Aconteceu em São Paulo, apenas uma pequena vila no ano de 1562. Reuniram-se as autoridades e, desse acontecimento, resultou a nomeação de João Ramalho para o cargo de "capitão para a guerra", conforme o registro em ata:
"Aos vinte e quatro dias do mês de junho da era de mil e quinhentos e sessenta e dois anos nesta Vila de São Paulo nas casas da morada de Diogo Vaz (¹) vereador se ajuntaram os oficiais da Câmara para darem juramento dos Santos Evangelhos para que bem e verdadeiramente servisse o cargo de capitão da dita Vila a João Ramalho [...]."
Era assim, mediante juramento, com a mão direita sobre o Livro Sagrado, que qualquer indivíduo indicado ao serviço público era admitido às suas funções. Sem isso, nem pensar! Mas já é outro assunto, se a dita cerimônia acabava ou não por garantir um mínimo de decência e honestidade da parte de quem jurava.
Pois bem, efetivado João Ramalho no cargo, foi passada uma provisão com o seguinte teor, que deveria vir ao conhecimento de toda a população da Vila:
"João Colaço capitão em toda esta capitania de São Vicente pelo senhor Martim Afonso de Sousa (²) capitão e governador dela por el-Rei nosso senhor e faço saber aos que esta minha provisão virem em como por vozes e eleição saiu por capitão para a guerra João Ramalho ao qual eu dou todo meu poder para a guerra [...] e mando que na dita guerra se houver lhe obedeçam em tudo o que necessário for [...] sob pena de qualquer que ao dito João Ramalho não quiser obedecer na dita guerra será preso e da cadeia pagará vinte cruzados e um ano de degredo para a Bertioga [...]."
Tomem fôlego, leitores - as atas desse tempo dificilmente tinham alguma pontuação. Para reduzir o sofrimento, o texto foi transcrito na ortografia atual, como é costume neste blog. Vejam que, malgrado a evidente falta de habilidade do escrivão, o texto segue a linguagem jurídica típica da época. Mas há nele algumas questões intrigantes. Vejamos:
Que guerra era essa, para a qual João Ramalho foi indicado capitão? O documento não diz, mas o isolamento da Vila de São Paulo no Planalto e sua distância em relação ao mar permitem supor que se tratava de alguma rusga com indígenas - algo muito comum, portanto, já que colonizadores queriam ficar na terra e escravizar ameríndios, os quais, por sua vez, não queriam ser escravizados e, como é óbvio, lutavam para, se possível, expulsar os colonizadores.
Outro fato interessante é que, feita a nomeação, seguiu-se uma provisão ameaçando quem ousasse desobedecer ao novo warlord. Não imaginem, leitores, que isso fosse mera formalidade. A vilazinha de São Paulo era palco de frequentes agitações, sendo seus turbulentos moradores os mais talentosos intérpretes de encrencas e desacatos. Que o dissesse o próprio João Ramalho e sua famosa prole!... Como os habitantes da vila eram ainda pouco numerosos, não se admitia que alguém tentasse escapulir ao dever de prestar auxílio em caso de guerra.
Finalmente, notemos que, além de prisão e multa, o eventual desobediente seria condenado a um ano de degredo na Bertioga. O que é que tornava tal lugar um destino indesejável?
Hans Staden, em sua obra Wahrhaftige Historia und beschreibung eyner Landtschafft der Wilden Nacketen Grimmigen Menschenfresser Leuthen, publicada na Alemanha em 1557, contou que, durante sua segunda viagem à América, foi contratado para trabalhar como artilheiro na Capitania de São Vicente, em um forte ao qual ele, a seu modo, chamou Brickioka. Era a Bertioga da provisão paulistana de 1562. Foi justamente quando exercia essa função que Staden foi capturado por tupinambás e, somente com muita, muitíssima sorte, é que não virou moquém, digo, que não se tornou o mais louvado acepipe de um festim antropofágico.
O forte da Bertioga não estava lá por acaso. Havia a ameaça constante de piratas e corsários. Havia, em algumas épocas do ano mais que em outras, o risco de um ataque indígena (³). Staden explicou claramente que a gente das redondezas havia decidido construir o forte, dotando-o de canhões, para se defender dos indígenas (⁴). Inicialmente apenas um muro de pau a pique, foi mais tarde reforçado com pedras. Para lá corriam os colonizadores na iminência de uma investida, viesse ela do mar ou de terra. Portanto, viver na Bertioga no Século XVI não era como tirar férias no paraíso. Os moradores de São Paulo devem ter entendido muito bem o recado nada sutil que estava contido na ameaça de degredo.
Neste mapa rústico incluído na obra de Hans Staden (Século XVI), o forte da Bertioga é mostrado no alto, à direita (⁵) |
(1) A Câmara da Vila de São Paulo não tinha, nessa ocasião, edifício próprio, daí a necessidade de que as reuniões acontecessem na residência de um de seus oficiais.
(2) Estando ausente o donatário da Capitania, competia ao capitão-mor exercer o governo.
(3) De acordo com Hans Staden, era quando havia muito cauim (bebida) disponível que, para maior festa, se fazia a guerra, na certeza de que o banquete seria enriquecido com inimigos capturados.
(4) A segunda viagem de Hans Staden a América ocorreu a partir de 1549, como ele mesmo diz em Wahrhaftige Historia; como a primeira edição de se livro traz dedicatória datada de 1556, sendo a publicação de 1557, entende-se que os acontecimentos relativos à sua permanência no forte de Bertioga e à posterior captura por tupinambás ocorreram, necessariamente, nesse intervalo.
(5) STADEN, Hans. Wahrhaftige Historia und beschreibung eyner Landtschafft der Wilden Nacketen Grimmigen Menschenfresser Leuthen. Marburg: 1557.
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