segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

O maior defeito das ferrovias paulistas construídas no Século XIX

Trilhos de uma ferrovia desativada
A construção de ferrovias na Província de São Paulo foi, no século XIX, um passo importantíssimo de modernização nas comunicações e transportes. Sem elas, não seria possível exportar o que quer que fosse em larga escala - café, por exemplo - que devia ser levado das fazendas ao porto de Santos; sem elas, seria muito mais difícil o deslocamento de contingentes populacionais para trabalho na lavoura, mão de obra de imigrantes, que chegava ao Brasil na expectativa,
nem sempre alcançada, de melhora nas condições de vida; sem elas, a propagação de notícias continuaria nos velhos padrões, seguindo a pé, a cavalo ou em mulas, ou ainda em canoas. Grande mudança, portanto.
Contudo, essas ferrovias sofriam de um defeito sério, com graves implicações à sua utilidade: foram construídas sem um plano geral que antecedesse os trabalhos. A construção e administração de um trecho era entregue a uma companhia, muitas vezes de capital estrangeiro, enquanto outros trechos, de outras companhias, eram construídos com padrões diferentes. Era o caso, por exemplo, das bitolas entre os trilhos. Vejamos alguns exemplos:
  • Estrada de Ferro Santos - Jundiaí: 1,6 m (¹);
  • Companhia Paulista, ligando Jundiaí a Campinas: 1,6m (²);
  • Companhia Ituana, trecho Jundiaí a Itu: 0, 96 m (³);
  • Companhia Sorocabana: 1,0 m (⁴).
Outros casos poderiam ser citados, mas estes já são suficientes para demonstrar que havia uma dificuldade prática: trens de uma companhia não podiam circular nos trilhos de outra. Para os usuários, um incômodo problema: faziam-se necessárias as irritantes baldeações, quando, para seguir viagem entre trechos de distintas companhias, era preciso mudar de um trem para outro. 
É fato que, em parte, as bitolas diferentes eram intencionais, já que as empresas buscavam assegurar para si o maior lucro possível, garantindo que não haveria compartilhamento da infraestrutura, mas isso apenas demonstra que, de certo modo, o governo provincial, sem dispor de recursos próprios para estabelecer linhas férreas, via-se refém das companhias interessadas em assumir determinados trechos, cuja lucratividade, no entanto, competia ao governo garantir. A questão, vê-se, era complexa. O resultado, um quebra-cabeça de trilhos diferentes, para desgosto de quem viajava ou contratava o transporte de mercadorias.
Agora, leitores, se quiserem dar um mergulho no que era uma viagem ferroviária nesses tempos, podem ouvir "O Trenzinho do Caipira" (⁵) de Heitor Villa-Lobos. Fechem os olhos e deixem a imaginação voar. Se a experiência auditiva não for suficiente, poderão, também, fazer uma breve viagem em alguma das ferrovias turísticas em que circulam velhas locomotivas a vapor restauradas, com carros igualmente antigos. Vão descobrir, neste caso, que viajar não era exatamente uma experiência confortável.

(1) Cf. PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, p. 40.
(2) Ibid.
(3) Ibid., p. 47.
(4) Ibid. p. 50.
(5) Bachianas Brasileiras nº 2.


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