quinta-feira, 25 de março de 2021

Cruzados em viagem

A afinação é trabalhosa, mas as mãos que empunham a espada são também ágeis na pequena harpa. A noite é fria, uma fogueira aquece o grupo que se forma ao redor. Conservando certa distância, outra fogueira, e outra, e outras. Muitas mais. Perto das tendas, o burburinho dos que alimentam os cavalos, curam feridos, preparam comida. Fisionomias cansadas estão por toda parte. Em meio à fumaça, a multidão composta por soldados e toda a gente que os acompanha parece uma onda que se move lentamente sobre as irregularidades do terreno.
O guerreiro trovador, dedilhando a harpa, começa uma cantiga que recorda uma terra distante, uma praia inóspita, um amor perdido. Aquecendo-se junto à fogueira, os companheiros ouvem em silêncio. Mesmo acostumados à rudeza dos campos de batalha, não perderam a sensibilidade e se encantam com as memórias que a música, tão suave, consegue evocar. À sua volta, persiste o movimento dos que, pragmáticos, se ocupam do indispensável à sobrevivência. 
A cantiga termina, ouve-se o crepitar da madeira que as chamas vão consumindo. Mais um instante, e o harpista começa a tocar uma canção alegre, que todos conhecem e que, como mágica, põe fim às reflexões melancólicas. Com alguma timidez, a princípio, mas com ruído crescente, batem palmas e movem os pés. Interiormente, até são tentados a dançar. A Terra Santa, para esses cruzados, é ainda uma miragem distante. Como em uma peregrinação, aquilo que tanto buscam talvez esteja, não na chegada, mas no caminho que percorrem.


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4 comentários:

  1. Gostei muito da recreação da cena - a Marta deveria investir mais neste formato - mas tenho alguma dificuldade em aceitar a harpa como instrumento. Não ficaria melhor um alaúde?

    Uma boa semana :)

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    1. Olá, AC, boa tarde! Quando escrevia o texto, cheguei a pensar no alaúde, mas considerei que seria um anacronismo, porque alaúdes "de verdade" não estavam em uso corrente na Europa no tempo das primeiras Cruzadas. Quanto às harpas, considerando que havia delas uma porção de tamanhos e estilos, já seria uma possibilidade real (é só dar uma olhada em pinturas medievais que retratam anjos tocando harpa), principalmente para cruzados que que vinham das ilhas britânicas. É certo que não estava pensando nas modernas harpas de concerto...

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  2. Pronto, sabia que não dava ponto sem nó. :)

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