quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Altares domésticos dos astecas

Não só de sacrifícios em altares no alto das pirâmides escalonadas, com intervenção da elite sacerdotal, era feita a religião dos astecas. Essa, por certo, era mais religião de Estado que fenômeno pessoal e quotidiano. Se podemos crer nas palavras de Bernal Díaz del Castillo, soldado espanhol que participou da conquista e destruição do Império Asteca com Hernán Cortés, havia, também, práticas religiosas domésticas:
"[...] cada índio e índia tinha dois altares, um no lugar em que dormiam, outro na porta da casa, [..] cheios de ídolos (¹), alguns pequenos, outros grandes, pedras pequenas e grandes, e uns livrinhos de papel feito de casca de árvore, a que chamam amatl, e neles seus sinais do tempo e coisas passadas. [...]" (²)
Sabe-se que Bernal Díaz escreveu suas memórias da guerra contra os astecas muito tempo depois dos acontecimentos. Quanto é ele confiável? É difícil determinar, mas foi, de qualquer modo, testemunha ocular, e conviveu com os indígenas antes e depois da "conquista", e pôde, assim, fazer observações em primeira mão. É verdade que tudo passava pelo filtro de suas convicções religiosas, mas, ressalvados esses fatores, é interessante que tenha registrado como os astecas que encontrou faziam suas práticas religiosas no âmbito privado. 
Para quem hoje se interessa por estudar a cultura dos povos indígenas, resta lamentar que nem todos os livrinhos com imagens que representavam "coisas passadas" tenham sobrevivido. Os "conquistadores" tinham pressa em apagar tudo o que remetia às crenças nativas e, para isso, muitos deles não hesitavam em queimar qualquer coisa que encontravam. Em uma época em que europeus queimavam pessoas que se atreviam a pensar diferente em matéria de religião, por que não queimariam os objetos de culto dos astecas? 

(1) Esculturas ou outras representações de deuses.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias



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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Mantilhas pretas e vermelhas

O uso de mantilhas foi generalizado entre as mulheres que viviam no Brasil Colonial. Cobriam-se com ela quando iam à rua e, em casos extremos, maridos ciumentos impunham seu uso até dentro de casa. Pode-se bem imaginar o que isso significava em tardes quentes de verão.
Aos poucos, comportamentos mais civilizados se introduziram na Colônia e, depois, no Império, e, à exceção do que ocorria em localidades interioranas, as mantilhas caíram em desuso. Não combinavam, mesmo, com as modas francesas que invadiram o Rio de Janeiro, capital do Império.
Apesar disso, por relato de Joaquim Ferreira Moutinho, um português que durante dezoito anos viveu em Cuiabá no Século XIX, vê-se que as mulheres daquela cidade, as pobres e as ricas, persistiam no uso da mantilha (ou talvez persistissem por elas os homens das respectivas famílias). Havia, contudo, uma diferença:
"É original ali [em Cuiabá], nas mulheres pobres e nas escravas, o uso de saírem à rua embuçadas em uma baeta vermelha. As pessoas mais favorecidas da fortuna usam de um manto de pano preto lemiste. no qual se envolvem, deixando apenas descoberta uma parte do rosto." (¹) 
Perversamente, Ferreira Moutinho concluiu: "Este costume - prejudicial às bonitas - é o salvatério das feias." (²) 

(1) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia Sobre a Província de Mato GrossoSão Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, pp. 14 e 15.
(2) Ibid., p. 15.


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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Curiosidades sobre os faraós

1. Os faraós representavam o ápice da pirâmide social no Egito Antigo. Há poucos casos conhecidos de mulheres que eventualmente ocuparam esse posto. Filhos dos faraós, quando pessoas capazes, ocupavam cargos importantes nos negócios públicos, tanto civis como militares.

2. O faraó era visto como o deus sol em figura humana. O respeito que lhe era votado vinha, em parte, da crença de que ele se constituía em uma ponte entre os assuntos dos deuses e os da humanidade.

3. No imaginário egípcio, faraós mantinham sua posição não apenas em vida: continuavam a ser reis também após a morte. O mesmo acontecia em relação aos demais mortos, que conservavam, no além-túmulo, as tarefas que tinham em vida, apenas com algumas melhorias, e sem tornar a morrer.
 
4. Tutmés IV, assim que subiu ao trono, mandou remover a areia que cobria quase toda a esfinge, deixando apenas a cabeça emersa. Se existe um monumento no mundo cuja idade exata ninguém sabe, esse monumento é a esfinge de Gizé. No mínimo, parece muito mais antiga do que as pirâmides próximas. 

5. Em um prazo de dez anos, Amenófis III teria matado cento e doze leões. Matar leões, contudo, não era mania apenas dos monarcas do Egito: reis assírios, por exemplo, eram apaixonados pela caça aos leões. Para facilitar o trabalho, os animais eram aprisionados e, assim, estavam à disposição de tão valentes caçadores.

6. Ramsés II costumava ter a companhia de um leão em campo de batalha.

7. De acordo com Heródoto, um grande prodígio ocorreu quando começou a reinar o faraó Psamético, filho de Amósis: choveu em Tebas, coisa que os egípcios vivos na época diziam nunca ter presenciado. Já que as chuvas eram tão raras, o telhado das casas não era, em regra, uma parte muito reforçada das construções, daí os grandes estragos que ocorriam quando uma mudança nos hábitos do clima resultava em chuvarada.

8. Faraós podem ter sido responsáveis pela iniciativa de grandes viagens marítimas na Antiguidade. Heródoto sugeriu que, por ordem do faraó Necao II, que viveu entre os Século VII e VI a.C., navegadores (provavelmente fenícios), teriam contornado todo o Continente Africano.


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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Recompensa para o escravo que encontrava um diamante grande

A extração de diamantes no Brasil foi, durante muito tempo, um monopólio da Coroa. Mas, à semelhança da extração aurífera feita por particulares, a mão de obra era essencialmente escrava. Talvez pareça que, para o cativo, nenhum estímulo havia para a procura de diamantes excelentes. Mas não era assim.
Wilhelm Ludwig von Eschwege, ou simplesmente Barão de Eschwege (¹), que esteve no Brasil a convite do governo joanino, observou que o escravo que encontrava um diamante valioso era devidamente recompensado:
"Tenha o escravo, porém, a felicidade de achar um diamante de mais de dezessete quilates e meio, é logo enfeitado de grinaldas de flores e conduzido em alegre procissão até a administração. Esta lhe concede a alforria, que é paga ao dono [...] (²). O negro, além da liberdade, recebe vestimentas novas e autorização de trabalhar por conta própria. Caso o achado seja de oito a dez quilates, receberá camisas novas, um fato completo, um chapéu e uma boa faca, que também constitui recompensa pela descoberta de diamantes menores." (³) 
Diamantes grandes, porém, não eram comuns, e disso se conclui que as alforrias por esse motivo eram igualmente raras:
"As pedras grandes são raras, pois, no correr do ano, apenas duas ou três, de dezessete a vinte quilates, são achadas." (³) 
Eschwege era um especialista em mineração, e sua vinda ao Brasil se explica pelo interesse do governo de D. João VI em saber se era possível melhorar a produção, tanto das jazidas auríferas quanto da extração de diamantes. Conforme logo verificou, não bastava atribuir prêmios aos trabalhadores, no interesse de motivá-los a um bom desempenho em suas tarefas. As técnicas de extração é que eram ruins, muito ruins, e resultavam em um grande desperdício do terreno potencialmente rico.

(1) 1777 - 1855.
(2) Os escravos que trabalhavam no Distrito Diamantino pertenciam a particulares que alugavam seus serviços. 
(3) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 495.
(4) Ibid., p. 497.


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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

O maior defeito das ferrovias paulistas construídas no Século XIX

Trilhos de uma ferrovia desativada
A construção de ferrovias na Província de São Paulo foi, no século XIX, um passo importantíssimo de modernização nas comunicações e transportes. Sem elas, não seria possível exportar o que quer que fosse em larga escala - café, por exemplo - que devia ser levado das fazendas ao porto de Santos; sem elas, seria muito mais difícil o deslocamento de contingentes populacionais para trabalho na lavoura, mão de obra de imigrantes, que chegava ao Brasil na expectativa,
nem sempre alcançada, de melhora nas condições de vida; sem elas, a propagação de notícias continuaria nos velhos padrões, seguindo a pé, a cavalo ou em mulas, ou ainda em canoas. Grande mudança, portanto.
Contudo, essas ferrovias sofriam de um defeito sério, com graves implicações à sua utilidade: foram construídas sem um plano geral que antecedesse os trabalhos. A construção e administração de um trecho era entregue a uma companhia, muitas vezes de capital estrangeiro, enquanto outros trechos, de outras companhias, eram construídos com padrões diferentes. Era o caso, por exemplo, das bitolas entre os trilhos. Vejamos alguns exemplos:
  • Estrada de Ferro Santos - Jundiaí: 1,6 m (¹);
  • Companhia Paulista, ligando Jundiaí a Campinas: 1,6m (²);
  • Companhia Ituana, trecho Jundiaí a Itu: 0, 96 m (³);
  • Companhia Sorocabana: 1,0 m (⁴).
Outros casos poderiam ser citados, mas estes já são suficientes para demonstrar que havia uma dificuldade prática: trens de uma companhia não podiam circular nos trilhos de outra. Para os usuários, um incômodo problema: faziam-se necessárias as irritantes baldeações, quando, para seguir viagem entre trechos de distintas companhias, era preciso mudar de um trem para outro. 
É fato que, em parte, as bitolas diferentes eram intencionais, já que as empresas buscavam assegurar para si o maior lucro possível, garantindo que não haveria compartilhamento da infraestrutura, mas isso apenas demonstra que, de certo modo, o governo provincial, sem dispor de recursos próprios para estabelecer linhas férreas, via-se refém das companhias interessadas em assumir determinados trechos, cuja lucratividade, no entanto, competia ao governo garantir. A questão, vê-se, era complexa. O resultado, um quebra-cabeça de trilhos diferentes, para desgosto de quem viajava ou contratava o transporte de mercadorias.
Agora, leitores, se quiserem dar um mergulho no que era uma viagem ferroviária nesses tempos, podem ouvir "O Trenzinho do Caipira" (⁵) de Heitor Villa-Lobos. Fechem os olhos e deixem a imaginação voar. Se a experiência auditiva não for suficiente, poderão, também, fazer uma breve viagem em alguma das ferrovias turísticas em que circulam velhas locomotivas a vapor restauradas, com carros igualmente antigos. Vão descobrir, neste caso, que viajar não era exatamente uma experiência confortável.

(1) Cf. PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, p. 40.
(2) Ibid.
(3) Ibid., p. 47.
(4) Ibid. p. 50.
(5) Bachianas Brasileiras nº 2.


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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Um romano que lutou em cento e vinte batalhas

Roma era República há pouco tempo. Livrara-se dos reis, que tanto a incomodavam. Um tribuno da plebe desse tempo tornou-se uma espécie de herói nacional, por ter, segundo Plínio, o Velho (¹), lutado em nada menos que cento e vinte batalhas:
"Lúcio Sício Dentato, que foi tribuno da plebe [...] não muito depois da deposição dos reis, tendo recebido muitíssimos votos, lutou em cento e vinte batalhas; sendo provocado lutou e foi vitorioso em oito combates singulares. Tinha quarenta e cinco cicatrizes pelo corpo, nenhuma delas nas costas." (²)
De conformidade com Plínio, o botim de guerra que coube a Dentato por tantas façanhas, incluía dinheiro, dez prisioneiros e vinte vacas.
Façamos duas considerações:
  • Para que tenha lutado em tantas batalhas, era preciso que os romanos de seu tempo vivessem metidos em encrencas com os povos vizinhos;
  • O tamanho do botim de guerra por ele capturado mostra que as tais batalhas em nada poderiam se comparar àquelas travadas, por exemplo, durante as Guerras Púnicas. Deviam ser simples querelas com outros grupos humanos na Península Itálica. Qual a importância disso? Roma, que era uma povoação de pastores e agricultores briguentos, tornou-se uma cidade mais e mais destacada, que chegou a controlar toda a Península, abrindo caminho para um território cada vez maior, ao redor do grande "lago romano", o Mediterrâneo

(1) 23 d.C. - 79 d.C.
(2) PLÍNIO, o Velho. Naturalis Historia, Livro VII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Um governador que comandou expedição contra indígenas

Eis aqui um assunto que levanta mais perguntas do que se pode responder. Aconteceu no Século XVIII, e disso se fala nos Anais Históricos do Estado do Maranhão, também conhecidos como "Anais de Berredo", do nome de seu autor, Bernardo Pereira de Berredo:
"[...] sucedeu o ano de 1715; mas o Senhor de Pancas, Cristóvão da Costa, livre já do cuidado da guerra da Europa, o empregou na do mesmo país; e para dar mais evidentes provas de que era tanto o zelo de que se enobrecia a sua atividade como militar o seu grande espírito, formando logo uma boa tropa para o castigo do gentio de corso da nação belicosa dos bárbaros, infestadores da Capitania do Maranhão, se declarou por seu comandante." (¹)
Os encômios de Berredo ao governador do Maranhão não conseguem disfarçar o que, de fato, acontecia. Uma vez que não era usual que governadores comandassem entradas ao sertão para combater indígenas, que interesse teria nisso Cristóvão da Costa, ao enfrentar tantos desconfortos em uma terra hostil, cheia de animais peçonhentos e insetos incômodos?
Lembrando, de passagem, que "gentio" era um modo usual, na época, de referência aos indígenas, e que "gentio de corso" era como se falava dos indígenas nômades, voltemos às palavras de Berredo, para saber em que foi dar essa óbvia expedição de apresamento de indígenas para escravização
"Como o general desta expedição o era do Estado, se adiantaram tanto as providências para ela, que saiu da cidade de S. Luís dentro de poucos dias; mas deixando todos aqueles moradores cheios de esperanças, as malogrou com muita brevidade a inconstância da guerra; porque fazendo um destacamento sobre os mesmos bárbaros, que encarregou ao sargento-mor João Nogueira de Sousa, quando este cabo, cercada já a populosa aldeia, a que se reduzia o principal corpo de sua nação, valorosamente se dispunha para a entrar à escala, um soldado de baixo nascimento, ou fosse por descuido, ou por malícia, disparou uma arma, e avisados eles do estrondo do tiro, fugiram quase todos ao perigo que os ameaçava, amparados também das sombras da noite com o conhecimento do terreno." (²)
As esperanças dos moradores, ainda que não explícitas no que escreveu Berredo, só poderiam ser as de, em poucos dias, terem à disposição número considerável de novos escravizados. Outras perguntas daí decorrem, porém: se os tais indígenas, "bárbaros", eram "gentio de corso", o que estariam fazendo aldeados? A menos que por aldeia se deva entender apenas um acampamento, há nisso evidente contradição. O que há de mais encantador, contudo, é que Berredo admite que o "soldado de baixo nascimento" pode ter disparado, não por acidente, mas "por malícia", ou seja, intencionalmente, para advertir os indígenas. Seja como for, trata-se de um dos poucos episódios em que um tiro que não saiu pela culatra fez com que toda uma expedição "saísse pela culatra". Os indígenas, é claro, deram no pé, e fizeram muito bem.
 
(1) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão. Lisboa: Oficina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 676.
(2) Ibid. 


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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Proibido usar máscaras

No Século XVII, o uso de máscaras era associado à prática de crimes


Já houve tempo em que era proibido usar máscaras no Brasil. Não, leitores, não eram máscaras sanitárias. Eram daquelas usadas no antigo entrudo (sucedido pelo carnaval), e cujo uso podia degenerar em criminalidade, de modo que as autoridades não favoreciam seu emprego, embora, mesmo com as restrições, tivessem de tolerá-las durante os dias de festas populares. Um documento citado por Vieira Fazenda em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro refere uma proclamação pública - bando, como então se dizia - com data de 1685, por ordem do governador Duarte Teixeira Chaves, proibindo as máscaras sob penas bastante severas:
"Toda a pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que se encontrar enmascarado [sic], incorrerá na pena de ir servir a Sua Majestade, que Deus guarde, na Nova Colônia do Sacramento (¹), do Rio da Prata, e sendo negro ou mulato será açoitado publicamente, e todo o oficial de guerra que encontrar os tais enmascarados [sic] os prenderá logo, sob pena de um mês de prisão para uma das fortalezas [...]." (²)
Ainda de conformidade com Vieira Fazenda, mesmo as mantilhas usadas por mulheres eram motivo de preocupação, a ponto de um bispo ter cogitado que se proibisse às damas as saídas à noite, "[...] porque alguns gaiatos se aproveitavam dessa capa para, disfarçados, cometerem tropelias e escândalos" (³)

(1) A Colônia do Sacramento, no atual Uruguai, foi verdadeiro cavalo de batalha dos tempos coloniais. Trocou de mãos várias vezes, e o governador deve ter decidido mandar os infratores para lá porque, além de ser, na época, considerada o limite sul do território português na América do Sul, era ainda lugar destituído de recursos à sobrevivência e de defesa muito difícil, para onde, como regra, somente iam aqueles que a isso eram obrigados. 
(2) FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 326.
(3) Ibid.


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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Colonizadores casados no Reino que se casavam novamente no Brasil

Os registros da Primeira Visitação do Santo Ofício ocorrida no Brasil, mais especificamente na Bahia, em 1591, mostram que não eram exatamente raros os casos de colonizadores casados (homens ou mulheres) que, vindo ao Brasil, deixavam cônjuge vivo no Reino e, valendo-se da distância que quase tudo ocultava, casavam-se novamente. Isto é, até que ameaçados pela Inquisição, que parecia tudo adivinhar, corriam para a mesa do visitador e revelavam o que haviam feito. Exemplos? Vejamos:

Confissão de Baltasar Martins Florença, mestre de açúcar que deixou a mulher na Madeira e se casou novamente no Brasil
"[...] ele confessante se veio para estas terras do Brasil, e deixou a dita sua mulher Isabel Nunes, e depois de estar ele confessante nestas partes do Brasil seis ou sete anos, [...] sabendo ele que ela estava viva, ele se casou [...] em Vila Velha [...] com Susana Borges Pereira [...] e a recebeu na igreja de Vila Velha [...] na forma como se costumam receber [...]." (¹)
Confissão de Catharina Morena, que fugiu da Espanha porque era maltratada pelo marido e veio para o Brasil, onde se casou segunda vez com documento falso
"[...] confessando disse que haverá onze anos, pouco mais ou menos, sendo ela então da idade de dezoito anos, casou-se na cidade de Toledo [...] com Francisco Duram [...], que então dizia ser da idade de trinta anos [...], e com o dito seu legítimo marido ela esteve fazendo vida marital [...] como casados que eram, espaço de seis meses pouco mais ou menos, usando o dito o ofício de estalajadeiro. E no fim dos ditos seis meses, por ela ter grande aborrecimento ao dito seu marido por ser ele costumado a embebedar-se [...] lhe fugiu de casa e o deixou [...] e se veio fugida com um homem castelhano chamado Francisco de Burgos que a trouxe consigo a este Brasil [...], e depois de estar neste Brasil algum tempo na conversação do dito Francisco de Burgos se apartou dele e o deixou, e ela se foi a Pernambuco, onde [...] vendo-se muito pobre e desremediada determinou de se casar, e fez fazer uma carta falsa fingindo que lhe vinha de Málaga, em que se dizia que o dito seu marido Francisco Duram era morto, a qual deu a ler a muitas pessoas, e assim fingindo-se viúva [...] ela se casou segunda vez com Antônio Jorge, português, mestre de açougue na dita vila de Pernambuco [...]." (²)  
Confissão de Antônia de Bairos, que veio ao Brasil condenada a degredo por adultério, e se casou novamente, sendo vivo o primeiro marido
"[...] e confessando disse que haverá trinta e dois anos, pouco mais ou menos, que ela veio do Reino degradada pelas justiças seculares por cinco anos para este Brasil por adultério, de que a acusou o dito seu marido [...] e lá em Portugal se amigou ela com um homem cristão velho chamado Henrique Barbas [...] e com ele se veio para este Brasil e aportaram na Capitania Porto Seguro, e logo na dita capitania, poucos dias depois de estarem nela, sabendo ela muito bem e o dito Henrique Barbas de como o dito marido Álvaro Chaveiro, seu legítimo marido, ficava vivo em Portugal, se casaram ambos, ela confessante com o dito Henrique Barbas, [...] e que depois de assim se casar em face da Igreja com o dito segundo marido Henrique Barbas, sendo ela e ele sabedores que o seu legítimo marido Álvaro Chaveiro estava vivo, viveram ambos como casados em Porto Seguro mais de quinze anos, e por ele vir a dar açoites e pancadas e muito má vida a ela confessante, [...] lhe fugiu de casa e se meteu na igreja da vila e começou a declarar e manifestar como o dito Henrique Barbas não era seu marido legítimo [...]." (³) 
Estes são casos conhecidos em razão das confissões feitas diante do visitador do Santo Ofício. Quantos mais devem ter ocorrido em todo o Brasil? Impossível saber. A distância e a enorme dificuldade de comunicação aliavam-se aos que, talvez supondo que nunca mais poriam os pés no Reino, imaginavam que passariam melhor seus dias na terra se arranjassem novo casamento.

(1)  MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 32.
(2) Ibid., pp. 81 e 82.
(3) Ibid., pp. 85 e 86.


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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Pérolas para as damas romanas

Romana desconhecida (¹)
No Século I, o comércio fervilhava com preciosidades que mercadores, por mar e por terra, faziam chegar ao coração do Império Romano. Marfim da África, tecidos finíssimos e tapeçarias do Oriente, perfumes da Arábia, atraíam a atenção da elite de Roma, que estava disposta a pagar fortunas para ostentar alguma esquisitice, enquanto a massa, boquiaberta, admirava o que via, ainda que não pudesse entrar na onda de consumo. 
Para as mulheres romanas, porém, nada se comparava às pérolas. Elas vinham de pontos remotos ao longo do Oceano Índico, onde mergulhadores, quase sempre escravos, arriscavam a vida para encontrá-las. O desejo por pérolas era tão alucinante que até mesmo a gente pobre de Roma sonhava com elas, e fazia o possível para adquiri-las - foi Plínio, o Velho, quem disse (²). E disse mais: era nas orelhas (³) que quase todas as damas romanas gostavam de ostentá-las, embora também fosse moda usá-las presas aos calçados e até em chinelos, havendo quem apreciasse pisar sobre elas (⁴). Que coisa incômoda!
Contudo, meus leitores, Plínio alegou ter sido testemunha ocular de extravagância muito maior. "Eu vi Lolia Paulina (⁵) [...]", disse ele, "não só em cerimônias solenes mas até em jantares corriqueiros, coberta de esmeraldas e pérolas, resplandecendo alternadamente sobre toda a cabeça, cabelos, orelhas, pescoço e dedos, no valor de quarenta milhões de sestércios (⁶)" (⁷). De onde vinha tudo isso? O mesmo Plínio não teve dúvida em concluir que, afinal, provinha do espólio arrancado às províncias conquistadas por Roma.  

(1) Cf. HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 244. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) Cf. PLÍNIO, o Velho. Naturalis Historia, Livro IX.
(3) Ibid., Livro XI.
(4) Ibid. Livro IX.
(5) Terceira esposa do imperador Calígula.
(6) Se admitirmos o sestércio como um quarto do valor de um denário, os quarenta milhões de sestércios equivaleriam a dez milhões de denários. Sabe-se que o denário era o salário habitualmente pago por dia de trabalho de um trabalhador comum. Portanto, a senhora Lolia Paulina estaria coberta por dez milhões de dias de trabalho, nem mais e nem menos. 
(7) PLÍNIO, o Velho. Op. cit., Livro IX. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Como indígenas caçavam antas

Anta (Tapirus terrestris)

Jean de Léry (*) descreveu a anta como uma vaca sem chifres, meio vaca, meio jumento. Estava certo? Questão de opinião. Léry não tinha medo das antas porque, com os indígenas, aprendeu que, a despeito dos dentes afiados, elas usavam apenas a fuga como defesa. Por isso, os tupinambás, que eram hábeis no uso do arco, matavam-nas a flechadas ou com o emprego de armadilhas. 
A razão para a caça às antas era simples: obter comida. O método de preparar carne empregado pelos tupinambás, conforme descrito por Jean de Léry, era colocar forquilhas feitas de galhos de árvore no chão, e, entre elas, bastões de madeira que funcionavam como grelhas, nas quais a carne, em pedaços, era posta a assar. Sabe-se que outros povos indígenas tinham métodos diferentes para assar a carne dos animais que caçavam. 
O couro das antas tinha uso, também. Dele se fazia uma arma defensiva, semelhante a um escudo redondo, usado para aparar flechas lançadas por inimigos durante um combate. Colonizadores observaram esse uso, decorrente da dureza de parte do couro de anta, e logo entenderam que podiam empregá-lo também, com idêntico propósito. Quanto a Léry, ele e seus companheiros, na viagem de regresso à França, ficaram sem ter o que comer, uma situação que, infelizmente, nada tinha de incomum na travessia do Atlântico durante o Século XVI, e mesmo mais tarde. Lembraram-se de cortar em pedaços os couros de anta que levavam, fervendo-os em água, na suposição de que poderiam servir para matar a fome. O resultado foi terrível. Alguém no grupo, com certo talento para culinária, resolveu mudar o modo de preparo, assando o couro na brasa. Desta vez, depois de removida a superfície que se queimara, chegou-se a um resultado satisfatório. Alegou-se, até, que parecia torresmo. O que é que a fome não faz!... 

(*) Francês, Léry veio muito jovem ao Brasil. Chegou à fracassada colônia francesa conhecida como França Antártica, e ficou menos de um ano. Voltou à França e, como calvinista que era, foi a Genebra, estudou Teologia, tornou-se pastor protestante e, mais tarde, escreveu um livro contando suas aventuras e experiências na América do Sul, que foi publicado com o título de Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil.


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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Mulher de faiscador de ouro

Ficção histórica ambientada na vida de muitas mulheres casadas com garimpeiros pobres no Brasil Colonial


As pombas esvoaçam aqui e ali, afugentadas pela areia que a lavadeira lança, irritada, contra aves tão incômodas. Por que haveriam de sujar as roupas que já punha a secar na grama, perto do riacho?
Segue esfregando com o sabão de cinza, enquanto rumina umas ideias. O que estava, afinal, fazendo ali, tão longe dos parentes e da vila em que crescera?
Não fora por vontade própria. Um dia, sem dar conversa, o marido aparecera na casinha em que moravam, ele, ela, quatro crianças, e mandara arrumar o que podia carregar porque iam para longe. Ele mandava, o que é que ela podia fazer?
Obedeceu, e dias depois, lá iam os seis. Mas eram sete, ela ainda não sabia que mais um ia na barriga, e logo seriam só quatro, que, das crianças, três morreriam de febres do mato. No caminho, os pés ardiam, a trouxa na cabeça fazia doer o pescoço e as costas, os pequenos choramingavam, o marido não dizia palavra, só mexia o nariz e as sobrancelhas para ajeitar o cigarro de palha no canto da boca. Saberia, de fato, para onde os levava?
Chegaram, afinal, a um vilarejo miserável. Largaram no chão a mudança, se é que assim podia ser chamada, à sombra de uma árvore. Ali mesmo, em alguns dias, estava em pé mais um casebre, onde ela tentava acalmar as crianças e esconder as lágrimas. Que ele não visse nada disso. Do que traziam da vila, já quase toda a comida se acabara. O que seria deles?
A gente, ao redor, só pensava em arrancar ouro da terra. Ali havia pouco, era para gente como eles, faiscadores sem eira e nem beira. Com sorte, para comer, aparecia alguma caça. O mais, só miséria. O marido não dera, pela picareta e pela bateia que usava, os poucos vinténs que tiniam no bolso?
Vão-se os meses, vão-se os filhos, ela perde a conta do tempo. Um dia, foi-se o marido, dizendo que andaria mais adiante, que acharia ouro em outro lugar, que voltaria quando estivesse rico. Como sempre, ela não contestara. 1720, 1721? Ela nem tem certeza. Planta uma rocinha de milho ao redor do casebre, uns pés de mandioca, batata-doce. Disso vive ela e vivem outras como ela. Continua a esfregar os trapos que ainda restam. Outro punhado de areia voa na direção das pombas. Se tivesse pólvora, mandaria todas para a panela.


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