quinta-feira, 21 de maio de 2020

Um assassinato brutal no Rio de Janeiro no Século XVI

A data oficial de fundação da cidade do Rio de Janeiro é 1º de março de 1565, no contexto da luta pela expulsão de franceses que tentavam fincar pé na área. Em 1535 não havia lá, ao que se sabe, nenhuma povoação permanente de colonizadores europeus, ainda que a terra fosse reconhecida como propriedade da Coroa portuguesa (¹). A despeito disso, há registro de um incidente sangrento ocorrido na região, quando, por duas semanas, em 1534 ou 1535 (²), ali esteve uma armada espanhola que ia ao Rio da Prata. O fato é conhecido pelo relato de Ulrich Schmidel, um alemão que viajava nessa armada, e que, muitos anos depois, de volta à Europa, publicou um livro que tinha por título Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart (³). Disse ele:
"Navegamos dessa para outra ilha [sic] chamada Rio Ienea (⁴) [...], que pertence ao rei de Portugal [...], onde ficamos cerca de quatorze dias. Foi lá que dom Pedro de Mendoza (⁵), nosso capitão-general, determinou que Juan de Osorio [...] nos comandasse como seu substituto, porque ele [Pedro de Mendoza] estava doente e sem poder mover-se. Não demorou para que Juan de Osorio fizesse inimigos e fosse falsamente acusado de promover um levante contra Pedro de Mendoza. Por esse motivo, dom Pedro de Mendoza mandou que outros quatro capitães [...] matassem o dito Juan de Osorio a punhaladas [...], e que o apresentassem como traidor. Fez também passar bando, ordenando que ninguém se atrevesse a ter compaixão de Osorio, para não incorrer em idêntico castigo." (⁶)
É fato que os comandantes de armadas que viajavam no Século XVI levavam permissão para agir como juízes absolutos, porque esse era um modo de assegurar a disciplina entre marinheiros e soldados, que, de outro modo, seriam, talvez, incontroláveis. Contudo, não houve, ao que parece, nenhum processo formal contra Juan de Osorio, bastando a acusação de que tramara uma revolta para que fosse morto. Não havendo processo, não houve também uma execução formal, e sim um assassinato. Mesmo o conciso Schmidel, que raramente punha sentimentos  no papel, que narrou friamente o canibalismo praticado por colonizadores (que isso fizeram para não morrer de fome), concluiu sua narrativa do incidente dizendo: "Isto foi uma injustiça que se cometeu [contra Osorio], como bem sabe Deus todo-poderoso [...], porque ele era um homem correto e bom soldado, capaz de manter ordem e disciplina entre gente de guerra." (⁶) 

(1) Há bastante tempo ocorrem debates quanto à origem do nome "Rio de Janeiro", bem como quanto à data em que essa denominação foi atribuída. À parte disso, a região tinha feitorias desde as primeiras décadas do Século XVI, ainda que uma povoação formalmente estabelecida não existisse quando a frota espanhola em que Schmidel viajava passou por lá. Outro fator importante a recordar é que esse mercenário alemão somente escreveu e publicou suas memórias muito tempo depois do fato aqui referido.
(2) Há divergências quanto à data. Embora Schmidel diga 1534, há quem pense que, levando em conta o calendário que adotava, a data deveria ser 1535 ou 1536.
(3) A primeira edição é de 1567. 
(4) A edição de 1599 traz Rio Ienea ou Rio Iamero (Rio de Janeiro).
(5) Os nomes de Pedro de Mendoza e Juan de Osorio aparecem aqui como de fato eram, e não na estropiada grafia de Schmidel, que escrevia conforme os nomes pareciam soar em sua língua materna.
(6) SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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