quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Águias romanas

A força, ou a sagacidade, agilidade e beleza de certos animais e aves são tão notórios que, no passado, resultaram em identificação de reinos e exércitos com um ou mais deles. Não só no passado: que se vejam, por exemplo, os mascotes de equipes de futebol, e, aqui e ali, serão encontrados o leão, a águia, o galo - o canário?!! - quase um zoológico completo, cuja lista, por muito extensa, deixo a cargo dos leitores.
Se a Macedônia de Filipe e Alexandre Magno tinha um caprino como símbolo, os romanos ostentavam águias nos estandartes que, orgulhosamente, eram conduzidos à frente de suas legiões. Contudo, nem sempre foi assim. No dizer de Plínio, o Velho, esse costume foi introduzido por volta de 104 a.C., durante o segundo consulado do famoso e polêmico Caio Mário (¹):
"As águias foram adotadas como distintivo das legiões romanas durante o segundo consulado de Caio Mário. Outros quatro símbolos foram usados anteriormente, os lobos, os minotauros, os cavalos e os javalis, diante das respectivas colunas; poucos anos mais tarde tornou-se costume que apenas as insígnias das águias fossem conduzidas ao campo de batalha, ficando as outras no acampamento. [...]." (²)
Deixando de lado algumas lendas que se criaram em torno desse fato, é preciso considerar que, entre os romanos, a divindade principal, Júpiter, vinculava-se à águia desde tempos remotos. Essa é uma explicação simples e plausível para a adoção dessa ave nos estandartes romanos, porque, para a mentalidade religiosa que imperava na Antiguidade, levar o símbolo de um deus ao campo de batalha equivalia a ter, ali, sua presença real, e, portanto, também o poder e a força da divindade assim honrada.
Plínio referiu, ainda, que, desde que as águias passaram a figurar nos estandartes, "[...] notou-se que dificilmente havia um acampamento de inverno das legiões em que não houvesse um casal de águias por perto" (²). Credulidade? Coincidência? Talvez a explicação mais lógica esteja ligada às condições vigentes nos locais tradicionalmente escolhidos para que a soldadesca invernasse.

(1) Caio Mário foi cônsul por nada menos que sete vezes.
(2) PLÍNIO, o Velho. Naturalis Historia, Livro X. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Sem roupas novas para o Natal

Argumentos usados no Século XVII para justificar a escravização de indígenas


Padre Antônio Vieira (²)
Quando se tratava de encontrar argumentos que justificassem a escravização de indígenas, parece que a criatividade da elite colonial quase não conhecia limites. Veremos aqui, especificamente, o que acontecia no chamado Estado do Maranhão e Grão-Pará que, durante algum tempo, teve governo separado do Estado do Brasil.
Suponho, contudo, que entre os leitores possa logo surgir a seguinte questão: a quem a elite colonial dirigia argumentos para obter autorização para o "descimento de gentio", eufemismo que, ao fim e ao cabo, significava simplesmente escravização? No Século XVII, monarcas portugueses, talvez até com boas intenções, vinham proibindo a escravização dos nativos da América, admitindo, porém, algumas exceções, e era nisso que consistia o problema. Seria permitida a "guerra justa" contra indígenas que atacassem fazendas e povoações de colonizadores, bem como daqueles que recusassem a catequese. Portanto, no caso específico do Maranhão e do Pará, seria necessário que o governador, que em nome do rei exercia o mando, autorizasse uma expedição de apresamento (¹). Admite-se que, às vezes, os próprios governadores tinham interesse nessas expedições de escravização, não hesitando em alocar recursos públicos para tanto, além de providenciar uma justificativa considerada plausível para que indígenas fossem atacados, tivessem suas aldeias incendiadas e, quanto aos sobreviventes, fossem, acorrentados, trazidos às povoações, para distribuição entre os interessados. 
Mas havia outro obstáculo. Os missionários jesuítas insistiam em ter o controle sobre a catequese de indígenas e, por isso, eram opositores severos à sua escravização. Daí resultava o ódio que parte da população colonial votava aos "padres da Companhia", e que, em não poucos casos, resultou até em violência explícita. Dentre os religiosos que se destacaram na oposição ao cativeiro de ameríndios estava o padre Antônio Vieira (³), a quem os moradores de Belém do Pará, no ano de 1661, dirigiram uma carta, na qual, entre outros, apresentavam os seguintes argumentos para justificar a alegada necessidade de escravizar indígenas:

1. Colonizadores e suas famílias não podiam viver sem escravos
 "Representa a Câmara desta Cidade de Belém, Capitania do Grão-Pará, que serve este presente ano de 1661, ao M. Reverendo Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, Visitador Geral das missões deste Estado, as grandes necessidades que padecem estes povos, causadas da limitação em que vivem, de alguns anos a esta parte, por muita falta que têm de escravos com que se sirvam, sendo impossível o viverem sem eles [sic]." (⁴)
2. Moradores precisavam de escravos para o trabalho de remeiros
"[...] Está este povo  e os moradores dele em estado o mais miserável que se pode considerar, razão por que alguns homens nobres, conquistadores e povoadores, que derramaram o seu sangue e têm gastado a sua vida em serviço de Sua Majestade, e ajudaram a conquistar esta Conquista, não trazem seus filhos e família a esta cidade, por não terem remeiros que lhes comboiem canoas para virem, sendo coisa infalível e certa ser a navegação por mar, a qual se não pode conseguir sem escravos [...]." (⁵)
3. Moradores de Belém não tinham quem realizasse tarefas domésticas
"[...] muitos vivem nesta cidade, que não têm quem lhes vá buscar um feixe de lenha, nem um pote de água; e assim que estão perecendo muitos, por não terem com quem lavrarem suas fazendas, para comprar o que lhes é necessário, tudo procedido da falta de escravos, havendo tantos em muitos sertões [sic!!!] em quantidade [...]." (⁶)
4. A pobreza em que os colonizadores viviam era tanta, que nem mesmo tinham roupas novas para a missa do Natal
"[...] esta festa passada do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, não vieram a esta cidade as famílias de alguns homens nobres, por causa de suas filhas donzelas não terem o que vestir para irem ouvir missa, nem seus pais possuem cabedal para o comprarem, e tudo procedido de não resgatarem escravos [...]." (⁷)
Pobre (e hipócrita) religiosidade dos que se pretendiam tão nobres! Toda gente, ou quase toda ela, se achava, de algum modo, com direitos de fidalguia. Por que iria, então, suar em qualquer trabalho que pusesse em risco a pretendida nobreza? Ao que parece, moradores não reconheciam (ou não queriam reconhecer) que seu modo de vida é que os tornava, em tudo, dependentes do trabalho dos escravizados, coisa que, também, em certo sentido, não deixava de ser um tipo de escravidão, na qual, deliberadamente, haviam se metido. Note-se, porém, que, se a ideia era provocar lágrimas no padre Vieira, em virtude da alegada penúria em que viviam os escravizadores, convencendo-o a apoiar as expedições de captura de indígenas, a carta foi um fracasso absoluto.
 
(1) A situação era diferente em São Paulo, de onde, por muito tempo, partiram expedições de apresamento de indígenas. O governo português estava longe e, na prática, era apenas formalmente reconhecido. Até mesmo camaristas de São Paulo, que alegavam em documentos oficiais sua oposição às levas de bandeirantes escravizadores de ameríndios, acabavam, em não poucos casos, se juntando a eles e indo passar meses no sertão. Os jesuítas faziam ameaças, sugerindo até que fariam vir a Inquisição, pobre argumento quando se considera a dificuldade de acesso a São Paulo que havia pelo escabroso Caminho do Mar. Quando teimaram na defesa dos indígenas, jesuítas foram expulsos de São Paulo e só muito tempo depois readmitidos, sob a condição de que não dariam palpites em assuntos seculares.
(2) Cf. BARROS, André de, S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira. Lisboa: Officina Sylviana, 1746.
(3) Sim, aquele mesmo dos famosos "Sermões" que vocês, leitores, devem ter estudado em suas aulas de Literatura.
(4) Cf. BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão, Livro XIV. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 448.
(5) Ibid., p. 449.
(6) Ibid. 
(7) Ibid.


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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Vendeiros e quitandeiras

Não é de hoje que comerciantes estabelecidos protestam contra a presença de vendedores ambulantes diante de suas lojas, sob a alegação de concorrência desleal, visto que eles, os estabelecidos, em virtude dos impostos que pagam, não podem praticar preços similares aos dos ambulantes. Vou mostrar a vocês, leitores, que essa questão não tem, mesmo, nada de recente.
Quando São Paulo era apenas uma vila pequenina, vereadores tentavam atrair comerciantes que quisessem vender gêneros alimentícios, mas tinham dificuldade nessa tarefa. Afinal, para quem viesse do porto de Santos, existia o desafio, enorme para as condições da época, de atravessar as escarpas da Serra do Mar. Nenhuma surpresa, portanto, que poucos julgassem que a empreitada valia a pena. Mas, com o correr dos anos, a vila cresceu, tornou-se cidade e chegou a capital da Província. Muitos comerciantes se estabeleceram, e não tardou para que vendeiros começassem a pressionar a Câmara da cidade para que impedisse, ou, ao menos, limitasse o trabalho das quitandeiras. 
É melhor explicar: vendeiros eram proprietários de uma "venda", um estabelecimento que comercializava uma grande variedade de mercadorias, incluindo alimentos, artigos de couro e ferragens e, quase sempre, alguma cachaça, além de outras bebidas. Já as quitandeiras eram vendedoras ambulantes, algumas livres, muitas delas escravas, que comercializavam frutas, legumes e verduras, principalmente, embora, em menor número, também doces, pães, aves para abate e (até) cachaça. A aglomeração de algumas dessas quitandeiras diante da entrada ou perto de uma venda ou taberna era óbvia concorrência ao comércio estabelecido. 
Dada a explicação, é simples compreender o motivo de a Ata da Câmara de São Paulo trazer este registro, relativo à vereação de 21 de fevereiro de 1821: "Nesta despachou-se o requerimento dos vendeiros desta cidade e mandou-se passar edital na forma requerida contra as quitandeiras, para não venderem gêneros que dependem de peso e medida, e próprios das tavernas (¹) [...]" (²). Comerciantes estabelecidos eram obrigados a dispor de pesos e medidas aferidos periodicamente por pessoa determinada pela Câmara, ainda que, por parte da população, as queixas contra fraudes não fossem nenhuma raridade.
Exatamente um mês mais tarde, em 21 de março de 1821, registrou-se na Ata: "[...] lavrou-se edital sobre as quitandeiras, a requerimento dos vendeiros desta cidade, para as mesmas não venderem gêneros dependentes de peso e medidas, e sim próprios de quitandas" (²). Admitidas eventuais exceções, os vendeiros eram gente de condição livre, enquanto a maioria das quitandeiras, escravizadas que praticavam o comércio ambulante para lucro dos respectivos senhores. Esse prosaico conflito de interesses abre uma fresta na cortina do tempo para que vejamos alguma coisa das lutas de quem ocupava as ruas de São Paulo em dias já distantes.
Desde então, são passados mais de duzentos anos. A escravidão, é claro, ficou para trás, mas o mundo do trabalho, em meio aos solavancos da economia, ainda oferece, ao observador inteligente, um panorama que grita por soluções justas e duradouras.

(1) Taberna ou taverna, o significado é o mesmo.
(2) Os trechos aqui citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Regulamentos para vendedores de rua em São Paulo no Século XIX

Vendedora de frutas no Rio de Janeiro, Século XIX,
de acordo com Rugendas (¹)
Parte expressiva do comércio que se fazia nas vilas e cidades dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, nas primeiras décadas do Império, era obra de vendedores ambulantes. Disciplinar essa prática não era exatamente uma tarefa fácil: afinal, se um desses comerciantes cometesse alguma infração e, tão rápido quanto possível, desse no pé, como encontrá-lo e chamá-lo às contas, em meio à vastidão do Brasil ainda escassamente povoado? 
Era preciso, além disso, garantir alguma qualidade e higiene no que se comercializava, ainda que essas palavras não tivessem, na prática, o mesmo significado que a elas atribuímos. E, de não pouca importância, era preciso assegurar também que vendedores ambulantes não prejudicassem os comerciantes estabelecidos em pontos fixos, ou seja, em vendas e tabernas. Acrescente-se, ainda, que muitos vendedores ambulantes eram escravos, mandados às ruas pelo respectivo senhor, que esperava receber, a cada dia, os lucros desse comércio, e ter-se-á uma ideia da variedade de questões envolvidas.
Em 8 de março de1820 - há mais de duzentos anos, portanto - a Câmara de São Paulo decidiu lançar um conjunto de posturas, algumas delas destinadas a disciplinar o comércio ambulante dos "vendedores de rua", como então se dizia. Era o caso da 7ª Postura, que enunciava:
"Que todas as pessoas que andarem pelas ruas vendendo mantimentos, gêneros ou fazendas, sejam obrigados a apregoar o que vendem, pena de seiscentos e quarenta réis, sejam forros ou escravos." (²)
Que vantagens poderiam vir dessa obrigação de proclamar o que é que se vendia? Ressalvado o desconforto com o eventual berreiro na rua, quem estivesse dentro de casa poderia ouvir e, tendo interesse, sair para comprar; evitava-se, também, que se vendesse qualquer coisa proibida. Esta 7ª Postura resultava, simultaneamente, em um favor à população e em um instrumento de controle. A imposição de multa aos desobedientes era garantia, ao menos sob o aspecto formal, de que a ordem era séria e devia ser cumprida. 
Já a 11ª Postura dizia:
"Que todos os que andarem vendendo pelas ruas desta cidade os mantimentos de farinha, feijão e milho sejam obrigados a trazer duas medidas, uma de quarta e outra de meia quarta, e a venderem ao povo [..] as quantidades [de] que precisar, com a pena de seis mil réis [...]." (²)
Disso resultavam pelo menos duas vantagens aos compradores: o uso de medidas (cuja honestidade era passível de fiscalização), garantia que se entregasse a quantidade efetivamente solicitada; por outro lado, os vendedores ficavam impedidos de impor uma quantidade mínima para aquisição.
Tudo isso parece muito justo e razoável. Nesses tempos já longínquos, contudo, nem sempre leis e regulamentos eram tão prontamente cumpridos quanto se esperava, fosse por falta de fiscalização, que não era tarefa fácil, ou mesmo por conivência de quem deveria exercer o controle. No ano seguinte, 1821, o conflito entre vendeiros e quitandeiras seria assunto na Câmara de São Paulo, e virá a ser também neste blog. Aguardem a próxima postagem. 

(1) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827.
(2) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A educação das meninas espartanas

A educação das meninas espartanas era assunto de Estado, tanto quanto a dos meninos. Não se esperava, como regra geral, que aprendessem o manejo das armas para a ida aos campos de batalha; contudo, deviam realizar exercícios físicos que fizessem delas mulheres saudáveis, capazes de gerar filhos adequados às exigências militares de sua cidade-Estado.
Se podemos crer no que Plutarco escreveu em Vitae parallelae, Licurgo, o legislador de Esparta, determinou que as meninas "ao contrário do que sucedia em outros lugares, não permanecessem desocupadas em casa, mas deviam exercitar o corpo em corrida, luta, lançamento do dardo e no tiro com arco. Desse modo, seriam tão fortes quanto os rapazes, e seriam aptas a resistir às dificuldades que sobreviessem. [...] Licurgo pensava que as jovens habituadas a esses exercícios [...] seriam posteriormente mais fortes e capazes para resistir às dores do parto" (¹). Portanto, sem mais rodeios, a educação das meninas tinha por objetivo garantir a contínua produção de novos soldados para Esparta.
Não menos curioso é que Licurgo, rompendo com a tradição grega que ordenava às mulheres que cobrissem a cabeça quando em público, teria determinado que as jovens e mulheres espartanas não deveriam fazê-lo. Voltemos a Plutarco: "[Licurgo] fez com que as jovens espartanas, à semelhança dos rapazes, se habituassem a estar com a cabeça descoberta nos lugares públicos [...], com toda a honestidade e respeito, diante da presença dos anciãos e cidadãos de renome. [...] O costume de terem [as meninas] a cabeça descoberta não era fruto de leviandade, mas, [...] com essa prática, estavam sempre limpas e eram tão fortes quanto os rapazes" (²).
Essa educação tinha impacto considerável no comportamento das mulheres espartanas quando adultas. Ainda conforme Plutarco: "Conta-se que Górgona, mulher de Leônidas, ao ter em certa ocasião a companhia de uma estrangeira, foi por ela questionada quanto aos costumes que vigoravam em Esparta, dizendo que, ao que parecia, as mulheres da Lacônia tinham autoridade sobre os maridos. A isso a espartana teria respondido: Não se espante. É que somente nós trazemos homens ao mundo" (³). Como negar, então, que meninas e mulheres de Esparta tinham uma condição muito diferente daquela que podia ser encontrada no restante da Grécia Antiga?

(1) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História e Outras Histórias.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Garimpeiro

Descalço, um homem caminha entre as pedras, até que chega ao lugar preferido, mais ou menos um quarto de légua abaixo da cachoeira. Nesse ponto o rio não é nem muito largo e nem muito fundo, mas costuma render, às vezes, até um bom dourado. Aí, lança o anzol e deixa o pensamento voar.
Já se haviam passado uns dez anos desde que ouvira falar que tinham achado ouro no sertão. Gente que, ano após ano, aumentava os calos manejando a enxada, agora só pensava em enriquecer depressa. Contavam-se histórias maravilhosas de pepitas enormes, encontradas assim, quase na superfície da terra, sem muito trabalho. Com isso a vila ia ficando despovoada, ao menos de homens. Ouro, ouro, era só sobre ouro que se tagarelava, e quase todos os que tinham forças suficientes se juntavam às levas de sonhadores no caminho das minas. Depois de vender os poucos pertences, ainda que já não havia quase interessados em negociar, ele havia comprado algumas ferramentas e, tendo amarrado bem os sacos de couro com farinha e feijão, colocara tudo às costas de um pobre burrico e lá se fora. 
A maior parte dos aventureiros deixava para trás a família, prometendo enriquecer e voltar logo, embora tanto os que iam como os que ficavam se despedissem disfarçando a consciência de que talvez nunca mais se vissem. Ele não sabia dizer como lhe dera na cabeça levar também a mulher e os filhos que, resignados, haviam suportado a marcha rumo ao desconhecido, os dias de calor, as noites gélidas, as feridas nos pés, a comida que ia se acabando, as picadas dos mosquitos, as febres. Com a picareta que imaginara procurar o ouro, havia cavado o último berço para o seu menorzinho, cujo sono fora entregue à guarda de uma cruz improvisada que, bem sabia, logo seria coberta pelo mato.
Com as roupas em trapos, haviam, afinal, chegado à terra dos milagres auríferos. Mas, crua decepção... Ouro, mesmo, era para quem tinha muitos escravos e explorava uma data rentável, não para ele, que era livre, mas só podia contar com os próprios braços para procurar a riqueza nos riachos que não interessavam aos poderosos. É verdade que, esporadicamente, algum faiscador achava uma quantidade de ouro suficiente para melhorar de vida, fazendo renascer a esperança (quem sabe, a credulidade), entre o povo miúdo. Era assim também com ele. 
A mulher, no entanto, já não tinha dessas fantasias. Esperava, no casebre que haviam construído, algum peixe para o jantar. Uma fisgada mais forte na linha o faz voltar à realidade. Será um jaú? Vai puxando com cuidado. A piapara que se contorce é jogada no cesto. Um leve sorriso lhe faz cair do canto da boca o cigarrinho de palha. 


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quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Vida dura para os cães em São Paulo no Século XIX

Esqueçam as ONGs que, atualmente, protegem animais: no Século XVI, quando São Paulo era uma povoação pequenina, com poucos habitantes e separada do litoral pelo escabroso Caminho do Mar, matar cães incômodos era uma prática habitual. Não havia muita piedade para eles, embora a Câmara local insistisse com os proprietários para que, evitando o abate, tratassem de prender os animais. O tempo voa, todos sabem, mas no Século XIX, conforme já veremos, a situação dos caninos de rua ainda não havia se tornado melhor. Querem prova? 
Em março de 1820 uma postura da Câmara de São Paulo dizia:
"Que nenhuma pessoa conserve dentro desta cidade cães de qualidade alguma às suas portas, ou que andem pelas ruas, exceto tendo-os ou trazendo-os com açaimos ou focinheiras de couro, de forma que não possam fazer mal; sob pena de serem mortos, e seu dono pagar seis mil réis, a metade para o Concelho (¹) e a outra para quem os matar." (²)
Ninguém gosta de encontrar um cão ameaçador à solta na rua. Era justo, portanto, que se exigisse dos proprietários que mantivessem os cães sob o devido controle, mas é significativo que houvesse até um prêmio para quem desse um fim à existência de animais de comportamento inconveniente.  O sacrifício de animais voltaria a ser assunto em uma sessão da Câmara em 30 de setembro de 1820, quando o escrivão registrou:
"Na mesma representou que o juiz almotacel lhe pedira pólvora e chumbo para a matança dos cães inúteis, na conformidade das posturas desta Câmara, a quem foi recomendado pela mesma para sua execução; e porque além disso tem havido muitos cães danados (³); portanto determinava esta Câmara que o procurador assistisse com a pólvora e chumbo preciso todas as vezes que pelo dito almotacel lhe for pedido."
Não havia nesse tempo e lugar uma instituição com autoridade para proteger e cuidar de animais abandonados. Eliminar cães indesejados se tornava, portanto, quase uma operação de caça ou prática de tiro ao alvo. E certo que, sob esse aspecto, houve, em nossos dias, uma mudança para melhor. 

(1) Unidade municipal.
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) Com hidrofobia. Lembrem-se, leitores, de que nesse tempo não havia vacina antirrábica.


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quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Por que espartanos não usavam tochas para iluminar o caminho à noite

Devido à quase completa escuridão que caracterizava a maior parte das cidades antigas desde que o sol se punha, quem precisava sair de casa à noite devia levar uma tocha para iluminar o caminho, tarefa que, com frequência, era delegada a um escravo. Um pouco de luz não só evitava ferir os pés com alguma pedra ou tropeçar em um buraco, como desestimulava algum encontro desagradável. Esses problemas, como se sabe, não são recentes.
Espartanos, porém, não usavam tochas à noite. Para entender o caso é preciso saber que, pelas leis atribuídas a Licurgo, ninguém, em Esparta, tinha permissão para cear em casa. Quem o fazia era visto como um perturbador da ordem social imposta a todos os cidadãos, que determinava refeições públicas bastante frugais. O quotidiano de Esparta era uma contínua preparação para a guerra. Tendo já anoitecido, encerrava-se a refeição coletiva e cada um podia voltar ao lugar em que residia. Mas, para isso, também havia uma restrição que se dizia ter vindo de Licurgo, segundo explicou Plutarco (¹): "[...] não era permitido que no caminho para casa [depois da ceia] e nem em outras ocasiões à noite, [espartanos] iluminassem as ruas com tochas, para que, a despeito de qualquer perigo que encontrassem pela frente, se habituassem a andar sem medo no escuro (²)." 
Ataques de surpresa, à noite, eram comuns em guerras da Antiguidade. Soldados que tivessem medo da escuridão tornar-se-iam, portanto, um problema para qualquer exército. Não seria razoável para Esparta, militarista como era, que se perdesse a oportunidade de exercitar continuamente os sentidos daqueles de quem se esperava que, nos campos de batalha, superassem a todos os demais guerreiros.

(1) Nascido em Queroneia em c. 45 d.C.
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Quem descobriu o rio Amazonas?

No rio Amazonas

Não são poucos os inventos e descobertas que têm pater-mater-nidade duvidosa ou, ao menos, questionada. A quem cabe a primazia no invento do avião? E do cálculo? E do rádio? Quem é capaz de afirmar, fora de qualquer dúvida, quem foram os primeiros europeus a pisar na América do Norte? E no Brasil? Por que, afinal, a América tem esse nome? Se a questão é o descobridor europeu, o nome não deveria ser outro? 
Vejamos o caso do rio Amazonas. Oficialmente, Vicente Yañez Pinzón e os homens que o acompanhavam foram, em 1500, os primeiros europeus que toparam com ele, ainda que seja óbvio que, quanto à descoberta do rio, povos indígenas já o conheciam há muito tempo. Curiosamente, houve até quem acreditasse que, na Antiguidade, marinheiros fenícios que se perderam no Mediterrâneo e foram arrastados em suas embarcações para muito além das Colunas de Hércules poderiam ter acabado por chegar à foz do Amazonas. Isso não passa, no entanto, de especulação, sem qualquer solidez documental (¹).
Contudo, mesmo estabelecida a prioridade de Pinzón quanto ao Amazonas, houve outros homens que tentaram se arvorar em descobridores do grande rio. Foi o que afirmou Bernardo Pereira de Berredo e Castro, escrevendo em meados do Século XVIII, sobre gente que vivera no centênio precedente:
"Deste mesmo tempo por diante (²) se intitulou Bento Maciel primeiro Descobridor e Conquistador dos rios Amazonas e Curupá, mas com uma forte oposição do capitão Luís Aranha de Vasconcelos, que usava também dos mesmos títulos [...], que do famoso das Amazonas nenhum se podia chamar descobridor com justificados fundamentos, salvo pela parte das novas Conquistas Portuguesas, que pelas castelhanas o tinham sido sem disputa Vicente Yañez Pinzón e Aires Pinzón no ano de 1500 [...]." (³)
Cabe apenas a ressalva de que, quanto a Pinzón, seguindo costume da época, deu ao rio um nome longo, Santa Maria do Mar Doce, que, por praticidade, ficou conhecido simplesmente por Mar Doce, até que, em decorrência do relato feito por Francisco de Orellana (⁴), começou a ser chamado de rio das Amazonas. O nome pegou e é esse que usamos até hoje. 

(1) No estágio atual dos conhecimentos. 
(2) 1623.
(3) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão, Livro VI. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 220.
(4) Relativo à expedição entre 1541 e 1542, em que atiçava a curiosidade da monarquia espanhola, sugerindo que poderia ter visto mulheres guerreiras às margens do rio. 


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quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Doces do Brasil, dos tempos coloniais aos dias do Império

Bom dia, leitores, o texto de hoje é dedicado às formigas humanas.
Já ouviram a expressão: "doces como os de antigamente"? Ao que parece, a ideia está ligada à noção de fartura das antigas cozinhas de fazenda, em que, sobre a chama de um fogão a lenha, doces eram preparados em tachos enormes: cocadas, paçocas, doce de leite, de batata-doce, de frutas variadas...
Contudo, uma cena dessas somente foi possível com a expansão da indústria açucareira. Antes disso, já havia açúcar, mas produzido em pequenas quantidades e, por isso mesmo, caríssimo. Assim, ele era visto como uma especiaria, algo raro e dispendioso, ao alcance apenas dos mais endinheirados, e usado com parcimônia, como era o caso do emprego farmacêutico, para tornar xaropes e outros terrores supostamente medicinais um pouco mais suportáveis ao paladar, em especial no caso das crianças. E, voltando ainda no tempo, antes do açúcar, era o mel que se usava para adoçar o que quer que fosse. As limitações ficam, portanto, evidentes, ainda que certas geleias pudessem ser feitas sem adição de mais adoçantes que os existentes nas próprias frutas. 

De onde vinha açúcar para o Reino antes que a indústria açucareira fosse estabelecida no Brasil


Antes que a produção açucareira se tornasse um empreendimento importante no Brasil, já era possível obter açúcar em Portugal, vindo de outras partes. Foi o que disse frei José Mariano da Conceição Veloso em O Fazendeiro do Brasil, citando que Vasco da Gama encontrara comércio expressivo desse produto em Calicute, assim como Cabral, em 1500, ao estar em Cambaia. Havia ainda comércio de açúcar em outras áreas:
"Duarte Barbosa diz que pelos anos de 1515 [...] nas costas do Malabar se fazia um rico comércio de açúcar em pó (¹), porque o não sabiam fazer em pães. O mesmo refere que em Bengala se fazia açúcar branco e bom, mas que, não sabendo reduzi-lo em pães, se metia em sacos de pano cobertos de couro [...]; conclui, finalmente, dizendo, que também se faziam conservas de limão, de gengibre e de outros frutos [sic] do país, que eram excelentes confeitos com açúcar." (²)

Doces e bolos no Brasil Colonial


Produzir açúcar no Brasil mostrou-se muito conveniente, por dar à Coroa um lucro interessante, além do controle sobre as áreas produtoras. Em consequência da disponibilidade do produto, desenvolveu-se aos poucos uma rica culinária. Com base em testemunhos de autores da época, falemos dos doces no Brasil Colonial, quando o açúcar, ainda que grosseiro, não costumava faltar, e era até usado como moeda, na ausência de meio circulante convencional.
Na Informação da Província do Brasil, atribuída a Anchieta, com data de 1585, encontra-se uma observação relativa a doces em conserva, que eram petiscos destinados aos doentes (sim!):
"Para os enfermos não faltam regalos que se fazem de açúcar, que há muito, e assim fazem laranjada, cidrada, aboboradas e talos de alface [sic...] e outras conservas. Em Piratininga se faz muita carne de marmelo [...] e açúcar rosado alexandrino." (³)
Ora, meus leitores, talvez as crianças da época tivessem nisso um pretexto nada desprezível para simular alguma doença!... Notaram que Anchieta citou as marmeladas de São Paulo? Elas foram famosas nos dias coloniais, e a produção era tão grande, que não somente atendia à pequena São Paulo de Piratininga e adjacências, como era exportada até mesmo para regiões distantes do Brasil.
Gabriel Soares, um contemporâneo de Anchieta, referiu em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 o uso do milho, do qual os colonizadores faziam bolos: "Há outra casta de milho", disse ele, "que sempre é mole, do qual fazem os portugueses muito bom pão e bolos com ovos e açúcar" (⁴). Agradeceríamos se houvesse detalhado a receita que andava em uso, mas Gabriel Soares foi senhor de engenho, não cozinheiro. No entanto, também informou que em seu tempo se faziam ótimos doces de caju, fruta nativa: "Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave, e para se comerem logo cozidos no açúcar, cobertos de canela, não têm preço" (⁵). Castanhas de caju também estavam em uso, substituindo as amêndoas, para colonizadores já saudosos do Reino: "Destas castanhas fazem as mulheres todas as conservas doces que costumam fazer com as amêndoas, o que tem graça na suavidade do sabor" (⁶).
Nem mesmo a mandioca, tão conhecida e cultivada entre povos indígenas, deixou de entrar na pauta de doces, conforme explicou o padre Simão de Vasconcelos, jesuíta que viveu no Século XVII: "Também se fazem dela [mandioca], bolos doces com manteiga e açúcar" (⁷). Outro que mereceria aplausos se houvesse detalhado a receita, não é?

Bolos, sonhos e tachos de cocada no tempo do Império


Já nos dias do Império, alguns dos mais famosos "doces de fazenda" ou "doces da roça" eram conhecidos e, até certo ponto, difundidos, respeitadas as variações regionais. Lacerda Werneck, falando do cará, explicou que seu uso era corrente, e não só para se fazer pão:
"Esta batata [sic] serve para se misturar com o cozido. Também se fazem dela ótimos bolos e sonhos, bem como, juntando-se em cada três libras de farinha de trigo, duas de sua massa, dá em resultado um excelente pão, que se torna balofo e de sabor agradável." (⁸)
Mas é da literatura que vêm algumas das referências mais saborosas a doces. Veremos apenas duas, para concluir. Machado de Assis, primeiro, com uma pérfida alusão em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. [...]"
Não tenham dúvidas, leitores, Machado estava simplesmente retratando o quotidiano da escravidão, sem disfarces açucarados (no mau sentido). Quanto a José de Alencar, em O tronco do Ipê, também se referiu a um esplendoroso tacho de cocada, igualmente no contexto do trabalho escravo:
"- Já tomou ponto, nhanhã! Agora, se quer mais apertado!...
Estas palavras partiam da gorducha Florência, a doceira famosa da casa. Incumbida de um tacho de cocada, que fervia na cozinha, ela assomara à porta da copa, com a colher de pau em uma mão e o pires cheio d'água na outra."
Do trabalho de mãos livres e escravas, nasceram algumas glórias da culinária do Brasil, doces e, ao mesmo tempo amargas, pelas circunstâncias de exploração da força de trabalho. Não nos esqueçamos disso.

(1) Frei Mariano da Conceição Veloso talvez ficasse surpreso se pudesse saber que hoje o açúcar, como regra, é comercializado em pó.
(2) VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil  Tomo I, Parte II. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1799, p. 10.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 428.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 173.
(5) Ibid., p. 178.
(6) Ibid.
(7) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 49.
(8) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 107 e 108.


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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Uma anta dentro de casa

Não foram muitos os cientistas e artistas (pintores e/ou desenhistas) que viajaram pela América do Sul nos Séculos XVI, XVII e XVIII, um fato que se explica pela dificuldade e risco que corriam os suficientemente atrevidos que ousavam entrar em terras ainda desconhecidas, para investigar e registrar fauna e flora muito diferentes das que conheciam no respectivo lugar de origem. As compensações, reconheçamos, eram poucas, diante da possibilidade de alguma doença e morte longe de casa, sem falar nos confrontos eventuais com os ameríndios que, cientes já das intenções pouco honestas de muitos colonizadores, nem sempre podiam diferenciar, à primeira vista, um pesquisador de um caçador de escravos (¹).
No Século XIX, contudo, o número de viajantes estrangeiros dispostos a percorrer a América do Sul aumentou bastante. No caso do Brasil, especificamente, deve-se notar que o governo joanino incentivou o trabalho, tanto dos que pesquisavam a natureza, como daqueles que registravam-na com lápis, tinta, e outros materiais. As obras que deixaram são uma fonte preciosa de informações, até porque, ocupados com animais e plantas, muitas vezes tratavam, também, com palavras e imagens, da vida social no Brasil da época. Não obstante, eram alvo da curiosidade popular, causando certa estranheza por sua mania de colecionar borboletas e outros insetos, reunir folhas e flores, além, é claro, de dissecar e empalhar uma variedade de animais. Quase todos eram vistos escrevendo muito, e surpreendiam, por esse hábito, a população local, da qual a maioria não tinha muita intimidade com o alfabeto. 

Azara e a tentativa de domesticar as antas


Em fins do Século XVIII um enviado da Espanha chegou à América do Sul para liderar a Comissão de Limites que, juntamente com representantes de Portugal, deveria fazer a demarcação de fronteiras. Ora, esse espanhol, mesmo não sendo por formação um cientista, deixou registros significativos, em razão das viagens e pesquisas que realizou entre 1789 e 1801, principalmente na Argentina e no Paraguai. Seu nome? Félix de Azara. Como parte da fauna por ele estudada nesses países é compartilhada com o Brasil, seus trabalhos também são significativos para este lado da fronteira. Deve-se notar, contudo, que foi pensando em leitores europeus que Azara escreveu, tanto para oferecer informação confiável como para corrigir erros grosseiros sobre a fauna e a flora do Novo Mundo que corriam até nos círculos intelectuais de seu tempo, embora seus próprios escritos não estivessem livres de equívocos. Tanto quanto lhe era possível, procurava observar as coisas por si mesmo, e então escrever, evitando fiar-se apenas de relatos, e nisso consiste uma de suas maiores virtudes.
Falando do filhote da anta (Tapirus terrestris), animal que no Brasil todo mundo conhece, afirmou: "Capturado jovem, se domestica desde o primeiro dia: anda por toda a casa quase sem sair, até depois de adulto [...], e quando se deseja retirá-lo de um lugar contra sua vontade, é quase preciso arrastá-lo." (²) 
Teria Félix de Azara hospedado alguma anta ou filhote de anta? Iria até esse ponto sua curiosidade científica? Nos anos que permaneceu na América do Sul enfrentou, em suas muitas viagens, dificuldades ocasionais em encontrar moradia ou hospedagem adequada, e não é impossível que, observando como viviam os ameríndios, tenha, algumas vezes, concordado em compartilhar a residência com alguns dos animais que desejava estudar. 

Anta adulta

(1) Isso quando uma coisa e outra não se encontravam na mesma pessoa.
(2) AZARA, Félix de. Apuntamientos Para la Historia Natural de los Quadrúpedos del Paraguay y Rio de La Plata, Vol. 1. Madrid: Imprenta de la Viuda de Ibarra, 1849, p. 1.  O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Espartanos teriam provocado a "desaparição" de muitos hilotas

Narrado por Tucídides no Livro IV de sua História da Guerra do Peloponeso, há um episódio que bem pode ser rotulado como verdadeira síntese da perfídia: espartanos, que viviam com medo de uma revolta dos hilotas, a quem dominavam brutalmente, mas de quem dependiam para todo o trabalho na lavoura, base de sua economia, resolveram convocar, dentre eles, todos os indivíduos que se julgavam dignos de respeito porque, indo à guerra com seus senhores esparciatas, haviam se notabilizado pela coragem e pelos bons serviços prestados a Esparta. Subentendia-se que, em virtude desses méritos, os hilotas que comparecessem receberiam, como prêmio, a liberdade. Sim, os que vieram, uns dois mil homens, ao todo, depois de coroados, foram em procissão aos templos da cidade, exatamente como homens livres fariam. Mas não... A ideia era simplesmente testar quem tinha consciência do próprio valor, calculando-se que gente assim seria perfeita para a liderança de uma rebelião. Os supostos libertos desapareceram e nunca mais foram vistos. 
Como julgar esta história? Intriga, apenas? Ou horrorosa verdade?
De um lado, foi contada por Tucídides, que, mesmo buscando ser imparcial, era ateniense. De outro, não é difícil admitir que tenha mesmo acontecido, se apenas considerarmos que, sendo capazes de lançar os próprios filhos recém-nascidos em um abismo, caso tivessem algum defeito, não seria demais para os espartanos matar, às ocultas, os servos hilotas, se entendessem que, sendo bons demais como soldados, poderiam liderar um motim de sua gente para que, depois de aniquilados os esparciatas opressores, pudessem, afinal, desfrutar completa liberdade. 
Não há provas de que isso tenha mesmo ocorrido. Não há, igualmente, comprovação de que não tenha acontecido. É inegável, todavia, que combina muito bem com o que se sabe sobre Esparta e o modo como era governada. Decidam vocês, meus leitores, se, nesse ponto, desejam crer ou não em Tucídides.


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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Corujas

Corujas-buraqueiras em vigilância alternada

Enquanto escrevo, ali no gramado um par de corujas-buraqueiras (Athene cunicularia) vigia a entrada do ninho. Por que será que em algumas culturas as corujas são consideradas mensageiras de acontecimentos infelizes? Talvez a explicação esteja no grito estridente que emitem. À noite, quando tudo o mais está em silêncio, não é mesmo música das mais agradáveis.
Corujinha, artesanato
karajá
É verdade que entre os antigos gregos o mocho era símbolo de sabedoria, em virtude de sua associação com a deusa Palas Atena. Já entre indígenas do Brasil, o conceito sobre as estrigiformes era (ou é) um tanto variável. Vejam, leitores, o que se encontra no Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré, datado de 1885, sem menção a uma etnia indígena específica, mas com certeza fazendo referência a quem vivia no Norte do Brasil:
"A coruja passa por agoureira; grasnando junto à taba (casa), é sinal de que vai morrer pessoa da família. Se, porém, passam patos-do-mato por cima da casa é aviso de próxima visita de pessoas de consideração" (*). Que dizer, no entanto, da bela corujinha aí ao lado, um brinquedo simpático, em artesanato karajá contemporâneo?
Quanto a vocês que leem este texto, que ideia têm sobre as corujas? Eu, particularmente, até gosto delas, e, por isso, resolvi homenageá-las aqui com algumas fotos, por conta do "& Outras Histórias" deste blog. Divirtam-se!

Corujas-buraqueiras em árvore

Dona coruja e seus filhotes

(*) _____. Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré. Rio de Janeiro: Soares e Niemeyer, 1885, p. 128.


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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Proibição de gelosias em São Paulo

Gelosias eram aquelas treliças de madeira, geralmente espessas e escuras, que recobriam as janelas de moradias no Brasil Colonial. É certo que nem todas as casas tinham essas feias molduras, mas elas foram muito comuns. Indo direto ao ponto, sua finalidade era, supostamente, impedir que quem passava pela rua pudesse bisbilhotar o que havia no interior da residência. Na prática, serviam para ocultar as mulheres da vista de quem não pertencesse ao círculo mais próximo de convivência. Eram, portanto, um instrumento para cercear a liberdade das mulheres, já tão limitada nesses tempos.
Como tudo muda, os anos se encarregaram de trazer a consciência de que não era boa coisa manter as gelosias. Além de feias, davam a impressão de atraso, que nenhum lugar com pretensões a modernidade teria orgulho em ostentar. Cumpria, pois, proibir sua existência, porque, como sempre acontece, toda mudança progressista tem garantida a oposição dos conservadores, em nome, neste caso (mas não só neste), da preservação da moralidade pública e dos bons costumes. 
Dada a explicação, resta dizer que, em São Paulo, no ano de 1820, uma postura da Câmara proibiu que as casas que daí em diante se construíssem na cidade ou fossem reedificadas, tivessem janelas com gelosias. Dizia assim: "Não se consentir que aqueles que edificarem de novo, ou reedificarem casas, ponham nelas gelosias nas janelas, por ficarem as casas mais escuras, e faltas de ar puro, desformosear as mesmas casas, e o prospecto [...]". Desobedientes seriam multados em seis mil réis e teriam a construção demolida.  
Verdade seja dita: as gelosias eram feias, mesmo, e esperava-se que, com essa postura, desaparecessem gradualmente. São Paulo queria tomar ares de cidade respeitável, deixando no passado tudo o que cheirava (culturalmente) a mofo e arrastava uma impressão de atraso. Havia, contudo, muito mais a ser feito, se a intenção era ir além das simples aparências.


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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Imperialismo ateniense

Quem deveria ser a divindade protetora da cidade de Atenas? A resposta vem de uma lenda da Antiguidade. Poseidon e Palas Atena brigavam pelo posto - brigas não eram incomuns no Olimpo. Sucede que a contenda tomou proporções um tanto perigosas e, para restaurar a paz, Zeus e sua corte foram chamados à ação. Poseidon fundava sua pretensão no fato de ser Atenas uma cidade voltada ao comércio marítimo, estando, pois, em seus domínios. Para provar seu afeto àquela pólis, com um simples toque de seu famoso tridente fez brotar da terra um cavalo belíssimo, ideal para a guerra. Palas Atena, belicosa como era, ao menos desta vez decidiu apresentar aos deuses uma dádiva da paz que ofereceria à cidade, fazendo brotar no solo da Ática uma esplêndida oliveira, já carregada de azeitonas maduras. Nem será preciso dizer que Palas, aplaudida pelos deuses, foi considerada vencedora e, em consequência, deu seu nome à cidade. Em troca, foi nela venerada como divindade principal
Dentre as cidades da Grécia Antiga, Atenas é considerada a mais culta e desenvolvida. Sabe-se, contudo, que nela a escravidão era uma dura realidade (só assim é que os cidadãos podiam dispor de tempo livre para o envolvimento na política e para o estudo das ciências e das artes); sabe-se, também, que as mulheres eram, em geral, tratadas como seres inferiores; além disso, como cidade-Estado, mesmo no auge da democracia, admitia como cidadãos apenas uma quantidade relativamente pequena de indivíduos. Atenas foi tremendamente imperialista e, para assegurar sua vantajosa posição como exportadora de azeite, esteve perto de produzir uma verdadeira catástrofe ambiental, ao substituir a diversificada vegetação da Ática quase exclusivamente por oliveiras.
É fato que Atenas saiu das guerras contra os persas (¹) como uma potência naval forjada no calor da luta pela sobrevivência das cidades gregas. Para derrotar o "bárbaro (²)", sua atuação foi muito mais decisiva que a de Esparta. Resolvida a tirar a maior vantagem possível de um momento que lhe era favorável, Atenas aceitou liderar um conjunto de cidades que, naquelas circunstâncias, viam nela uma protetora. Foi assim que se tornou senhora de um império, acumulando riquezas provenientes do comércio marítimo e dos tributos que as cidades aliadas pagavam.
Contudo, essa situação incomodava Esparta, que também tinha aliados. Terminada a guerra contra os persas, espartanos tentaram convencer atenienses a não reconstruírem as muralhas de sua cidade, alegando que, se os persas voltassem, podiam conquistar a Ática e fazer ali sua base de operações. Será que os emissários de Esparta realmente imaginavam que a população de Atenas aceitaria uma tolice como essa? Não só os muros de Atenas foram reerguidos, também o porto de Pireu, de que Atenas se servia, foi devidamente fortificado. Atenas, desse modo, cresceu em importância política e econômica, causando medo à Liga do Peloponeso.
A partir dessas considerações, não é difícil entender que Esparta tratou de incentivar e apoiar revoltas entre os aliados de Atenas, que, passado o perigo persa, estavam já cansados de contribuir para sua orgulhosa "protetora". O curioso é que, ao contrário do que acontece em nosso tempo, em que o imperialismo às vezes se faz passar por humanitário, filantrópico, até caritativo, no Século V Atenas não fazia nenhum esforço para ocultar seu caráter dominador. Achava, até, que tinha todo o direito a isso. Assumia o fato abertamente, segundo palavras de delegados atenienses que compareceram a uma assembleia em Esparta. Sua cidade-Estado, amante do conhecimento, apaixonada por novidades e sempre receptiva a mudanças se isto lhe trouxesse alguma vantagem, não estava disposta a ceder diante das reclamações de cidades aliadas (³). Não seria o caso de Esparta estar por trás de tudo isso, tentando atraí-las para seu lado? 
De uma parte, a militarista e conservadora Esparta, com seus aliados do Peloponeso; do outro, a imperialista, rica e culta Atenas, também com seus aliados. Será que essa política de alianças lembra alguma coisa mais recente, leitores? A guerra era inevitável, por ser, inclusive, desejada (⁴). No decurso dos acontecimentos, Atenas foi atingida por uma peste que, mais que as armas inimigas, contribuiu para esgotá-la. Como se sabe, Esparta venceu. A Grécia, porém, jamais foi a mesma. Os longos anos de guerra haviam-na enfraquecido sobremaneira. Em um discurso proferido por Cláudio, imperador romano, cujas palavras foram relatadas por Tácito, há uma ideia que dá o que pensar. "Qual foi a causa da decadência dos lacedemônios e dos atenienses", perguntou ele, "que foram poderosos nas armas, a não ser que tratavam como estrangeiros a todos os povos que dominavam? (⁵)". Começamos com uma pergunta, leitores, e terminamos com outra. Não é raro, em se tratando de História, que as questões levantadas sejam mais numerosas que as respostas.

(1) 498 - 448 a.C.
(2) Era assim que os gregos se referiam ao monarca persa.
(3) Cf. TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, § 73 a § 78.
(4) A Guerra do Peloponeso ocorreu de 431 a 404 a.C.
(5) TÁCITO, Annales, Livro XI. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A descoberta de jazidas auríferas levou à interiorização do povoamento colonial

Na primeira metade do Século XVII, frei Vicente do Salvador afirmou que colonizadores do Brasil estavam limitados a "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos" (¹). Estava certo e estava errado. Certo, se considerarmos que, em virtude de condições de clima e solo, além da proximidade de portos para embarque de mercadorias, a agricultura canavieira e a produção de açúcar se desenvolveram prioritariamente perto do litoral. Mas errado, quando consideramos, por exemplo, a criação de gado no interior nordestino e o povoamento do Planalto Paulista, com a formação de pequenos núcleos urbanos, de onde, para bem e para mal, saíam levas de exploradores do território, mais tarde denominados bandeirantes
Contudo, um novo e poderoso fator de interiorização do povoamento ocorreu a partir de fins do Século XVII. Refiro-me à exploração de jazidas auríferas. Vejam leitores, o que disse o barão de Eschwege (²) sobre essa questão:
"A abundância de ouro, que foi sendo descoberto, provocou um verdadeiro deslocamento da população litorânea para o interior.
Já não eram só os paulistas; também os habitantes do Rio de Janeiro - que, com inenarráveis sacrifícios, haviam aberto uma estrada através de matas cerradas - e os da Bahia, que haviam encontrado passagem ao longo dos sertões incultos, demandavam as regiões do ouro.
A população cresceu rapidamente. [...]"
(³)

Vila Rica, um dos grandes centros mineradores no Brasil Colonial (⁴)

Não pode restar dúvida de que, temporariamente, houve um decréscimo na população de algumas áreas, devido aos contingentes que se deslocavam para as minas. Mas, por outro lado, deve-se considerar que, de fora do Brasil, muita gente afluiu à busca do ouro, e não eram apenas portugueses, apesar das restrições impostas à entrada de estrangeiros. Escravizados jovens e saudáveis, de preferência com conhecimentos de mineração, eram também levados aos núcleos urbanos que se formavam com incrível rapidez, sempre que uma região aurífera promissora era descoberta. Desses elementos nasceu uma nova sociedade, urbana e interiorizada, que, por essas características, desenvolveu cultura própria, diferente de tudo o que, até então, existira no Brasil.

(1) A data provável de conclusão da História do Brasil escrita por frei Vicente do Salvador é 1627.
(2) Esteve no Brasil durante o governo joanino, que o convidara a percorrer as minas, para procurar um modo de torná-las novamente produtivas.
(3) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 44.
(4) Cf. DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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