Se vocês, leitores, quiserem algum instrumento de medida - uma régua para uso escolar ou para escritório, digamos - irão à loja mais próxima que venda o dito objeto e lá comprarão um, não é verdade? Supõe-se, a partir daí, que terão confiança nessa régua, crendo que, quando necessário, fornecerá a medida com exatidão. Vale o mesmo para medidas usadas na cozinha, ou talvez em uma oficina. As balanças e outros instrumentos empregados no comércio são regularmente aferidos, como se sabe, pelo órgão público competente.
Imaginem, agora, a situação de quem usava instrumentos de medida no Brasil Colonial. Como ter certeza de que ofereciam o resultado correto? Como saber que, afinal, medidas de capacidade, usadas nas vendas por pequenos comerciantes, não eram, em última análise, um instrumento de fraude?
A resposta é esta: medidas consideradas padrão ficavam em poder da Câmara Municipal de cada localidade, e era ela que, periodicamente, devia providenciar a aferição dos pesos e medidas empregados no comércio, indicando, para isso, uma pessoa qualificada. A Câmara de São Paulo, por exemplo, decidiu, em julho de 1584:
"Aos dois dias do mês de julho, era de mil e quinhentos e oitenta e quatro anos, foi mandado [...] apregoar as posturas neste livro contidas [...] e que quem tivesse medidas ou varas de medir ou pesos os trouxesse para aferir, com pena de dois tostões [...]."
A multa estipulada era pequenina em termos absolutos, mas quase não havia dinheiro amoedado circulando na vila. Curioso, mesmo, era o modo como se avisava a população quanto à obrigatoriedade de apresentar pesos e medidas para aferição, conforme se vê em outra ata, datada de 14 de setembro de 1585:
"[...] o almotacel Jerônimo Maciel mandou deitar pregão pelo porteiro [...] e assim mandou que todas as pessoas que tivessem pesos e medidas as trouxessem perante ele [...] tudo para ser visto e examinado se estavam certas e boas [sic], e o dito porteiro deitou o dito pregão em altas vozes, que ouviu a gente do povo a que o quis ouvir, e que as tais medidas, pesos e meios alqueires (¹) trouxessem dentro em três dias perante ele para o dito efeito, sob pena de duzentos réis [...]." (²)
A reunião dos oficiais da Câmara acontecia habitualmente aos sábados. Havendo alguma coisa a ser comunicada ao povo, o porteiro, concluída a missa no domingo imediato, punha-se do lado de fora da igreja, a fim de ler a proclamação, porque nesse dia estavam presentes não só aqueles que residiam dentro dos muros da vila, como quem morava em fazendas nos arredores. Pode-se bem imaginar quanto essa prática contribuía para preservar os sentimentos religiosos entre a população...
(1) Um alqueire, como medida de volume, equivalia, nesse tempo, a pouco mais de treze litros.
(2) As atas aqui citadas foram transcritas na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável.
Veja também:
Interessante, sem dúvida.
ResponderExcluirDeixo agora uma pequena provocação: o que a Marta descreve, respeitando a documentação da época, é um mero processo de intenções, tendente a apaziguar espíritos e a fazê-los acreditar na lei. Posto isto, e atendendo à natureza humana, quantos almoçatéis não eram "untados" para aprovar o reprovável?
Tenha um excelente final de semana, Marta :)
Se levarmos em consideração o modo como vivia a gente da época, não é nada improvável que suborno fizesse parte do quotidiano. Que o dissesse Gregório de Matos, poeta colonial que satirizou em versos as "boas ações" de seus contemporâneos.
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