quinta-feira, 28 de maio de 2020

Uma bebida de cacau para o imperador asteca

Com um misto de curiosidade, ambição e medo, os europeus que faziam parte do bando comandado por Hernán Cortés chegaram a Tenochtitlán, a capital asteca, em 1519. Lá foram recebidos pelo temido imperador Montezuma (¹), cujo cerimonial e luxo deixaram os recém-chegados de queixo caído. Não era para menos: apesar de detestados pelos povos que dominavam, os astecas exerciam controle sobre uma vasta região, absorvendo, através de diversos tributos, muito da riqueza produzida.
À hora das refeições, um verdadeiro desfile gastronômico (à moda asteca) passava diante do imperador, tudo servido como a máxima higiene (²). Para acompanhar a comida, vinha uma bebida, que Bernal Díaz del Castillo, um dos soldados de Cortés, assim descreveu: "[...] traziam umas taças de fino ouro, com certa bebida feita do [...] cacau" (³), salientando que não era usada apenas pelo sabor: "[...] diziam que era para ter contato com mulheres" (⁴). 
Aos muito curiosos, fica a observação de Bernal Díaz, de que a dita bebida era feita "de bom cacau com sua espuma" (⁵).

(1) Ou Moctezuma, também conhecido como Montezuma II.
(2) Pelo que se depreende do relato de Bernal Díaz del Castillo, esse detalhe deve ter impressionado os visitantes.
(3) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


terça-feira, 26 de maio de 2020

A velocidade das locomotivas a vapor no Século XIX

O que é velocidade estonteante? A resposta dependerá não só da velocidade em si, levando em conta fatores fisiológicos, mas da época em que se vive, com suas percepções de rápido e lento peculiares. 
Tomemos como exemplo as locomotivas que percorriam ferrovias no Brasil na segunda metade do Século XIX. Muita gente tinha medo delas. Mas a quanto, afinal, ousavam correr? Uma publicação datada de 1875 oferece a seguinte resposta:
"As locomotivas empregadas pela Companhia Paulista são inglesas, [...] fabricadas por J. Fowler: têm dois eixos conjugados [...] e vencem, ordinariamente, trinta quilômetros por hora." (¹)
Locomotiva a vapor na Estrada de Ferro
D. Pedro II, 1881 (²)
Já as Baldwin, utilizadas pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, ofereciam uma experiência algo mais emocionante, em termos de velocidade:
"As locomotivas da Companhia Mogiana são americanas, da acreditada fábrica Baldwin, e de dois tipos diversos, para carga e passageiros.
[...]
Em 27 de agosto [de 1875] a máquina do trem inaugural venceu a distância entre Campinas e Mogi à razão de trinta e cinco quilômetros por hora, termo médio.
No dia seguinte, das cinco às seis horas da manhã, a velocidade média foi de quarenta a quarenta e três quilômetros por hora, verificada a relógio por profissionais, que fizeram a viagem de ida e volta na frente da máquina." (³)
Não seria, mesmo, para arrepiar os cabelos de ninguém. Mas, em 1875, era surpreendente.

(1) CÂMARA, J. Ewbank da. Caminhos de Ferro de S. Paulo e a Fábrica de Ipanema em Agosto de 1875. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1875, p. 5.
(2) A imagem original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) CÂMARA, J. Ewbank da. Op. cit., pp. 14 e 15.


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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Um assassinato brutal no Rio de Janeiro no Século XVI

A data oficial de fundação da cidade do Rio de Janeiro é 1º de março de 1565, no contexto da luta pela expulsão de franceses que tentavam fincar pé na área. Em 1535 não havia lá, ao que se sabe, nenhuma povoação permanente de colonizadores europeus, ainda que a terra fosse reconhecida como propriedade da Coroa portuguesa (¹). A despeito disso, há registro de um incidente sangrento ocorrido na região, quando, por duas semanas, em 1534 ou 1535 (²), ali esteve uma armada espanhola que ia ao Rio da Prata. O fato é conhecido pelo relato de Ulrich Schmidel, um alemão que viajava nessa armada, e que, muitos anos depois, de volta à Europa, publicou um livro que tinha por título Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart (³). Disse ele:
"Navegamos dessa para outra ilha [sic] chamada Rio Ienea (⁴) [...], que pertence ao rei de Portugal [...], onde ficamos cerca de quatorze dias. Foi lá que dom Pedro de Mendoza (⁵), nosso capitão-general, determinou que Juan de Osorio [...] nos comandasse como seu substituto, porque ele [Pedro de Mendoza] estava doente e sem poder mover-se. Não demorou para que Juan de Osorio fizesse inimigos e fosse falsamente acusado de promover um levante contra Pedro de Mendoza. Por esse motivo, dom Pedro de Mendoza mandou que outros quatro capitães [...] matassem o dito Juan de Osorio a punhaladas [...], e que o apresentassem como traidor. Fez também passar bando, ordenando que ninguém se atrevesse a ter compaixão de Osorio, para não incorrer em idêntico castigo." (⁶)
É fato que os comandantes de armadas que viajavam no Século XVI levavam permissão para agir como juízes absolutos, porque esse era um modo de assegurar a disciplina entre marinheiros e soldados, que, de outro modo, seriam, talvez, incontroláveis. Contudo, não houve, ao que parece, nenhum processo formal contra Juan de Osorio, bastando a acusação de que tramara uma revolta para que fosse morto. Não havendo processo, não houve também uma execução formal, e sim um assassinato. Mesmo o conciso Schmidel, que raramente punha sentimentos  no papel, que narrou friamente o canibalismo praticado por colonizadores (que isso fizeram para não morrer de fome), concluiu sua narrativa do incidente dizendo: "Isto foi uma injustiça que se cometeu [contra Osorio], como bem sabe Deus todo-poderoso [...], porque ele era um homem correto e bom soldado, capaz de manter ordem e disciplina entre gente de guerra." (⁶) 

(1) Há bastante tempo ocorrem debates quanto à origem do nome "Rio de Janeiro", bem como quanto à data em que essa denominação foi atribuída. À parte disso, a região tinha feitorias desde as primeiras décadas do Século XVI, ainda que uma povoação formalmente estabelecida não existisse quando a frota espanhola em que Schmidel viajava passou por lá. Outro fator importante a recordar é que esse mercenário alemão somente escreveu e publicou suas memórias muito tempo depois do fato aqui referido.
(2) Há divergências quanto à data. Embora Schmidel diga 1534, há quem pense que, levando em conta o calendário que adotava, a data deveria ser 1535 ou 1536.
(3) A primeira edição é de 1567. 
(4) A edição de 1599 traz Rio Ienea ou Rio Iamero (Rio de Janeiro).
(5) Os nomes de Pedro de Mendoza e Juan de Osorio aparecem aqui como de fato eram, e não na estropiada grafia de Schmidel, que escrevia conforme os nomes pareciam soar em sua língua materna.
(6) SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 19 de maio de 2020

Infrações cometidas por um ferreiro que viveu em São Paulo no Século XVI

Em 1587 os oficiais da Câmara de São Paulo mandaram publicar um tabelamento de preços que podiam ser cobrados pelos ferreiros que trabalhavam na própria vila, ou nos arredores de sua jurisdição. Ora, meus leitores, temos boas razões para crer que a obediência ao tabelamento não mereceria ser classificada como exemplar, porque, no ano seguinte, 1588, manifestaram-se queixas amargas contra um ferreiro que, para impedir que seus fregueses examinassem a tabela de preços, adotara um expediente algo curioso. Deixemos que fale a documentação da época, com seu sabor característico. Dizia a ata da Câmara relativa ao dia 15 de abril de 1588 (¹):
"Aos quinze dias do mês de abril da era de mil quinhentos e oitenta e oito anos, nesta vila de São Paulo [...], pelo procurador do concelho (²) foi requerido ...] que [...] provessem sobre as posturas feitas no ano passado [...], e o povo clamava da pouca justiça mormente agravada da grande carestia e desordem do ferreiro [...]."
Portanto, leitores, fica-se sabendo, já de saída, que o perturbador da boa ordem era o ferreiro, contra quem clamava a opinião pública. Dias mais tarde, os vereadores decidiram chamar à vila dois aprendizes do ferreiro, de quem suponham poder arrancar informações confiáveis:
"Hoje, vinte e oito dias do mês de maio da era de mil e quinhentos e oitenta e oito anos, nesta vila de São Paulo [...] se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] e [...] acordaram os oficiais que se notificasse a Domingos Fernandes, ferreiro, que com pena de mil réis mandasse a esta vila seus aprendizes [...] para com eles fazer certas diligências [...]."
Infere-se, por esse documento, que a oficina do ferreiro devia estar fora da cerca que protegia a vila. Não sabemos o que podem ter conversado o ferreiro e seus aprendizes diante da ordem expedida pela vereança, mas é certo que dois homens compareceram para depor, e não parece ter havido grande dificuldade em fazê-los dar com a língua nos dentes:
"Hoje, quatro dias do mês de junho da era de 1588 anos, nesta vila de São Paulo [...] se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] para fazerem diligência com os aprendizes de Domingos Fernandes, ferreiro, porquanto todo o povo geralmente se queixava por sua carestia, e que não guardava nem queria guardar as taxas que lhe foram dadas de seu ofício [...]."
Cumpridas as formalidades correntes na época, segundo as quais as testemunhas deveriam jurar dizer a verdade pondo a mão direita sobre um livro dos Evangelhos, passaram os vereadores a interrogar Clemente Alves:
"[...] o vereador Fernão Dias (³) lhe fez pergunta se sabia ele se seu amo Domingos Fernandes guardava as posturas e taxas que lhe foram dadas da Câmara, declarou que era verdade que seu amo não guardava as posturas e dava as coisas que fazia na sua tenda por mais da taxa, e se fez pergunta por que razão seu amo mandara pregar o regimento (⁴) que lhe foi dado nesta Câmara no cume do esteio [...], tão alto que não podia ninguém ler e visto de muito poucos, respondeu que é verdade que seu amo lhe mandou a ele pregar o dito regimento na ilharga do dito esteio alto, dizendo-lhe que quem o quisesse ver o fosse lá ler ou dissesse que lho descessem [...]."
Hilária, certamente, essa estratégia do ferreiro descumpridor dos regulamentos. O segundo aprendiz, identificado como Pedro (⁵), confirmou os ditos de seu colega:
"[...] lhe fez pergunta se era verdade que seu amo não guardava as taxas e posturas que lhe foram dadas nesta Câmara e seu regimento, declarou que seu amo não guardava as posturas da Câmara nem usava pelo dito regimento, e levava o que queria pelas obras, e pelo não guardar o mandou pôr à ilharga do esteio da casa, alto que o não podia ler debaixo, dizendo que quem o quisesse ler o mandasse descer [...]."
As trapaças do ferreiro parecem ter irritado os administradores da vila. Uma multa dupla foi estipulada, à qual se juntou a ameaça de que nova desobediência poderia ter consequências mais graves, que, no entanto, não foram referidas:
"Vista a diligência que nesta Câmara se fez com os obreiros ou seus aprendizes de Domingos Fernandes, ferreiro, como declaram que seu amo não guarda as posturas da taxa que desta Câmara lhe foi dada [...], mas tudo faz e dá como ele quer para mais da taxa, o condenamos em mil réis [...], e visto outrossim como ele, em vez de pôr o regimento que desta Câmara levou à porta como é costume, e o mandou pregar em um esteio da casa da tenda tão alto que pessoa alguma o pudesse ler do chão, e é parte que de mui poucos podia ser visto, no que usou como homem pouco temente às Justiças, o condenamos pela desobediência e desordem em quinhentos réis [...], e será avisado que daqui por diante use melhor de seu ofício, guardando as taxas em tudo, sob pena de ser gravemente castigado."
O que teria tornado os aprendizes tão loquazes? Não sabemos. É certo, contudo, que a penalidade deveria servir para desestimular imitadores. Quem conhece alguma coisa da vida na São Paulo quinhentista ou seiscentista sabe, porém, que explorar a freguesia não era defeito apenas de um ferreiro. 
A vida nas vilas coloniais, precária como era, acabava resultando em um convite à sagacidade de comerciantes e artesãos de vários ofícios, ávidos por maiores lucros, contra os quais as sucessivas administrações precisavam lidar, nem sempre com muito sucesso.

(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, sendo acrescentada a pontuação indispensável. 
(2) Concelho com "c", unidade municipal portuguesa.
(3) Esse Fernão Dias, vereador, viveu no Século XVI. Não era, portanto, o bandeirante conhecido como "caçador de esmeraldas".
(4) O regimento devia ser manuscrito em papel ou outro material, porque, nesse tempo, ao que se sabe, não havia quem imprimisse alguma coisa em São Paulo.
(5) A falta de um sobrenome talvez seja um lapso do escrivão, mas poderia ser indicação de que esse aprendiz fosse um indígena formalmente cristianizado. Refere-se que foi capaz de assinar seu nome no final da ata correspondente.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

A falta de água em viagens marítimas

A falta de água potável em navios nos séculos XV e XVI estava entre os maiores pesadelos dos marinheiros. Afinal, era água e mais água ao redor, mas os sedentos marujos não podiam nem pensar em bebê-la, porque era salgada. 
Assim, facilmente se explica por que razão, a cada oportunidade, iam todos os navegantes "fazer aguada", ou seja, abastecer os tonéis de água, ainda que, no momento, não houvesse falta. Na Carta de Caminha, relata-se que, mesmo antes que alguém fosse mandado a terra e que, desse modo, se fizesse o descobrimento oficial do Brasil, procurou-se um lugar favorável para aportar em busca de água e lenha, reconhecendo o escrivão que, naquele momento, não tinham escassez dessas coisas: "Fomos ao longo da costa [...], para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso onde ficássemos, para tomar água e lenha, não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui". Navegantes experientes, os portugueses sabiam que, diante de tanta e tão boa água, valia a pena abastecer os navios, pelo risco de não terem como fazê-lo mais tarde, quando prosseguissem no rumo das Índias.
Se estavam em alto mar e faltava água, só havia uma coisa que os marinheiros podiam fazer, e era suplicar aos céus por chuva. Quando ela vinha, os navegadores usavam recolher cada gota, do melhor modo que podiam. Um método era estender lençóis no convés e, cessando a chuva, torcê-los, para recolher o líquido. Segundo Jean de Léry, foi esse o procedimento adotado quando fazia a viagem de regresso à França em 1558, porque no navio estava disponível, diariamente, apenas um copo pequeno de água imunda para cada um. A sede era tanta que até mesmo a água que escorria pelo convés era recolhida e sofregamente ingerida, ainda que muito suja. Bernal Díaz del Castillo, um soldado que se tornou famoso ao escrever sobre a chamada "conquista do México" por Hernán Cortés, da qual participou, fez o registro de experiência similar. "Digo que tanta sede passamos", afirmou (¹), "que na língua e na boca, tão secas, tínhamos rachaduras, pois nada havia para refrigério" (²).
Situação análoga foi provada pelos homens que, com Pedro Sarmiento de Gamboa, contornaram a Patagônia e, no rumo da costa da África, chegaram à Europa (³). O relatório da viagem diz que, em certo dia, já em direção aos arquipélagos perto da África, "[...] às dez da noite caiu um grande aguaceiro, do qual se tomou alguma água, o que foi grande consolo, porque o calor era excessivo e pouca a água que tínhamos, já bastante racionada" (⁴).
Quando, afinal, chegaram ao arquipélago de Cabo Verde, a população local apenas se convenceu quanto à veracidade da viagem que diziam ter feito em razão do péssimo aspecto que tinham os marinheiros, com cabelo e barba que não viam a ação de tesoura ou navalha há muito tempo. Mas Pedro Sarmiento, ao dar conta do sucedido, concluiu: "[...] vínhamos mais cobiçosos de água que de parecer lindos" (⁵).

(1) Bernal Díaz del Castillo foi um soldado espanhol que participou da expedição de Cortés. Escreveu a obra muitos anos depois, já em idade avançada.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Entre 1579 e 1580. 
(4) GAMBOA, Pedro Sarmiento de. Viage al Estrecho de Magallanes. Madrid: Imprenta Real de la Gazeta, 1768, p. 314. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid., p. 343.


terça-feira, 12 de maio de 2020

Depois de um dia na colheita do café

Ramo de um cafeeiro
Nesse fim de tarde de maio, assim que o sol desaparece, a temperatura começa a cair. O rangido de carros de boi mostra que o trabalho, contudo, ainda não acabou. Logo, uma cantilena, vinda do sopé da serra, avisa que a escravaria, saindo do cafezal, volta, agrupada, sob os olhos do feitor. Cobertos de suor e poeira, repetem e repetem a cançãozinha monótona. Um carreiro passa por eles. Risos, provocações... 
Cada um traz nas costas um cesto alto com uma infinidade de pequenas esferas vermelhas. É parte da colheita do café, que os carros, com sua lentidão, não conseguiram levar totalmente ao terreiro. Lá é que deixarão os jacás.
Vem o jantarzinho habitual, um cozido de farinha de milho, um gole de cachaça. Às vezes, o serão e o pilão fazem parceria, quando há ordem para triturar o milho ou descascar o arroz. Continuam a cantar. Algum, mais inspirado, arrisca compor uns versos, enquanto os outros marcam o ritmo com os pés. Venta frio, uma fogueira aquece os que trabalham. O vento traz o aroma silvestre da mata próxima.
Hora de dormir. A senzala é trancada para evitar fugas. Ainda há conversas no pátio. Longe dos outros, um escravo olha as estrelas, que piscam, tão distantes, e lhe acendem na imaginação uma fagulha de liberdade.


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quinta-feira, 7 de maio de 2020

O que César Augusto fazia quando uma tempestade se aproximava

Do que o homem mais poderoso de Roma, talvez o mais poderoso do mundo em seu tempo, poderia ter medo? Que coisa seria tão pavorosa, a ponto de levá-lo a buscar um esconderijo? Seriam as agitações populares? Talvez a possibilidade de exércitos coligados de potências estrangeiras? 
Nada disso. Augusto (¹), ou, se preferirem, Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus tinha medo de trovões e raios - foi Suetônio (²) quem disse, no Livro II de De vita Caesarum
Ao que parece, nem sempre fora assim. Acontecera certa vez a Augusto, durante uma marcha militar noturna, ver a queda horripilante de um raio, e, desde então, tomava-se o imperador de medo ao menor indício de que uma tempestade se aproximava. Como naquele tempo não havia nada que se parecesse com uma terapia para essas situações, o grande Augusto tinha um truque, que era ter sempre à mão uma pele de foca, acreditando, como muitos contemporâneos, que ela era imune aos raios. Mas, se confiava nela, por que se escondia?

(1) 63 a.C. - 14 d.C.
(2) 69 - 141 d.C.


terça-feira, 5 de maio de 2020

O que os ferreiros de São Paulo fabricavam no Século XVI

- Mestre Antônio! Ó de casa!...
A fumaça que vem da fornalha enche todo o ambiente, já de si escuro. Só se vê o vermelho do carvão em brasa e, em um dos cantos da oficina, um aprendiz, que, com o martelo, tortura os ouvidos de quem chega, com o som de uma ferradura que ajusta na bigorna. Verdadeiro mistério é que o teto de sapé não se incendeie.
- Ô mestre Antônio! 
Um homem vem, lentamente, ver quem chama.
- Ô Lourenço, bons dias!...
- Bons dias. Vim buscar a encomenda...
- Já está quase tudo pronto, homem. Então partem amanhã?
- Amanhã, depois da missa. Não quer ir?
- Não. Tenho aprendizes, e, desta vez, fico. No ano que vem, talvez vá, também. Venha conferir: estão aqui as tesouras, as facas. Olhe as enxadas, o machado...
Loureço dá um risinho maroto.
- Nem precisava tanto capricho, mestre Antônio!
É que as encomendas eram para "resgates", as trocas com indígenas que a gente de São Paulo fazia em suas idas ao sertão. 
- O facão que me pediu, dos bons, fica pronto daqui a pouco. Estava polindo a lâmina. Vai sair uma beleza!...
- Então, passo depois. E quanto àquelas correntes?
- Guardei lá dentro. São garantidas. As "peças" (¹) não lhe escapam. 
Nova risada.
- Terá sua parte, mestre Antônio...

Deixemos mestre Antônio entretido no trabalho, com seus aprendizes e fregueses. Ferreiros que viviam e trabalhavam na Europa no Século XVI tinham como principais encomendas a fabricação de armas, ferramentas e objetos de uso doméstico. Já aqueles estabelecidos na vila de São Paulo, na mesma época, precisavam atender às demandas do quotidiano colonial, com suas inevitáveis especificidades. 
Como sabemos disso?
Um tabelamento de preços, imposto no ano de 1587, é documento valioso para mostrar o que é que mantinha os ferreiros da vila ocupados. A ordem partiu da Câmara de São Paulo e foi lida publicamente no dia 24 de agosto, "ao pé da cruz que está junto ao adro da dita vila", conforme era costume. Impossível não pensar em tudo o que tal cruz não teria ouvido nesses tempos, se ouvir pudesse, é claro.
A lista é extensa; vamos ao que é indispensável, em transcrição na ortografia atual e com a pontuação necessária à compreensão:
"Das foices roçadeiras de roçar (²), dando seu dono o ferro, setenta réis de feitio, e se o ferreiro der o carvão lhe pagará o dono da foice, e das foices [...] de resgate, sessenta réis; [...] de uma foice nova calçada que vender o ferreiro, duzentos réis; das enxadas para casa, setenta réis de feitio; das enxadas para resgate cinquenta réis de feitio; [...] de um machado novo, sendo ferro e aço de quem manda fazer para trabalho de casa, cem réis; [...] do feitio de um machado novo para resgate, sendo o ferro do dono, oitenta réis; [...] do feitio de uns engonços (³), dando quem os manda fazer o ferro, dez réis; de uma perna para mesa ou cadeira, sendo o ferro de quem o manda fazer, de feitio cinco réis; pregos de foices de trabalho, dois réis, e dando seu dono o ferro, um real; tachinhas para caixas de marmelada, dando seu dono o ferro, duas por real, e sendo do ferreiro, três por dois réis; [...] do feitio de um espeto de três palmos, sendo o ferro de quem o manda fazer, com argola, trinta réis; [...] anzóis pargueiros a três réis [...]; do feitio de um cadeado, sendo o ferro de quem o manda fazer, com uma chave, seis vinténs, e sendo do ferreiro, duzentos réis; de uma chave macho, cinquenta réis, e de feitio de uma fêmea, quatro vinténs; de um ferrolho com sua fechadura e chave, sendo o ferro de quem o manda fazer, para porta de casa, [...] trezentos réis, e sendo do ferreiro, trezentos e cinquenta réis [...]; uma tesoura de resgate, cinquenta réis, e se for o ferro de quem a mandar fazer, trinta réis; [...] de uns estribos de ferro do ferreiro, três cruzados."
Para quem se aventurasse a desobedecer, a mesma ata ainda estipulava uma "pena de quinhentos réis, a metade para o acusador e a metade para o concelho (⁴)."
O que podemos concluir dessa lista que quase acaba com o fôlego de quem lê?
Vejamos cinco aspectos:
  • Devia haver um número muito maior de objetos que ferreiros podiam fornecer, constando na tabela de preços apenas os mais comuns;
  •  Fica evidente a diferença entre ferramentas para uso próprio e "para resgate", pela variação nos preços entre elas. Lembrando que "resgates" eram as trocas ou escambo que se fazia com indígenas, nota-se que era explícita a ideia de que, para esse efeito, as ferramentas não precisavam ser lá muito boas;
  • As tachinhas para as caixas de marmelada eram importantes: a produção de marmeladas da vila de São Paulo tinha fama que alcançava outras capitanias, e, malgrado o pequeno valor cobrado pelos preguinhos, quem as exportava para outras capitanias precisava de um bom número deles;
  • Embora o tabelamento fosse feito em moeda da época, não se deve esquecer que, no Século XVI, e mesmo mais tarde, quase não havia dinheiro amoedado circulando em São Paulo (⁵), e, portanto, os valores deviam funcionar apenas como referência, sendo os pagamentos feitos, de hábito, em espécie;
  • Finalmente, havia um óbvio incentivo à delação, visto que aquele que denunciasse um infrator receberia metade do valor da multa imposta. Essa prática talvez desobrigasse a Câmara de exercer fiscalização por si mesma, porque não faltaria quem desse com a língua nos dentes, se algum ferreiro tentasse burlar o tabelamento (⁶).

(1) No Brasil Colonial, escravos eram muitas vezes chamados "peças". Neste caso, é uma referência a indígenas que sertanistas de São Paulo capturavam e forçavam ao trabalho.
(2) De que mais seriam?
(3) Dobradiças.
(4) Concelho, aqui, é mesmo com "c", por se referir à administração municipal da época.
(5) O mesmo acontecia em outros pontos de colonização no Brasil.
(6) Sim, isso acontecia, mesmo sob a ameaça de multa.