"Eu cá, não deixo a minha mula paulista. Esses cavalos da moda, que vocês apreciam por serem muito grandes e muito caros, não me servem."
José de Alencar, Sonhos d'ouro
Este blog tem várias postagens dedicadas aos tropeiros que, até bem adiantado o Século XIX, realizavam o transporte de mercadorias no Brasil, guiando tropas de muares. Não há, porém, nenhuma postagem dedicada às mulas...
Sim, a elas que, afinal, faziam o maior esforço, levando as cargas às costas, gastando as ferraduras em estradas e trilhas, ora empoeiradas, ora lamacentas, mas sempre cheias de buracos, nos quais as pobres criaturas de quatro patas não poucas vezes acabavam morrendo. E, o que é pior, morriam abandonadas pelos tropeiros, que seguiam adiante com as mulas sobreviventes.
Sim, a elas que, afinal, faziam o maior esforço, levando as cargas às costas, gastando as ferraduras em estradas e trilhas, ora empoeiradas, ora lamacentas, mas sempre cheias de buracos, nos quais as pobres criaturas de quatro patas não poucas vezes acabavam morrendo. E, o que é pior, morriam abandonadas pelos tropeiros, que seguiam adiante com as mulas sobreviventes.
Pois bem, vamos hoje sanar essa grande injustiça. Falemos das mulas.
Em viagem pelo interior do Brasil no ano de 1867 o britânico Richard Burton, talvez mais célebre como orientalista, teve oportunidade de entabular um relacionamento com as mulas, sem as quais quase ninguém, nesse tempo, viajava pelo País. Como resultado dessa experiência, tinha algo a escrever:
"Não há viajante que não se queixe da teimosia e rabugice das mulas; não há viajante que não alugue mulas, um mal necessário, pois os cavalos não aguentam fazer longas viagens, nesta parte do Brasil. [...]. A mula não toma afeição ao dono, por melhor que ele a trate; o cavaleiro jamais pode confiar nela, e, de todos os animais, é o mais afetado pelo medo. Seus truques são inúmeros, e a mula parece ter consciência de que sua traição pode sempre levar a melhor em uma luta; os velhos, portanto, preferem os cavalos às mulas. É um engano acreditar-se na resistência desses animais: aqui, pelo menos, cheguei à conclusão de que o sol cedo os cansa e que eles exigem muito alimento, muita água e muito descanso." (*)
Perdoem-me a paráfrase, mas não há leitor que não se queixe da teimosia e rabugice... de Burton! Trato já de esclarecer que o trecho omitido na citação acima foi excluído em razão de expor o mais grosseiro racismo que alguém possa imaginar. Convenhamos, meus leitores, que às ideias de Burton só falta mesmo exigir que as mulas sobrevivessem fazendo fotossíntese. Os pobres animais, carregados muitas vezes além de sua capacidade, transitando por horas a fio em caminhos horrorosos, são atacados verbalmente sob o pretexto de exigirem "muito alimento, muita água e muito descanso". Melhor: só faltou mesmo que Burton sugerisse a introdução de camelos nas rotas de tropeiros, tendo em vista uma substancial economia de água.
Como não tenho e nem nunca tive uma mula, acho difícil avaliar o comportamento delas. Seriam mesmo pouco confiáveis, traidoras, até? Que responda algum leitor que já tenha tratado com elas. Mas, à vista da ocupação a que estavam submetidas, não seria estranho se ostentassem um temperamento meio azedo. Digo apenas que, se quisermos fazer justiça às mulas, teremos que admitir, não sem algum gracejo, que por muito tempo elas carregaram o Brasil nos lombos (ou pelo menos, aquilo que se produzia no Brasil) e, malgrado alguns coices e mordidas, fizeram bem o trabalho. Ficam, pois, devidamente homenageadas aqui em História & Outras Histórias.
(*) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 129.
Veja também:
Magnífica homenagem e reposição de justiça. lembrou-me a anedota de um casal que tinha um burro, a quem não alimentavam. Um dia, o burro morre (de fome, provavelmente). E o marido diz para a esposa "agora que era tão económico, lembrou-se de morrer".
ResponderExcluirQue chatice um animal precisar de comer, beber e descansar, hihi.
Gostei muito deste post, Marta.
Beijinhos e uma linda semana
Ruthia d'O Berço do Mundo
A anedota pode ser engraçada, mas era quase essa a realidade dos animais de trabalho, especialmente nos engenhos coloniais. Com as mulas dos tropeiros não era muito diferente. O preço dos animais era baixo, portanto os proprietários não tinham a preocupação de cuidar bem deles.
Excluir