terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Padre francês usava imagem que fora roubada de um navio português

Era comum, nos primeiros tempos da colonização do Brasil, que missionários fizessem relatos do que lhes sucedia em seus labores de catequese junto aos povos indígenas. Em cartas enviadas à Europa (¹) e nos livros que escreviam, reuniam informações preciosas sobre o modo de vida dos ameríndios, dificuldades da catequese, beleza natural da terra em que estavam e percalços enfrentados - falta de recursos, doenças, e, para muitos, uma morte prematura.
Se isso era verdade em relação aos que vinham ao Brasil sob o beneplácito do governo português, que dizer de quem pisava o Continente Americano como parte de alguma aventurosa tentativa de estabelecer colônia, "furtando" terras para alguma outra potência? Seria bem o caso dos que tentaram a França Antártica e a França Equinocial...
Foi nessa perspectiva que quatro capuchinhos franceses chegaram ao Maranhão em 1613.  Um deles, o padre Yves d'Évreux, escreveu um livro, em que relatou um fato no mínimo curioso, de leitura imperdível:
"O capitão de um navio de guerra deu-nos uma bela imagem, tomada de um navio português, que ia para Pernambuco.
Por acaso [sic!] mandei guardar essa imagem, na hora em que a recebi, numa das caixas que tinha em nosso quarto, e nesse mesmo momento vieram muitas mulheres índias à nossa casa, e vendo a imagem muito bem esculpida, pintada com diversas cores sobre fundo de ouro, admiraram-se e não queriam entrar, dizendo - Yanaité asse quege seta? "que coisa nova é esta que nos olha tão vivamente? Ela nos faz medo." Fi-los entrar dizendo-lhes que não tivessem medo, e que era uma imagem dos servos de Deus. Admirei-me de vê-los imediatamente prostrados a seus pés chorando sua boa-vinda, e depois me perguntaram que carne ela comia para irem buscá-la. Ri-me de tal simplicidade, e coloquei a imagem na capela de São Francisco." (²)
Analisemos com seriedade: 
  • Escaramuças entre embarcações portuguesas e francesas não eram, nesse tempo, nada incomuns no litoral brasileiro, resultando, para um lado e outro, em eventual apresamento de artigos considerados valiosos;
  • Yves d'Évreux não diz quem a imagem representava (a indicação de que foi colocada na capela de São Francisco não é uma pista conclusiva);
  • Relatos de vários autores dos Séculos XV, XVI e XVII corroboram a ideia de que indígenas demonstravam muito interesse por objetos de culto trazidos por europeus (³).
Então, onde estaria o inusitado?
Ora, leitores, no fato de que nosso devoto capuchinho francês, que correra o risco da travessia do Atlântico e da vida cheia de percalços na América para catequizar indígenas, não parecia ter nenhum escrúpulo em conservar na capela uma imagem que, afinal, fora roubada dos portugueses! 

(1) Cartas eram escritas tanto para dar satisfações aos superiores como para narrar aos irmãos de Ordem as façanhas do dia a dia. Talvez despertassem uma ponta de inveja nos que haviam ficado na terra natal... 
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 270.
(3) No Brasil, ao que parece, a curiosidade começou com o levantar da cruz para a celebração de missa por frei Henrique de Coimbra, que viera na esquadra comandada por Cabral.


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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A reação de indígenas da América do Sul às armas de fogo usadas por europeus

Ulrich Schmidel, alemão, embarcou para a América do Sul na armada sob comando espanhol Pedro de Mendoza, ainda na primeira metade do Século XVI. Seria apenas um soldado, mais um dentre os muitos aventureiros que vieram tentar a sorte no Novo Mundo, a não ser por um detalhe: quando retornou à Alemanha, escreveu um livro, cuja primeira edição, datada de 1567, trazia um título longuíssimo (como era costume na época), que começava com Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart - História Verdadeira de uma Navegação Maravilhosa... O êxito da obra é comprovado pelas sucessivas edições, algumas em outros idiomas, além do alemão.
Mutatis mutandis, Schmidel está para Argentina e Paraguai como Hans Staden (¹) para o Brasil. Sua permanência na América do Sul foi, porém, muito maior que a de Staden: vinte anos, tempo suficiente para que esse soldado-aventureiro-escritor pudesse observar e descrever, o mais das vezes cruamente, os rumos da colonização espanhola na região. No exercício de suas obrigações profissionais, não poucas vezes participou de batalhas contra grupos indígenas, nas quais, com raras exceções, o resultado foi o massacre da população nativa (²). Mesmo que eventualmente o sucesso inicial fosse dos ameríndios, a revanche resultava brutal. Por quê? Demos a palavra a Schmidel, ao narrar a luta contra os habitantes de uma aldeia defendida por uma paliçada e um fosso:
"Quando nos aproximamos e disparamos nossas armas de fogo contra eles, vendo que sem que alguma bola (³) ou flecha os atingisse, aparecendo apenas um ferimento no corpo, ficaram aterrados como diante de uma magia, e desataram a correr, uns sobre os outros, como se fossem cães, e, na pressa por alcançar o interior da paliçada, uns trezentos dentre eles acabaram caindo nos buracos disfarçados que havia ao redor dela." (⁴) 
Usem a imaginação, leitores, e visualizem a cena: os buracos ao redor da paliçada estavam repletos de estacas pontiagudas, e eram disfarçados ao inimigo com a sobreposição de arbustos, terra ou outro material que se prestasse a escondê-los. Na correria que sucedeu à primeira descarga das armas de fogo, os próprios indígenas caíram nas covas. O resultado foi uma carnificina. Mas, com fojos ou sem eles, as armas de fogo dos "conquistadores" eliminariam a maioria dos oponentes. Aos que sobrevivessem (e que não fossem capturados para a escravização) só restava a possibilidade da fuga para algum lugar distante.

Combate entre colonizadores espanhóis e indígenas da América do Sul , de acordo
com a edição de 1599 do livro de Ulrich Schmidel (5)

(1) Hans Staden, eu diria, é mais sofisticado como escritor, levando a vantagem de ter vivido entre indígenas, mesmo contra a vontade. Ulrich Schmidel tem destaque por ter permanecido na América durante duas décadas.
(2) Ainda que algumas vezes os conquistadores tenham sofrido derrotas nada desprezíveis. Muitas das escaramuças narradas por Ulrich Schmidel decorriam da tentativa, por parte dos invasores, de tomar posse do estoque de alimentos de que os povos nativos dispunham. 
(3) Talvez uma referência às boleadeiras que eram usadas como arma por alguns grupos indígenas da América do Sul.
(4) SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, p. 25. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Máquinas antigas usadas para fazer contas

Vejam isto, leitores - sabem o que é?


Quem disse que é uma calculadora, acertou. Mas não pensem que é um aparelhinho qualquer. Trata-se de uma calculadora mecânica, sem nenhum componente elétrico. É pesada, com seus 5,2 kg (tive a curiosidade de verificar).
Calculadoras como essa foram bastante empregadas até a sexta década do Século XX, mas seu uso era um tanto complicado, e, por isso, chego a pensar que uma pessoa que não tivesse traumas matemáticos provavelmente iria preferir as contas "na ponta do lápis". O advento de máquinas elétricas, mais práticas e simples de usar, pôs fim ao reinado das calculadoras mecânicas. Se pensarem um pouco, leitores, vão encontrar muitos outros aparelhos com os quais aconteceu fenômeno semelhante (¹).

Primeira máquina de somar
elétrica fabricada
integralmente no Brasil

Máquina de somar elétrica


Há no acervo do Memorial JK (Brasília -DF) uma máquina de somar (²) que foi presenteada pelo fabricante ao presidente Juscelino Kubitschek (³). Também não é um aparelhinho qualquer, e sim a primeira máquina de somar elétrica a ser inteiramente fabricada no Brasil. Não seria exagero, acredito, dizer que se trata de um exemplar característico da transição dos equipamentos de escritório de natureza mecânica para os elétricos. 

(1) Vejam o caso dos relógios, por exemplo. Quem de vocês consegue mencionar outros? Máquinas de escrever... Algo mais?
(2) Neste caso, não se trata de uma calculadora, capaz de diferentes operações, e sim de um aparelho destinado a efetuar somente adições com muita rapidez, para uso em atividades comerciais.
(3) Exerceu a presidência da República entre 31 de janeiro de 1956 e 31 de janeiro de 1961. 


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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Nero e o estoicismo ensinado por Sêneca

O estoicismo não começou em Roma - nasceu na Grécia, como muitas outras correntes de pensamento da Antiguidade. Foi no terceiro século antes de Cristo que Zenon começou a formular as bases do estoicismo, o qual, ganhando corpo nos centênios imediatos, chegaria a seu pleno desenvolvimento no Império Romano. 
Foi em Roma que ensinou um dos mais renomados filósofos estoicos, Lúcio Aneu Sêneca. Nascido na Espanha, esse escritor e pensador, ao longo de uma vida repleta de agitações, desenvolveu uma obra tão extensa quanto diversificada, da qual é parte De clementia, dirigida a seu mais famoso discípulo, Nero, então um adolescente de dezoito anos, mas já imperador. Nela, entre muitas observações (e adulações), explicava que o verdadeiro estoico lidaria, impassível, com as diferentes situações da vida, inclusive ao praticar ações nobres, ou seja, atos de autêntica clemência (¹):
"Sem chorar, enxugará lágrimas de outros, socorrerá ao que naufragou, acolherá o desterrado e dará esmola ao necessitado [...], fará com que o filho seja devolvido à mãe que pranteia, libertará o escravo, tirará o gladiador da arena e chegará a sepultar o criminoso executado, mas fará tais coisas sem qualquer alteração na fisionomia e com espírito sereno." (²)
Para quem vive no mundo ocidental em nosso tempo, essa obsessão pelo controle das emoções pode até ter o aspecto de indiferença, mas não devemos esquecer que os valores de hoje são muito diversos, e - negue quem quiser - influenciados por dois milênios de cristianismo (³). Em outra de suas obras, Sêneca teve o cuidado de justificar seu pensamento:
"Se coubesse ao sábio irritar-se contra todas as práticas vergonhosas, mostrar tristeza por toda maldade cometida, seria a sabedoria a mais infeliz condição, e a vida do sábio consistiria em ira e tristeza." (⁴)
Ainda que tudo isso pareça muito estranho, o fato, leitores, é que ninguém foi ou é obrigado a ser estoico ou a estar de acordo com as ideias de Sêneca, e nem mesmo seu imperial discípulo parece ter sido um exemplo notável de estoicismo prático. Pior para Sêneca, como se sabe.

(1) Fugindo das fraquezas que acometiam as pessoas comuns, que acabavam por ter um envolvimento emocional com o sofrimento alheio. Em De ira, Sêneca afirmou: "Não há emoção violenta que não provoque alteração na fisionomia."
(2) Todas as citações de obras de Sêneca mencionadas nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Quanto à ética, o cristianismo, antes de qualquer outra coisa, se distingue do estoicismo por um fator: a motivação implícita.
(4) De ira.


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terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Método usado por missionários jesuítas para acabar com uma guerra entre indígenas

Sabe aquela história de que "quando um não quer, dois não brigam"? Bem, nem sempre é verdade, mas os jesuítas que tentavam catequizar indígenas que viviam no interior da América do Sul descobriram que, não sendo possível impedir completamente que as guerras entre tribos rivais acontecessem, havia pelo menos um modo de evitar que os combates durassem muito tempo. Como?
A coisa era até simples. Os dois grupos de combatentes começavam a luta atirando flechas contra o lado oposto. Como muitas delas não atingiam ninguém, a prática corrente era recolher as flechas, que eram mandadas de volta. Desse modo, o confronto podia ir longe e, não raramente, tinha resultados devastadores.
Observando a dinâmica desse tipo de guerra, os missionários tiveram a ideia de recolher as flechas que vinham dos "inimigos", sem, contudo, mandá-las de volta. Esgotadas as flechas, só havia uma coisa a fazer: cair fora, até porque, agora, todas as flechas disponíveis estavam do outro lado, nas mãos dos padres. 
Esse procedimento era particularmente útil quando jesuítas percebiam que um grupo que catequizavam estava em vias de ser atacado justamente por ter recebido os missionários. Ao que parece, o expediente dava bom resultado apenas quando o combate era travado em pé de igualdade, ou seja, entre dois grupos de indígenas usando somente armas tradicionais, sem acesso a armas de fogo, trazidas por europeus.
Até aqui, leitores, vimos como é que o plano funcionava, teoricamente. Passaremos a tratar, agora, de uma situação real em que foi aplicado, desta vez em um confronto entre indígenas e espanhóis.
Aconteceu em terras do Paraguai, no Século XVII, quando o padre Antonio Ruiz de Montoya e outro missionário acompanhavam um grupo de espanhóis para a guerra contra indígenas que haviam rejeitado a catequese (!!!). Sendo muito numerosos, os indígenas levavam a melhor, enquanto espanhóis, religiosos e índios catequizados tentavam a defesa no interior de uma frágil paliçada. Foi nessa situação periclitante que Montoya sugeriu a aplicação do expediente de reter as flechas. Os espanhóis, porém, não concordaram com a ideia. Vamos à narrativa de Montoya:
Flechas confeccionadas
por indígenas (³)
"Tratamos, meu companheiro e eu, de pôr fim a essa guerra, ordenando a nossos índios amigos que não atirassem flechas, limitando-se a recolher as do inimigo, que, ao se ver desarmado, deixaria livre a passagem para que voltássemos, uma vez que os espanhóis já não tinham outra pretensão. Demos parte a eles de nosso intento que, mal considerando, rejeitaram, alegando que, ao atirarmos nossas flechas, impedíamos que os inimigos se aproximassem do forte, raciocínio sem fundamento, porque isso eles [espanhóis] eram capazes de fazer melhor com suas escopetas." (¹)
Mas, a despeito da oposição, o perseverante jesuíta não estava disposto a ceder. Tendo reunido os indígenas que tinha de sua parte, recomendou expressamente que não atirassem mais nenhuma flecha para fora da paliçada:
"Travou-se logo uma batalha renhida; os espanhóis lutavam pela vida [...], e nós retiramos os índios para a praça de armas, que os inimigos cobriram imediatamente de flechas que se cravaram no solo, as quais os nossos foram recolhendo. Fizeram o mesmo segunda e terceira vez, e sem que os nossos atirassem uma só flecha, cessaram as flautas, os tambores e a gritaria do inimigo, confuso por se ver desarmado. Os espanhóis, estranhando esse acontecimento, ignoravam a causa, até que sabendo o motivo e vendo que os inimigos, em massa, se despediam para voltar às suas terras, demos graças ao Autor de tudo." (²)
Só há uma conclusão possível, leitores: o método funcionava!

(1) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(2) Ibid.
As citações de Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) São da etnia kayapó e pertencem ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF). Na atualidade, flechas como essas têm uso relacionado à caça e à pesca.


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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Humanos muito estranhos que antigos diziam ter visto

Navegadores europeus dos Séculos XV e XVI que foram à África, Ásia ou ao Continente Americano relataram, às vezes com alguma decepção, que não haviam encontrado "gente estranha" nas terras percorridas. Referiam-se a criaturas disformes, ainda que dotadas de alguma semelhança com a espécie humana "normal". Não se preocupem, leitores, se a ideia não está muito clara. Logo adiante vocês entenderão melhor o que isto significa.
De onde viria, no entanto, a expectativa quanto ao encontro dessas variantes da humanidade? Plínio, o Velho, nos Livros V a VII de Naturalis Historia cita uma infinidade de supostos humanos, supostamente vistos por viajantes que, também supostamente, teriam andado por terras longínquas e que, mais tarde, deslumbrando seus contemporâneos, haviam escrito alguma coisa a fim de registrar para a posteridade suas tão notáveis descobertas. O ilustre panteão incluía:
  • Seres sem cabeça, cuja boca e olhos estavam no peito, e que habitariam um lugar na África;
  • Gente sem língua, nariz, etc., também vivendo no interior do Continente Africano;
  • Homens com pés ao contrário, mas, ainda assim, extremamente velozes;
  • Um povo que teria duas pupilas em cada olho (¹);
  • Gente que, durante a juventude, tinha os cabelos brancos, que enegreciam com o envelhecimento (²);
  • Um povo (na Índia) que não tinha nem dor de cabeça, nem dor de dente (³);
  • Também na Índia, um povo que se nutria apenas dos aromas que aspirava;
  • Homens com uma só perna e que, portanto, se moviam aos saltos;
  • Homens que teriam uma longa cauda coberta de pelos (⁴);
  • Finalmente, segundo a lista de Plínio, "nos desertos da África, espécies de homens aparecem aos viajantes e se esvaem em seguida" (⁵).
Que lhes parece, leitores: basta?
Na Antiguidade greco-romana, pouca gente tinha a oportunidade de viajar, especialmente quando se tratava de percorrer regiões algo distantes do Mediterrâneo. Portanto, se alguém alegava ter visto alguma monstruosidade, talvez os leitores e/ou ouvintes até duvidassem de sua palavra, mas era pouco provável que alguém fosse verificar. Viajantes podiam simplesmente mentir à vontade, e sempre haveria alguém para acreditar em sua conversa fiada. Plínio teceu, ele mesmo, uma interessante explicação para esse oceano de tolices: "Pessoas de alta posição, não dadas a investigações acuradas, mas constrangidas de manifestarem ignorância, não vacilam em mentir, uma vez que os maiores erros não parecem falsos quando vêm de um autor preeminente." (⁶)
Mas, se quisermos ser justos, teremos de admitir que nem sempre um contador de histórias estava mentindo. O medo em face do desconhecido às vezes suplanta a racionalidade e leva a crer nas maiores aberrações. E há, ainda, os erros de interpretação. Um indivíduo que viajou por terras distantes trouxe, ao retornar, a pele de dois seres que abatera e que ele acreditava pertencerem a uma raça de homens: eram baixinhos, cobertos de pelos longos e escuros, viviam em árvores e emitiam sons roucos em lugar da fala. Primatas? Sim, provavelmente, mas não humanos. Vocês, leitores, já sabem do que se tratava, não?

(1) Isso faz lembrar um pouco as representações de ETs que aparecem na literatura e no cinema.
(2) Qual seria a vantagem?
(3) Começa a ficar interessante...
(4) Não poderia faltar.
(5) A provável explicação deve ter escapado a Plínio.
(6) Naturalis Historia, Livro V. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Multa e degredo para quem fosse desobediente às ordens de João Ramalho

Aconteceu em São Paulo, apenas uma pequena vila no ano de 1562. Reuniram-se as autoridades e, desse acontecimento, resultou a nomeação de João Ramalho para o cargo de "capitão para a guerra", conforme o registro em ata: 
"Aos vinte e quatro dias do mês de junho da era de mil e quinhentos e sessenta e dois anos nesta Vila de São Paulo nas casas da morada de Diogo Vaz (¹) vereador se ajuntaram os oficiais da Câmara para darem juramento dos Santos Evangelhos para que bem e verdadeiramente servisse o cargo de capitão da dita Vila a João Ramalho [...]."
Era assim, mediante juramento, com a mão direita sobre o Livro Sagrado, que qualquer indivíduo indicado ao serviço público era admitido às suas funções. Sem isso, nem pensar! Mas já é outro assunto, se a dita cerimônia acabava ou não por garantir um mínimo de decência e honestidade da parte de quem jurava. 
Pois bem, efetivado João Ramalho no cargo, foi passada uma provisão com o seguinte teor, que deveria vir ao conhecimento de toda a população da Vila:
"João Colaço capitão em toda esta capitania de São Vicente pelo senhor Martim Afonso de Sousa (²) capitão e governador dela por el-Rei nosso senhor e faço saber aos que esta minha provisão virem em como por vozes e eleição saiu por capitão para a guerra João Ramalho ao qual eu dou todo meu poder para a guerra [...] e mando que na dita guerra se houver lhe obedeçam em tudo o que necessário for [...] sob pena de qualquer que ao dito João Ramalho não quiser obedecer na dita guerra será preso e da cadeia pagará vinte cruzados e um ano de degredo para a Bertioga [...]."
Tomem fôlego, leitores - as atas desse tempo dificilmente tinham alguma pontuação. Para reduzir o sofrimento, o texto foi transcrito na ortografia atual, como é costume neste blog. Vejam que, malgrado a evidente falta de habilidade do escrivão, o texto segue a linguagem jurídica típica da época. Mas há nele algumas questões intrigantes. Vejamos:
Que guerra era essa, para a qual João Ramalho foi indicado capitão? O documento não diz, mas o isolamento da Vila de São Paulo no Planalto e sua distância em relação ao mar permitem supor que se tratava de alguma rusga com indígenas - algo muito comum, portanto, já que colonizadores queriam ficar na terra e escravizar ameríndios, os quais, por sua vez, não queriam ser escravizados e, como é óbvio, lutavam para, se possível, expulsar os colonizadores.
Outro fato interessante é que, feita a nomeação, seguiu-se uma provisão ameaçando quem ousasse desobedecer ao novo warlord. Não imaginem, leitores, que isso fosse mera formalidade. A vilazinha de São Paulo era palco de frequentes agitações, sendo seus turbulentos moradores os mais talentosos intérpretes de encrencas e desacatos. Que o dissesse o próprio João Ramalho e sua famosa prole!... Como os habitantes da vila eram ainda pouco numerosos, não se admitia que alguém tentasse escapulir ao dever de prestar auxílio em caso de guerra.
Finalmente, notemos que, além de prisão e multa, o eventual desobediente seria condenado a um ano de degredo na Bertioga. O que é que tornava tal lugar um destino indesejável?
Hans Staden, em sua obra Wahrhaftige Historia und beschreibung eyner Landtschafft der Wilden Nacketen Grimmigen Menschenfresser Leuthen, publicada na Alemanha em 1557, contou que, durante sua segunda viagem à América, foi contratado para trabalhar como artilheiro na Capitania de São Vicente, em um forte ao qual ele, a seu modo, chamou Brickioka. Era a Bertioga da provisão paulistana de 1562. Foi justamente quando exercia essa função que Staden foi capturado por tupinambás e, somente com muita, muitíssima sorte, é que não virou moquém, digo, que não se tornou o mais louvado acepipe de um festim antropofágico. 
O forte da Bertioga não estava lá por acaso. Havia a ameaça constante de piratas e corsários. Havia, em algumas épocas do ano mais que em outras, o risco de um ataque indígena (³). Staden explicou claramente que a gente das redondezas havia decidido construir o forte, dotando-o de canhões, para se defender dos indígenas (⁴). Inicialmente apenas um muro de pau a pique, foi mais tarde reforçado com pedras. Para lá corriam os colonizadores na iminência de uma investida, viesse ela do mar ou de terra. Portanto, viver na Bertioga no Século XVI não era como tirar férias no paraíso. Os moradores de São Paulo devem ter entendido muito bem o recado nada sutil que estava contido na ameaça de degredo.

Neste mapa rústico incluído na obra de Hans Staden (Século XVI),
o forte da Bertioga é mostrado no alto, à direita (⁵) 

(1) A Câmara da Vila de São Paulo não tinha, nessa ocasião, edifício próprio, daí a necessidade de que as reuniões acontecessem na residência de um de seus oficiais.
(2) Estando ausente o donatário da Capitania, competia ao capitão-mor exercer o governo.
(3) De acordo com Hans Staden, era quando havia muito cauim (bebida) disponível que, para maior festa, se fazia a guerra, na certeza de que o banquete seria enriquecido com inimigos capturados.
(4) A segunda viagem de Hans Staden a América ocorreu a partir de 1549, como ele mesmo diz em Wahrhaftige Historia; como a primeira edição de se livro traz dedicatória datada de 1556, sendo a publicação de 1557, entende-se que os acontecimentos relativos à sua permanência no forte de Bertioga e à posterior captura por tupinambás ocorreram, necessariamente, nesse intervalo.
(5) STADEN, Hans. Wahrhaftige Historia und beschreibung eyner Landtschafft der Wilden Nacketen Grimmigen Menschenfresser Leuthen. Marburg: 1557.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Uma visão do quotidiano da Mesopotâmia na Antiguidade através do Código de Hamurabi

A Mesopotâmia do tempo de Hamurabi era predominantemente agrícola, ainda que a existência de cidades importantes favorecesse o comércio e o trabalho artesanal; famílias sob a lógica patriarcal eram a regra, e muitas delas tinham expressivos rebanhos, que garantiam seu sustento. As leis, em uma sociedade com essas características, deviam, necessariamente, fazer menção às questões reais que apareciam no quotidiano, um fato que nos permite, hoje, estudar melhor o modo de vida de gente que, tão humana como nós, vivia, não obstante, em condições muito diversas. Então, leitores, o que veremos a seguir será exatamente o que mandava o famoso legislador do Século XVIII a.C., em algumas situações que eram parte de seu mundo, porque, caso contrário, não faria o menor sentido sequer fazer menção a elas.

1. Quebra de confiança entre os que ajudavam a apagar um incêndio


É claro que não havia bombeiros especializados em apagar incêndios; a expectativa era que, sendo necessário, os vizinhos ajudassem a conter as chamas, respeitando, todavia, a propriedade alheia. A lei era, nesse caso, um poderoso fator de dissuasão para candidatos a infratores:
"Se ocorrer um incêndio em uma casa, e alguém vier para apagá-lo e, vendo alguma coisa de propriedade do dono da casa, tentar roubá-la, ele será lançado às chamas."

2. O que aconteceria a alguém que cortasse árvore de propriedade alheia


Uma lei como esta talvez resolvesse o problema do desmatamento:
"Se alguém, sem autorização, cortar uma árvore em propriedade alheia, pagará ao dono meia mina (*) de prata."

3. Punição para pastores de ovelhas que consentiam que seus rebanhos pastassem em campo alheio


Esta lei nos ajuda a entender alguma coisa quanto ao funcionamento de uma sociedade de agricultores e pastores:
"Se um pastor leva suas ovelhas a pastar em campo de outra pessoa, sem que o proprietário tenha conhecimento disso ou dê autorização, então o proprietário cujo campo foi danificado terá o direito de colher o cereal cultivado no campo do pastor."
Observem, leitores, que o próprio texto da lei sugere que pastores eram, frequentemente, também lavradores; nos dois casos, eram, ao que parece, proprietários das terras que cultivavam e nas quais criavam animais. Para desencorajar a negligência, o Código de Hamurabi informava à população que aos infratores seria, ainda, imposta uma indenização em grãos.

4. Castigo do adultério


O adultério era visto como uma falta gravíssima, punida com a morte:
"Se a mulher de alguém for surpreendida em flagrante adultério com outro homem, os dois serão amarrados e jogados no rio."
Observem que a sentença de morte era atribuída tanto à mulher quanto ao homem envolvidos em adultério. Ao contrário do que acontecia em outros Códigos da Antiguidade, era facultado ao marido perdoar a mulher, se assim o desejasse.

5. Punição em caso de violência sexual


Há quem imagine que, na Antiguidade, as leis eram complacentes em relação aos homens, sendo as mulheres sempre responsabilizadas em delitos de natureza sexual. Mas, em se tratando do Código de Hamurabi, não era essa a "lógica":
"Se um homem força a noiva de alguém a ter relações sexuais, vivendo essa mulher ainda em casa de seu pai, sendo o homem apanhado em flagrante, será executado, mas a mulher será absolvida."

(*) A mina variava de um lugar para outro; entende-se que, na Mesopotâmia em que viveu Hamurabi, ela equivalia a pouco menos de 700 gramas.


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