e flores" (*). 
Creio que são dispensáveis mais palavras para elucidar como andava a suposta "catequese". A Bernal Díaz faltou apenas a ideia de dizer que, para homens tão devotos, como aqueles do bando de Cortés, só mesmo a canonização seria uma recompensa adequada.

(*) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Todos os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 11 de agosto de 2020

Da proibição das fábricas por D. Maria I ao recomeço da atividade manufatureira no Brasil durante o Governo Joanino

Dois documentos algo extensos, mas de grande importância, distantes no tempo cerca de vinte e três anos, são fundamentais para o entendimento da origem das atividades industriais no Brasil. O primeiro deles, por ordem da rainha D. Maria I, proibiu a existência de fábricas e manufaturas (¹); o segundo, sob o governo do príncipe regente D. João, não somente autorizou o funcionamento das fábricas, como, ao menos formalmente, salientou sua importância para o desenvolvimento nacional, no contexto das medidas adotadas a partir da vinda da família real portuguesa ao Brasil. 

Documento 1 - Proibição de fábricas e manufaturas no Brasil (5 de janeiro de 1785)


"Eu, a rainha, faço saber aos que este alvará virem, que sendo-me presente o grande número de fábricas e manufaturas que de alguns anos a esta parte se tem difundido em diferentes capitanias do Brasil, com grave prejuízo da cultura e da lavoura e da exploração das terras minerais [sic] daquele vasto continente, porque havendo nele uma grande e conhecida falta de população, é evidente que quanto mais se multiplicar o número dos fabricantes, mais diminuirá o de cultivadores, e menos braços haverá que se possam empregar no descobrimento e rompimento de uma grande parte daqueles extensos domínios que ainda se acha inculta e desconhecida [...], e até nas mesmas terras minerais ficará cessando de todo, como já tem consideravelmente diminuído a extração de ouro e diamantes, tudo procedido da falta de braços, que devendo empregar-se nestes úteis e vantajosos trabalhos (²), ao contrário os deixam e abandonam, ocupando-se em outros totalmente diferentes [...], e sendo além disto as produções do Brasil as que fazem todo o fundo e base, não só das permutações mercantis, mas da navegação e do comércio entre os meus leais vassalos habitantes destes reinos e daqueles domínios (³), que devo animar e sustentar em comum benefício de uns e outros [...], hei por bem ordenar que todas as fábricas, manufaturas ou teares [...] excetuando tão somente aqueles dos ditos teares e manufaturas em que se tecem ou manufaturam fazendas grossas de algodão, que servem para o uso e vestuário dos negros, para enfardar e empacotar fazendas e para outros ministérios semelhantes, todas as mais sejam extintas e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos meus domínios do Brasil, debaixo da pena do perdimento em tresdobro, do valor de cada uma das ditas manufaturas ou teares e das fazendas em que nelas ou neles houver, e que se acharem existentes dois meses depois da publicação deste [...]."

Errava a rainha ao supor que o declínio na extração aurífera era causado pela falta de trabalhadores. Desconhecia, por certo, que as técnicas de exploração algo primitivas estavam na raiz do esgotamento precoce das jazidas. Pouco além de duas décadas mais tarde, outro documento apresentava conclusões opostas:

Documento 2 - Permissão para o funcionamento de manufaturas no Brasil (1º de abril de 1808)


"Eu, o príncipe regente (⁴), faço saber aos que o presente alvará virem, que desejando promover e adiantar a riqueza nacional, e sendo um dos mananciais dela as manufaturas, e melhoram e dão mais valor aos gêneros e produtos da agricultura e das artes, e aumentam a população [sic!] dando que fazer a muitos braços e fornecendo meios de subsistência a muitos dos meus vassalos, que por falta deles se entregariam aos vícios da ociosidade [sic!!!], e convindo remover todos os obstáculos que podem inutilizar, e prestar tão vantajosos proveitos, sou servido abolir e revogar toda e qualquer proibição que haja a este respeito no Estado do Brasil e nos meus domínios ultramarinos, e ordenar que daqui em diante seja o país em que habitem, estabelecer todo o gênero de manufaturas, sem excetuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno ou em grande, como entenderem que mais lhes convém, para o que hei por bem revogar o alvará de cinco de janeiro de mil setecentos e oitenta e cinco e quaisquer leis ou ordens que o contrário decidam, como se delas fizesse expressa e individual menção, sem embargo de lei em contrário."

A proibição de 1785 tinha por pretexto, entre outros, a "falta de braços"; o alvará de 1808, que autorizou a existência de fábricas, trazia a alegação de que elas davam "que fazer a muitos braços"; a proibição alegava que as verdadeiras riquezas do Brasil eram a produção agrícola e a mineral, enquanto o alvará de D. João começava por autorizar manufaturas para "adiantar a riqueza nacional", porque davam "mais valor aos gêneros e produtos da agricultura". Sob esse aspecto, o príncipe estava certíssimo. Interesses vários, inclusive no âmbito internacional, haviam levado sua célebre mãe a conclusões opostas e, ao menos sob o ponto de vista do Brasil, equivocadas.
A permissão, todavia, não era suficiente para fazer brotar fábricas. Havia, é claro, a necessidade de capitais para empreendimentos dessa natureza, sem falar que, quem tinha recursos, precisava ter, também, a disposição de arriscá-los em manufaturas cuja prosperidade era incerta. Haveria, nos anos subsequentes, a óbvia concorrência de produtos importados, ingleses, quase sempre, que, pelo Tratado de 1810, passaram a entrar no Brasil em condições vantajosas, e eram, por suposto, de melhor qualidade que aqueles que a indústria nacional, apenas nascente, poderia fornecer. 
Vê-se facilmente, pois, que apenas permitir fábricas não bastava. O próprio Governo Joanino procurou passar das palavras à ação, estabelecendo a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, que, por um conjunto de fatores, não chegou a ser um grande sucesso. Em 1817, Ayres de Casal registrou na Corografia Brasílica: "A indústria está a principiar com algumas fábricas: tem já uma de galões, outra de meias de seda, outra de chitas, outra de lonas" (⁵). Era um (re)começo, não há dúvida, mas lento, muito lento. 

(1) Dificilmente alguém iria proibir aquilo que não existia. Varnhagen, no Volume II da segunda edição de sua História Geral do Brasil, menciona a existência de uma importante "fábrica de descascar arroz" no Rio de Janeiro (pertencente a Manuel Luiz Vieira e Domingos Lopes Loureiro), de um curtume, também no Rio de Janeiro, e de uma fábrica de lonas na Bahia, isso durante o reinado de D. José I.
(2) Úteis e vantajosos para quem? Se fossem assim tão úteis, não seriam trocados, eventualmente, pelas manufaturas.
(3) Aqui sua majestade começava a dizer alguma verdade, talvez até mais do que a prudência de seu real cargo recomendava. Percebe-se qual era a causa (real) que a inquietava.
(4) Gosto desse D. João. Tinha seus defeitos (todos têm), mas, ressalvadas as especificidades de sua época, era um bom sujeito. Não se pode esperar que, emerso do Absolutismo, raciocinasse segundo a lógica das democracias ocidentais do Século XXI.
(5) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 31.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Escrevendo como César Augusto

Graças a Suetônio (¹), é possível saber detalhes curiosos da vida dos primeiros imperadores romanos, os Césares - sim, admitindo que suas informações sejam verdadeiras, e não um exercício de imaginação. Mas, se havia alguém em Roma que poderia investigar a documentação oficial em busca de material interessante para escrever, esse era Suetônio, que exerceu cargos importantes que lhe davam acesso aos arquivos do Império e à vida palaciana, acesso esse que chegou às bordas da indiscrição. Foi assim que nasceu De vita Caesarum, e é assim que tomamos conhecimento dos hábitos e manias de Augusto (²) quando o assunto era escrita.
Alguém de vocês, leitores, tem alergia às regras de ortografia? Augusto também tinha, a ponto de Suetônio pensar que era partidário da ideia de que se deve escrever tal qual se fala, e não segundo os padrões estipulados pelos gramáticos. Convenhamos: esse sujeito estava, ao menos quanto a tal assunto, mais para o Século XXI que para o tempo em que viveu. 
Ainda assim, tomou especial interesse na alfabetização de seus netos, a ponto de, sempre que possível, ir ele mesmo ensiná-los. Mas, para quem achou que esse era simplesmente um avô carinhoso, vai aqui uma mania: tentava ao máximo fazer com que os meninos imitassem sua própria caligrafia. Quanto a Agripina, sua neta, em uma carta elogiosa recomendava que, quer falando, quer escrevendo, fugisse de toda afetação. Sábio conselho, não é verdade?
Contudo, o imperador, que sofria com a saúde debilitada, tinha também alguma dificuldade para escrever, já que o dedo indicador da mão direita, particularmente em dias frios, não tinha o movimento normal. Estando assim, chegava a reforçar o dedo com um anel de chifre, a fim de poder escrever o indispensável. Se Augusto tinha todas as doenças que Suetônio lhe atribui, devia, provavelmente, sentir dores contínuas.

(1) Caio Suetônio Tranquilo, 69 - 141 d.C.
(2) Imperador entre 27 a.C. e 14 d.C.


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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Traje de passeio para uma dama sofisticada do começo do Século XX

O que vocês chamam de traje de passeio, leitores? Talvez respondam: Depende do passeio!... Direi, então, sendo esta a resposta, que estou de acordo com vocês. Ninguém vai ao teatro com o mesmo traje de quem faz um passeio matinal pela praia, e não se caminha por uma trilha junto à natureza com as mesmas roupas que se usaria para ir a um concerto. Não, pelo menos, em condições normais. Isso é parte, digamos, de uma espécie de código social subentendido, concordam?
Consideremos, então, o que poderia vestir uma dama elegante que vivia no Rio de Janeiro no começo do Século XX. O modelo que se vê ao lado foi, provavelmente, reproduzido de alguma publicação parisiense, e apareceu em 1906 na revista carioca O Malho, com o título: "Vestido para passeio diurno" (¹). A legenda apresentava esta descrição:
"De linho branco bordado com incrustação de rendas. Saia colante nos quadris e muito ampla na barra. Bolero com dragonas e mangas de renda fina disposta em babados. Camiseta de tulle presa por um longo cinto verde escuro. Chapéu de palha fina com larga copa de gaze plissé e três grandes plumas."
Tanta roupa para um passeio, no Brasil, no Rio de Janeiro! A inadequação ao clima fica evidente, embora a mesma publicação, na mesma página, destacasse a vantagem do uso de tecido branco, sob a autoridade de ser moda na França:
"Pois não imaginam de certo qual é a cor que ultimamente ganhou voga imensa, dominando a moda em todas as cidades elegantes da França. O branco.
Não é infeliz desta vez o capricho da moda. O branco, especialmente para o clima do Rio de Janeiro, é uma cor que sempre fica bem para todas as toilettes, desde o mais aparatoso vestido de baile até o mais simples vestuário de passeio pela manhã.
E com os tecidos modernos leves e vaporosos como sonhos, ou bordados com luxo de minaretes góticos [sic], pode-se fazer combinações variadíssimas do mais belo efeito." (²)
Já era, convenhamos, um progresso, porque no século precedente, quando o trabalho escravo era regra na capital do Brasil, era aos cativos e cativas que se reservava o vestuário branco, de modo que toda a gente de condição livre evitava roupas dessa cor.  No entanto, nesse modelo de 1906 ainda havia tecido e sobreposições em demasia, não só porque o recato da época ordenava, mas porque era moda em Paris. A suposta elegância tinha prioridade sobre questões como higiene e saúde.

(1) O MALHO, Ano V, nº 210, 22 de setembro de 1906.
(2) Ibid.


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