Os registros da Primeira Visitação do Santo Ofício ocorrida no Brasil, mais especificamente na Bahia, em 1591, mostram que não eram exatamente raros os casos de colonizadores casados (homens ou mulheres) que, vindo ao Brasil, deixavam cônjuge vivo no Reino e, valendo-se da distância que quase tudo ocultava, casavam-se novamente. Isto é, até que ameaçados pela Inquisição, que parecia tudo adivinhar, corriam para a mesa do visitador e revelavam o que haviam feito. Exemplos? Vejamos:
Confissão de Baltasar Martins Florença, mestre de açúcar que deixou a mulher na Madeira e se casou novamente no Brasil
"[...] ele confessante se veio para estas terras do Brasil, e deixou a dita sua mulher Isabel Nunes, e depois de estar ele confessante nestas partes do Brasil seis ou sete anos, [...] sabendo ele que ela estava viva, ele se casou [...] em Vila Velha [...] com Susana Borges Pereira [...] e a recebeu na igreja de Vila Velha [...] na forma como se costumam receber [...]." (¹)
Confissão de Catharina Morena, que fugiu da Espanha porque era maltratada pelo marido e veio para o Brasil, onde se casou segunda vez com documento falso
"[...] confessando disse que haverá onze anos, pouco mais ou menos, sendo ela então da idade de dezoito anos, casou-se na cidade de Toledo [...] com Francisco Duram [...], que então dizia ser da idade de trinta anos [...], e com o dito seu legítimo marido ela esteve fazendo vida marital [...] como casados que eram, espaço de seis meses pouco mais ou menos, usando o dito o ofício de estalajadeiro. E no fim dos ditos seis meses, por ela ter grande aborrecimento ao dito seu marido por ser ele costumado a embebedar-se [...] lhe fugiu de casa e o deixou [...] e se veio fugida com um homem castelhano chamado Francisco de Burgos que a trouxe consigo a este Brasil [...], e depois de estar neste Brasil algum tempo na conversação do dito Francisco de Burgos se apartou dele e o deixou, e ela se foi a Pernambuco, onde [...] vendo-se muito pobre e desremediada determinou de se casar, e fez fazer uma carta falsa fingindo que lhe vinha de Málaga, em que se dizia que o dito seu marido Francisco Duram era morto, a qual deu a ler a muitas pessoas, e assim fingindo-se viúva [...] ela se casou segunda vez com Antônio Jorge, português, mestre de açougue na dita vila de Pernambuco [...]." (²)Confissão de Antônia de Bairos, que veio ao Brasil condenada a degredo por adultério, e se casou novamente, sendo vivo o primeiro marido
"[...] e confessando disse que haverá trinta e dois anos, pouco mais ou menos, que ela veio do Reino degradada pelas justiças seculares por cinco anos para este Brasil por adultério, de que a acusou o dito seu marido [...] e lá em Portugal se amigou ela com um homem cristão velho chamado Henrique Barbas [...] e com ele se veio para este Brasil e aportaram na Capitania Porto Seguro, e logo na dita capitania, poucos dias depois de estarem nela, sabendo ela muito bem e o dito Henrique Barbas de como o dito marido Álvaro Chaveiro, seu legítimo marido, ficava vivo em Portugal, se casaram ambos, ela confessante com o dito Henrique Barbas, [...] e que depois de assim se casar em face da Igreja com o dito segundo marido Henrique Barbas, sendo ela e ele sabedores que o seu legítimo marido Álvaro Chaveiro estava vivo, viveram ambos como casados em Porto Seguro mais de quinze anos, e por ele vir a dar açoites e pancadas e muito má vida a ela confessante, [...] lhe fugiu de casa e se meteu na igreja da vila e começou a declarar e manifestar como o dito Henrique Barbas não era seu marido legítimo [...]." (³)Estes são casos conhecidos em razão das confissões feitas diante do visitador do Santo Ofício. Quantos mais devem ter ocorrido em todo o Brasil? Impossível saber. A distância e a enorme dificuldade de comunicação aliavam-se aos que, talvez supondo que nunca mais poriam os pés no Reino, imaginavam que passariam melhor seus dias na terra se arranjassem novo casamento.
(1) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 32.
(2) Ibid., pp. 81 e 82.
(3) Ibid., pp. 85 e 86.
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