Uma característica comum aos povos indígenas do Brasil, conforme relatos dos mais variados autores que tiveram contato com eles no Período Colonial, era o grande apreço pela música e pela dança. Os missionários jesuítas, longe de trabalharem por banir essas preferências, trataram de usá-las como aliadas na catequese. No Rio de Janeiro, por exemplo, para celebrar a chegada do visitador dos jesuítas, padre Cristóvão de Gouvêa (¹), os meninos indígenas apresentaram, de acordo com relato do padre Fernão Cardim, "a mais aprazível dança":
"Era para ver uma dança de meninos índios, o mais velho seria de oito anos, todos nuzinhos, pintados de certas cores aprazíveis, com seus cascavéis (²) nos pés, e braços, pernas, cinta e cabeças com várias invenções de diademas de penas, colares e braceletes; parece-me que se os viram nesse Reino, que andaram todo o dia atrás deles; foi a mais aprazível dança que destes meninos cá vi [...]." (³)
No Século XIX, em razão do crescimento tanto do interesse como da curiosidade pelo Brasil, viajantes estrangeiros percorreram vários pontos do País, e alguns deles deixaram depoimentos escritos quanto às danças indígenas que tiveram a oportunidade de presenciar. É difícil dizer o quanto as danças observadas eram, ainda, autenticamente indígenas, já que em alguns casos há indícios de que pareciam encomendadas para "agradar aos turistas". Mas vamos a dois registros, apenas para dar uma ideia do que podia ser visto.
Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (1825 - 1829), presenciou uma série de movimentos lúdicos dos bororos, executados a partir da formação de um círculo:
"A princípio não fazem mais do que levantar um pé e depois outro, seguindo uma toada lenta que marcam batendo com as mãos, e acompanhada de um canto rouquenho, baixo e demorado como o compasso. De repente param, dão um grande berro e saltam [...]. Em seguida recomeçam com a monótona dança.
Enquanto os bororos a executavam, dois deles, dentro do círculo, representavam o jogo do tamanduá. Um põe-se de quatro pés com uma criança agarrada às costas: é a fêmea do tamanduá-bandeira e seu filhote. Outro o incita, pondo-lhe a ponta de um pau no nariz, imitando com muita fidelidade os movimentos letárgicos do animal; o que faz de tamanduá levanta devagar a cara e uma das mãos, com os dedos curvos como que querendo agarrar o pau: quando se adianta, o outro recua. [...].
Esses índios imitam também suas lutas com a onça, a caçada da anta, lobo, veado, etc." (⁴)
O Príncipe Adalberto da Prússia, que chegou ao Rio de Janeiro em 1842, observou uma dança dos puris, cujo propósito era, também, imitar os movimentos de vários animais nativos da América:
"A dança consistia num bambolear dum lado para o outro acompanhado dum canto monótono, muito fanhoso. Devia representar simbolicamente, a luta de um anum (eu porém compreendi que era duma mosca) contra um boi; uma outra mais tarde descrevia o caititu, o porco-do-mato, correndo dum lado para o outro na floresta; assim foi, pelo menos, que me explicou o próprio puri esta espécie de improvisações." (⁵)
Ora, meus leitores, os bovinos não são originários do Continente Americano. Se, de fato, a dança presenciada representava um desentendimento entre um anum (ave) e um boi, já havia nela uma construção posterior ao início da colonização.
Muitos autores trataram desse tema das danças indígenas em seus diários de viagem e quem quiser um aprofundamento no assunto não terá dificuldade em encontrar material para estudo. Deve-se levar sempre em conta, porém, que viajantes estrangeiros observavam as danças através do filtro de sua cultura de origem e, sendo numerosos os povos indígenas do Brasil, é preciso cuidado para não incorrer em generalizações que empobreçam a investigação de suas expressões rituais e/ou artísticas.
Dança dos índios puris (⁶) |
(1) Essa Visitação ao Brasil ocorreu entre 1583 e 1590.
(2) Guizos.
(2) Guizos.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 92.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 169.
(5) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 147.
(6) SPIX, Johann B. von et MARTIUS, Carl F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
Veja também:
Tantos séculos atrás e já se faziam "encenações" para agradar aos turistas. Com o tempo, só piorou. Já tudo é fabricado.
ResponderExcluirAbraço
Ruthia d'O Berço do Mundo
Hmmm, tenho um amigo que diz que em certos roteiros turísticos até os animais são treinados para "aparições estratégicas"...
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