quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Paganini

Transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas no Século XVIII e sua relação com o desenvolvimento da luteria e da técnica violinística


Niccolò Paganini, o mítico violinista que enfeitiçava plateias com as diabruras que era capaz de executar com seu instrumento, nasceu em Gênova no ano de 1782. Deixando para trás uma infância pobre e sofrida, chegou a atingir imensa popularidade, atraindo plateias consideráveis em boa parte da Europa, principalmente entre os anos de 1828 e 1834. Até fábulas sinistras foram inventadas para explicar tanta genialidade. Faleceu em 1840.
Infelizmente, Paganini viveu em um tempo no qual as gravações ainda não existiam, de modo que não podemos saber como, exatamente, soava a música que arrancava do violino. Entretanto, deixou composições que, se não brilham pelo mérito estético, servem para mostrar a que altura chegava sua capacidade técnica.
O fenômeno Paganini, contudo, só foi possível porque antes dele viveram luthiers que aperfeiçoaram a construção de instrumentos de cordas. Jacob Steiner (1), a família Amati, Antonio Stradivari e Giuseppe Guarneri (2) são nomes que alcançaram destaque pela construção de excelentes instrumentos. Ao menos no conceito popular, o mais celebrado luthier do Século XVIII é Antonio Stradivari. Apesar disso, não era um Strad o preferido de Paganini, e sim um Guarnerius. Como regra geral, a maioria dos instrumentos de cordas precisa de algum tempo de uso para atingir a plena maturidade sonora (3), e, por essa razão, não surpreende que o instrumento favorito do genial mago do violino já tivesse décadas de existência ao ser por ele tocado, uma vez que fora construído por volta da década de 1740. 
Embora pareça simples, um violino é formado por cerca de oitenta partes diferentes, todas de fabricação extremamente delicada. O resultado, em termos de potência e riqueza sonora depende, portanto, de uma multiplicidade de fatores, que um luthier competente controla à exaustão.  
Nem todo mundo sabe, mas, no Século XVI, o padrão é que violinos tivessem apenas três cordas. Ainda nesse centênio chegou a ter quatro, que eram feitas de tripa (de carneiro) e, embora produzissem um som delicado, tinham o inconveniente da fragilidade. A crescente busca por instrumentos capazes de maior volume sonoro levou, por volta de 1700, à prática de revestir o encordoamento com prata, e o emprego de maior tensão nas cordas sacramentou o uso de materiais de resistência superior. No Século XVIII, o braço e o espelho se tornaram mais longos. Assim, foi possível obter mais brilho e potência, adequados a auditórios cada vez maiores. Outras novidades introduzidas foram cavaletes mais altos, além de alterações na espessura do tampo e do fundo. O arco foi, também, bastante modificado, e, já por volta de 1820, Ludwig Spohr introduziu o uso da queixeira. 
A partir das últimas décadas do Século XVIII, em resultado de dramáticas mudanças no panorama sociopolítico da Europa (4), a música erudita, antes ao alcance apenas da nobreza, passou a ser apreciada por um número cada vez maior de pessoas, todas aquelas que estivessem dispostas a pagar um ingresso, independentemente de seu status social. Salas de concerto, e não só os salões de baile dos palácios, ressoavam com novas composições. Músicos, fossem eles compositores ou instrumentistas, já não eram parte da criadagem a serviço da nobreza, e sim, quando talentosos e competentes, verdadeiros heróis populares, ou, em outras palavras, autênticos fenômenos de massa, que entusiasmavam o público, lançavam modas e eram não só admirados, como também imitados. Paganini foi um deles.

(1) O preferido de J. S. Bach.
(2) Jacob Steiner (1619 - 1683); Andrea Amati (c. 1505 - c. 1578); Nicola Amati (1596 - 1684); Antonio Stradivari (1644 - 1737) e Giuseppe Guarneri (1698 -1744) foram alguns dentre os grandes luthiers que levaram a construção de violinos e outros instrumentos de cordas a um alto grau de perfeição. 
(3) Neste caso, como em muitos outros, a regra admite exceções.
(4) Basta pensar no impacto do Iluminismo, do despotismo esclarecido, da Revolução Francesa e respectivo corolário.


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terça-feira, 28 de agosto de 2018

A decadência das regiões auríferas coloniais

Vila Rica vista de longe, de acordo com Rugendas (¹)

Se o Século XVIII foi marcado pela descoberta de jazidas auríferas importantes no Brasil, o XIX, com o esgotamento das minas, viu muitas antigas áreas de mineração transformadas em ruínas. 
Terrenos considerados promissores eram abandonados quando o ouro escasseava. As técnicas rudimentares de exploração contribuíram para o esgotamento precoce; muito ouro se perdeu pelo desconhecimento de métodos e ausência de equipamentos adequados à extração da riqueza que não se oferecesse à superfície. Como resultado, quem andava por lugares em que outrora pululavam mineradores, comerciantes e quem mais intentasse lucrar com o ouro, agora contemplava,  em muitos casos, um cenário verdadeiramente desolador. Declinando a mineração, arruinavam-se outras atividades que haviam florescido nas povoações. Nem mesmo os engenhos (2) escaparam da derrocada, conforme se vê neste relato escrito pouco depois da Independência, no qual Raimundo José da Cunha Matos expôs a situação encontrada no antes riquíssimo Distrito do Pilar, Província de Goiás:
"Em diversos lugares que hoje atravessei, encontram-se grandes edifícios demolidos que foram engenhos de açúcar, os quais servem unicamente de testemunho da antiga opulência, e da presente miséria dos habitantes do Distrito do Pilar. [...] Às nove horas e meia entrei no Arraial do Pilar, assentado em uma profunda cova, cercado de morros elevadíssimos: foi muito extenso e povoado, e tem várias ruas bem calçadas. Alguns edifícios mostram a sua antiga opulência, mas agora acha-se grandemente deteriorado pela dificuldade da mineração do ouro, única esperança dos seus iludidos habitantes que ainda preferem as minas à agricultura." (3) 
Décadas mais tarde, José Vieira Couto de Magalhães observou, ao tratar da região do Rio do Peixe:
"[...] As impressões do viajante não são mais alegres, porquanto vai-se constantemente atravessando velhas lavras de mineração, e o coração se aperta ao ver desertas e abandonadas grandes casas, regos, valos, muralhas, ora cobertas de mato, ora desmoronando-se. Salta sobretudo aos olhos a fazenda do finado senador José Rodrigues Jardim, cuja vasta casaria, ainda em bom estado de conservação, abriga hoje morcegos, corujas, e répteis venenosos." (4)
Até as Minas Gerais chegaram a experimentar declínio. Suas cidades de exuberante arquitetura barroca sofreram muito com o revés nas extrações auríferas. Voltando à obra de Cunha Matos, encontramos este relatório:
"Os grandes montões de calhau e cascalho que vi ontem e hoje, e as covas cheias de água estagnada, são os únicos benefícios que a mineração deixou à Vila de São João del-Rei [...]. Nenhum lugar foi mais florescente do que Vila Rica durante a mineração: mas agora que se não extrai ali ouro, apesar de ser capital da Província (5), a Cidade do Ouro Preto vai caindo em miséria, e [...] edifícios acham-se reduzidos a um monte de ruínas." (6) 

São João del-Rei no começo do Século XIX (⁷)

Vendo a riqueza de suas igrejas e edifícios públicos, quem visita as chamadas "cidades históricas" de Minas Gerais talvez venha a discordar de Cunha Matos. Sim, ele pode ter exagerado, mas é inegável: do esplendor da era duplamente áurea da mineração, pouca coisa restou.

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Muitos engenhos do interior do Brasil eram, nesse tempo, voltados à produção de cachaça, sem exclusão, porém, de açúcar e rapadura. 
(3) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás Tomo I. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, pp. 183 e 184.
(4) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 212.
(5) A mudança da capital de Minas Gerais para Belo Horizonte ocorreu em 1897.
(6) MATOS, Raimundo José da Cunha. Op. cit., Tomo II, p. 60.
(7) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



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quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Vinho e água

O consumo de vinho puro não era frequente entre gregos e romanos. "Misture uma parte de vinho para três de água", recomendou Hesíodo, poeta grego da Antiguidade, em Os Trabalhos e os Dias. Para os padrões da época, foi modesto. Era comum que uma parte de água fosse adicionada a três de vinho (o contrário, portanto, daquilo que Hesíodo sugeriu), mas, dependendo do gosto de quem bebia, da procedência e qualidade do vinho e das circunstâncias em que era servido, a diluição podia ser maior. Prática semelhante havia entre os romanos.
Cratera grega (²)
Quem lê as obras de Homero (¹) ou de outros autores gregos da Antiguidade não demora a encontrar referência a um objeto chamado cratera. Para que servia? Ora, leitores, as crateras eram usadas precisamente para misturar água e vinho, no momento em que a bebida era servida. Havia crateras muito simples, comuns entre a gente de baixa posição socioeconômica, mas havia, para os muito ricos, aquelas que, artisticamente trabalhadas, atestavam a prosperidade do dono da casa em que um banquete, regado a vinho (diluído!), era oferecido a nobres convidados.
Um luxo adicional foi muito usado por romanos na diluição do vinho, e Sêneca fez referência a ele nesta passagem instrutiva do Livro II de Da Ira: "Aquele que se irrita com um escravo que não dissolveu bem a neve no vinho poderá, acaso, resistir à fome ou à sede durante uma guerra no verão?" (³). Não havendo neve por perto, escravos eram mandados a buscá-la, em louca correria, para atender ao capricho de seus senhores.

(1) Supõe-se que Homero tenha vivido entre os Séculos IX e VIII a.C., sendo geralmente atribuídas a ele a Ilíada e a Odisseia.
(2) DUCATI, Pericle. Storia della Ceramica Greca. Firenze: Fratelli Alinari, 1922, p. 43. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) As passagens citadas de Os Trabalhos e os Dias e de Da Ira foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 21 de agosto de 2018

À procura do ouro

Ainda está escuro, mas os três já vão longe do povoado que se espalha em desalinho pelos morros. Nada de levar escravos, algum deles poderia muito bem dar com a língua nos dentes. Horas depois, param, enxugam o suor, olham em volta.
- É aqui?
- Parece...
Nem se lembram do magro lanche que trouxeram. O som das picaretas batendo contra o solo rude atravessa a vastidão do cerrado. O marulho da água do córrego não ajuda muito a abafar o ruído. Uma nuvem de pó os envolve. Procuram ouro, todo mundo procura, poucos encontram, e menos ainda são os que informam seus achados à administração colonial. 
Suados, a respiração arfante, só interrompem a busca para refrescar a garganta, que se ressente da poeira. Enquanto dois trabalham no desmonte da terra, o terceiro vai fazendo as provas. 
- Nada, ainda?
- Nada que compense. 
Voltam ao trabalho. 
- Parece que tem coisa aqui!... É, aqui!
Não têm tempo para entusiasmo: à distância, ouve-se o ganido de um cão. Os olhares se cruzam, assim, desconfiados, como quem suspeita da própria sombra. Quem vem lá?
Os latidos se aproximam. Atrás, um grupo caminha sem pressa. Talvez estejam caçando. Ou...
Os três homens recolhem as ferramentas e se esgueiram rente ao capinzal, a respiração entrecortada de medo e cansaço. Colado ao chão, um deles corre os dedos nervosamente pelo cabo da faca presa à cintura.
Os passos estão cada vez mais próximos. O ziguezague do cãozinho que, à frente, fareja o ar com insistência, mostra que estão chegando. Junto ao córrego, param para beber. Quase sem conversa, retomam a marcha e vão sumindo, sumindo. Parecem não dar muita importância às pedras e terra revolvidas. Por toda parte, mineradores esgravatam o terreno. Não há nada a temer. Quem iria ter a ideia de policiar um lugar desses? Logo não podem mais ser vistos. Ficam só a mataria retorcida e o sol que sobe causticante. 
Lentamente, o trio se levanta e volta a revirar a terra. 
- Quilombolas?!
Com o arco das sobrancelhas, um deles diz que sim. 
Denunciá-los? Nem pensar. Seria entregar o ouro. Jamais a expressão fez tanto sentido.


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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

A duração das horas na Roma Antiga

Bom dia, leitores! Se eu lhes perguntasse qual a duração de uma hora, a resposta provável seria: 60 minutos, ou 3600 segundos. Deixando de considerar questões ligadas à Relatividade, entendemos a hora, para efeitos práticos, como uma unidade de tempo de duração fixa. Mas não era assim que os antigos romanos faziam a contagem das horas.
De acordo com Plínio, o Velho, na Lei das Doze Tábuas (¹) apenas dois horários eram especificados: o do nascer e o do pôr do sol (²). Ocorre que o desenvolvimento tecnológico dos romanos desse tempo nada tinha de admirável, e a ausência de horários mais específicos é reflexo da falta de instrumentos adequados para marcação do tempo. Posteriormente (³), o contato com a ciência de outros povos (gregos e egípcios, por exemplo), mostrou-se benéfico para Roma (⁴), resultando na introdução de conhecimentos que, por conta própria, seus habitantes talvez levassem muito tempo para alcançar. No Livro VII de Naturalis Historia somos informados por Plínio de que o primeiro relógio de sol público foi trazido a Roma durante a Primeira Guerra Púnica, depois da conquista de Catania pelas forças comandadas pelo cônsul Messala. O primeiro relógio de água (clepsidra) de Roma foi inaugurado em 159 a.C., oferecendo a vantagem de marcar as horas não apenas do dia, mas também da noite, coisa que relógios de sol, por razão demasiado óbvia, não podem fazer. 
Quem vivia sob a marcação da hora por um relógio de sol não fugia, completamente, do tempo da natureza. Como se sabe, dias e noites têm duração desigual ao longo do ano, e isso influenciava, curiosamente, a duração das horas nos relógios de sol. Então, leitores, se vocês vivessem em Roma na Antiguidade, teriam, no solstício de verão, a seguinte duração das horas, aproximadamente, durante o dia:

Hora prima - 4 h 27 min a 5 h 41 min, inclusive;
Hora secunda - 5 h 42 min a 6 h 57 min;
Hora tertia - 6 h 58 min a 8 h 12 min;
Hora quarta - 8 h 13 min a 9 h 28 min;
Hora quinta - 9 h 29 min a 10 h 43 min;
Hora sexta - 10 h 44 min a 11 h 59 min;
Hora septima - 12 h 00 min a 13 h 14 min;
Hora octava - 13 h 15 min a 14 h 30 min;
Hora nona - 14 h 31 min a 15 h 45 min;
Hora decima - 15 h 46 min a 17 h 01 min;
Hora undecima - 17 h 02 min a 18 h 16 min;
Hora duodecima - 18 h 17 min a 19 h 32 min.

Por outro lado, no solstício de inverno, quando ocorre o dia mais curto do ano, as horas de Roma em um relógio de sol teriam aproximadamente esta equivalência, para que fossem conservadas doze horas dentro do tempo em que havia luz do sol:

Hora prima - 7 h 33 min a 8 h 16 min, inclusive;
Hora secunda - 8 h 17 min a 9 h 01 min;
Hora tertia - 9 h 02 min a 9 h 45 min;
Hora quarta - 9 h 46 min a 10 h 30 min;
Hora quinta - 10 h 31 min a 11 h 14 min;
Hora sexta - 11 h 15 min a 11 h 59 min;
Hora septima - 12 h 00 min a 12 h 43 min;
Hora octava - 12 h 45 min a 13 h 28 min;
Hora nona - 13 h 29 min a 14 h 12 min;
Hora decima - 14 h 13 min a 14 h 57 min;
Hora undecima - 14 h 58 min a 15 h 41 min;
Hora duodecima - 15 h 42 min a 16 h 26 min.

É fácil deduzir que relógios de sol, em diferentes lugares, marcavam horas diferentes em um dado momento. Os romanos tiveram oportunidade de perceber esse fato em relação ao relógio de sol que haviam trazido de Catania, que, portanto, não era adequado para Roma. Ainda assim, usaram-no por quase um século e, segundo Plínio, só então é que o substituíram por um que atendesse bem à sua localidade. 

(1) 450 a.C. 
(2) Naturalis Historia, Livro VII.
(3) Para bem ou para mal, o contato inicial dos romanos com outros povos aconteceu principalmente através de guerras.
(4) Os romanos tinham por hábito receber favoravelmente tudo o que havia de útil em outros povos, ainda que fossem inimigos.


terça-feira, 14 de agosto de 2018

Quanto tempo é necessário para que uma lei seja obedecida?

O sepultamento em cemitérios, e não no interior de igrejas, encontrou longa resistência entre a população


Pode até parecer um teste escolar, mas quero que vocês, leitores, vejam as declarações abaixo e digam se concordam com elas ou não. 
Aqui estão:
  • Ninguém faz leis para proibir algo que jamais acontece.
  • Toda lei é feita para ser obedecida.
  • Se uma lei existente não foi revogada, não há necessidade de criar lei semelhante ou idêntica.
Então, o que pensam? Enquanto vocês fazem suas reflexões, vou lembrando que, no Brasil, algumas leis demoraram a "pegar". Foi o caso, por exemplo, da proibição de escravizar indígenas. Por séculos, leis e mais leis foram feitas, vedando o cativeiro dos "naturais da terra". A necessidade de repetição é prova conclusiva de que as leis existentes não eram obedecidas. Fenômeno similar ocorreu relativamente à proibição do tráfico de africanos, até que a lei de 1850, reforçada pela pressão internacional, levou à supressão de um dos mais infames comércios que este planeta já viu.
Uma Carta Régia de 14 de janeiro de 1801 determinou que fossem construídos cemitérios, e que, a partir de então, não mais fossem permitidos sepultamentos no interior de igrejas. A tradição, porém, tinha muita força. Afirma-se, por exemplo, que, no Século XVII, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio Vieira, foi sepultado sob a laje do altar do Sacramento no convento do Carmo (Salvador - BA), por ter doado aos monges nada menos que vinte arrobas de açúcar da mais alta qualidade (¹), tudo disposto em testamento, para que não se deixasse de executar. Não era excentricidade desse rico e poderoso senhor de engenho: a mania de sepultamentos em igrejas devia-se, em parte, à ideia piedosíssima de que tal prática aumentava as chances no acerto de contas post mortem
Ora, meus leitores, a lei de 1801 tratou de pôr termo aos tais enterros dentro de igrejas, e isso por uma razão bastante simples: higiene (²). Mas, teria sido prontamente obedecida?
Vejam este convite, publicado no jornal Aurora Paulistana em 31 de julho de 1852, mais de cinquenta anos, portanto, depois da Carta Régia de 1801:
"Os amigos do falecido José Gomes Segurado são convidados para assistirem hoje (31) ao seu enterro que terá lugar às 7 horas da noite na Igreja da Misericórdia, acompanhando o corpo de sua casa [na] ladeira do Porto Geral." (³) 
Entendo que, a esta altura, vocês já tiraram suas conclusões. O que mais precisaria eu dizer?


Enquanto o corpo era velado, preparava-se o local do enterro dentro da igreja... (⁴)

(1) "[...] o secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco [...] foi sepultado no dia 20 de julho de 1697, no altar do Sacramento do Convento do Carmo da Bahia, acima dos degraus, onde os sacerdotes dizem missa; e os religiosos lhe deram esse lugar para jazigo perpétuo, pela oferta que ele fez ao Convento de vinte arrobas de açúcar fino, e do melhor, tiradas perpetuamente do engenho Cotegipe." 
MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, p. 486.
(2) Corpos e mais corpos eram inumados no interior das igrejas; cada vez que morria alguém, era preciso cavar o piso e remover ossos. Em alguns casos, sepultamentos eram feitos nas paredes. Embora não fosse algo frequente, há relatos de igrejas que tinham cheiro bastante desagradável, e de que, após chuvas torrenciais, ossos eram visíveis em alguns templos. 
(3) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 66, 31 de julho de 1852.
(4) A.P.D.G. Sketches of Portuguese Life. London: Geo. B. Whittaker, 1826 (a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog).

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Sementes e ovelhas para recomeçar as reduções indígenas arrasadas por bandeirantes paulistas

Acossados por hordas de bandeirantes paulistas (¹), missionários jesuítas e indígenas que viviam nas reduções do Guayrá fugiram para uma região mais ao sul, onde, supunham (²), estariam em segurança. Lá teriam, porém, que enfrentar dois inimigos poderosos: a fome e o frio. 
Como prover alimento suficiente para todos, em uma terra ainda não cultivada? Desnecessário é dizer que os primeiros tempos foram terríveis. Para comprar sementes que pudessem plantar, os padres abriram mão de tudo o que era possível vender: "Vendemos nossos livros, sotainas e mantos, ornamentos cálices e adornos de igrejas, enviando-os a Asunción, em troca de sementes para que semeassem", escreveu o jesuíta Antonio Ruiz de Montoya (³). 
Foi preciso vigilância severa para que as sementes não fossem devoradas, tal era a situação de miséria entre os indígenas. Com o correr dos meses, as primeiras colheitas trouxeram o alívio tão esperado. "Chegou a primavera", contou Montoya, "depois de rigorosa estiagem, começou-se a trabalhar varonilmente, cada um fez duas ou três roças, e a terra começou a oferecer seus frutos [...]. Compramos alguns porcos, patos, galinhas e pombas, [...] de que se encheu [...] aquela terra com uma singular abundância [...]." (⁴)
Ao sul, as temperaturas durante o inverno eram, em média, significativamente inferiores às que predominavam nos lugares originais das reduções. Havia urgência, pois, em prover agasalho para indígenas e missionários, sabendo que ali as colheitas de algodão não se provariam animadoras e que, além disso, trajes de algodão, apenas, não seriam suficientes. Assim, os inacianos trataram de arranjar ovelhas, na intenção de obter lã: "Já que o algodão não produz muito bem pelo rigor da geada, que o mata às vezes, me aventurei a comprar mil e oitocentas ovelhas, para que com a lã e o algodão fizessem roupas, ainda que não se obtiveram todas [as ovelhas], porque uns índios bárbaros, tirando a vida ao padre Pedro de Espinosa, roubaram também parte das ovelhas." (⁵) 
Portanto, a despeito das dificuldades e do receio sempre presente de novos ataques bandeirantes, com medidas de estímulo à agricultura e à criação de animais as reduções foram se reorganizando durante a quarta década do Século XVII. Não podemos negar, leitores: os jesuítas eram perseverantes.   

(1) Bandeirantes começaram a atacar as reduções do Guayrá em 1628. Portanto, os acontecimentos de que tratamos aqui são posteriores a essa data. O padre Antonio Ruiz de Montoya foi à Espanha em 1638 para dar queixa dos bandeirantes vindos de São Paulo que atacavam as reduções, problema tanto mais grave quanto autoridades coloniais no Paraguai, que, por suposto, deveriam favorecer a catequese de indígenas, pouco ou nada realizavam para barrar os escravizadores de ameríndios, levando os missionários à convicção de que, por interesses escusos, faziam causa comum com os paulistas.
(2) Não passou de suposição, como os anos à frente vieram demonstrar.
(3) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(4) Ibid.
(5) Ibid. Os trechos citados de Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 7 de agosto de 2018

Uma ata exageradamente honesta, ou como o porteiro foi pago na Vila de São Paulo em 1572

Atas e outros textos oficiais devem ser redigidos dentro de regras estritas, sisudas, exatas e impessoais, certo? Pois vocês, leitores, terão, já e já, a prova de que toda regra tem exceção.
Comecemos lembrando que pagamentos em espécie não eram nada incomuns no Brasil Colonial. Isso se explica pela falta de dinheiro amoedado em circulação. A escassez era grave, obrigando colonizadores a uma erupção de criatividade para contornar o problema. Açúcar e até novelos de algodão assumiam a função de numerário. A vida colonial era precária, já se vê. E, sendo assim no rico Nordeste açucareiro, como não seria na minúscula Vila de São Paulo de Piratininga, em suas primeiras décadas de existência? Vejam só esta ata da Câmara de São Paulo, que vem do ano de 1572:
"Aos trinta dias do mês de abril, era de mil e quinhentos e setenta e dois anos da sobredita era nesta vila de São Paulo [...] se ajuntaram os oficiais (¹) para fazer câmara e acordarem coisas necessárias para prol da vila [...], e mandaram que uma pouca de palha que aí estava do conselho, que fosse avaliada por dois homens bons (²) e seu preço no que avaliassem ao porteiro (³) a troco de seu serviço, a qual palha foi avaliada em cem réis, de que o dito porteiro foi contente [...]. Eu, Pero Dias, escrivão da Câmara que isto escrevi, posto que diga que um tostão (⁴) não foi senão meu, porque não valia mais a dita palha [...]."
Se dependesse da minha vontade, o dito escrivão jamais teria servido no sobredito ofício porque para isso, é fácil notar, não tinha competência. Mas quantos a teriam naquela vilazinha escondida para além da Serra do Mar? Para não cansar os leitores é que transcrevi a dita ata [chega!] em ortografia contemporânea, tanto quanto foi isso possível. Mas vamos ao que interessa:
  • A pobreza da vila está devidamente caracterizada pelo fato de não haver dinheiro para pagar o porteiro, que foi remunerado com "uma pouca de palha";
  • O porteiro também não devia ser das criaturas mais abonadas, uma vez que aceitou o [ínfimo] pagamento;
  • Para que a coisa saísse a contento, a palha, que não valia mais de oitenta réis, foi avaliada em cem (⁵). Pior, ainda, é que esse arranjo acabou incluído na ata, que os senhores vereadores assinaram (⁶), aparentemente sem contestação. Cúmulo do absurdo: o escrivão, abusado, ousou registrar a própria opinião sobre o arranjo exótico que se acabara de fazer.
Agora, a reunião da Câmara termina e o porteiro, "contente" com o pagamento, se vai com a palha. Quase quatrocentos e cinquenta anos depois, nós, leitores do Século XXI, é que ficamos surpresos com a franqueza inusitada da [dita] ata, pensando no que mais podia suceder em um lugar em que documentos oficiais eram assim redigidos.

(1) Um dos vereadores em 1572 era Afonso Sardinha, já citado neste blog.
(2) Assim eram chamados os indivíduos de importância em uma localidade, geralmente com maior poder econômico, que serviam, mediante rodízio, nos cargos públicos, e cujo parecer se supunha confiável.
(3) O porteiro dessa ocasião atendia pelo nome de João Galego.
(4) O tostão dos tempos coloniais equivalia a oitenta réis.
(5) Corrupção!
(6) Talvez seja o caso de perguntar se leram a ata e/ou se eram todos capazes de ler...


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quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Por que Aníbal não atacou Roma?

Aníbal atravessando os Alpes, de acordo com
um cartunista do Século XIX (⁴)
A travessia dos Alpes (¹) em 218 a.C. por um exército de homens, cavalos e nada menos que trinta e oito elefantes, sob a liderança de Aníbal Barca, pode ser classificada como uma das maiores loucuras de todos os tempos. Mas aconteceu. E então, superadas dificuldades terríveis, a Península Itálica e o domínio de Roma pareciam estar à inteira disposição do general cartaginês e de suas tropas. Tito Lívio (²), historiador romano, escreveu: "Depois de incrível esforço e trabalho, chegou Aníbal à Itália, cinco meses após deixar Cartagena, tendo gasto quinze dias na travessia dos Alpes." (³)
Era a Segunda Guerra Púnica. Vencendo sucessivas batalhas, as forças de Cartago chegaram muito perto de Roma. A conquista da cidade se mostrava iminente. Aníbal, todavia, nunca desfechou o ataque decisivo. Por quê? 
É possível que o notável comandante cartaginês tivesse conhecimento de fatos que tenham permanecido incógnitos para os autores da época, a cujos registros temos de nos reportar. Não teria ele confiança suficiente em suas tropas? Teria sido vítima do medo do próprio sucesso? Ou, talvez, a conselho de algum oráculo, tenha protelado o ataque para uma data supostamente mais favorável, deixando passar sua única oportunidade real de conquistar Roma?
Tudo o que se pode afirmar, no estágio atual dos conhecimentos, é: não se sabe ao certo. 
Políbio de Megalópolis (⁵), cuja História cobre muitos acontecimentos relacionados às Guerras Púnicas, observou: "Qualquer um louvará a maestria de Aníbal na arte da guerra, podendo dizer, sem receio de erro, que se houvesse começado suas ações em outros lugares e finalmente concluísse atacando Roma, teria sido vitorioso; porém, como começou por onde deveria terminar, Roma foi berço e túmulo de seus projetos." (⁶) De acordo com Tito Lívio, Maharbal, um dos homens de maior confiança no estado-maior de Aníbal, teria dito: "Os deuses não dão tudo ao mesmo homem. Sabes vencer, Aníbal, mas não és capaz de fazer uso da vitória." (⁷).

(1) A controvérsia quanto à rota adotada tem alimentado polêmicas e preenchido muito papel, tanto manuscrito quanto impresso, mas, a despeito disso, parece estar longe de terminar.
(2) 59 a.C. - 17 d.C.
(3) TITO LÍVIO. Ab urbe condita libri.
(4) BECKETT, Gilbert Abbott à et LEECH, John. The Comic History of Rome. London: Bradbury, Evans and Co., 1851, p. 173. (A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog).
(5) c. 203 a.C. - 120 a.C.
(6) POLÍBIO. História.
(7) TITO LÍVIO. Op. citOs trechos citados das obras de Tito Lívio e Políbio de Megalópolis foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.