quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A reforma agrária de Licurgo

Se Plutarco estiver correto, Licurgo foi responsável por uma reforma agrária em Esparta. Percebendo que havia grande desigualdade entre seus concidadãos, o legislador teria decidido que as terras cultiváveis deviam ser redistribuídas, para assegurar que a ninguém faltasse o sustento.
Mesmo enfrentando oposição - quem esperaria outra coisa? - Licurgo decidiu que cada um teria uma extensão de terra que permitisse a própria manutenção e da família, nem mais e nem menos. Indo adiante, redistribuiu, também, o espaço urbano. Não foi pequena a tarefa.
Tempos depois, de acordo com Plutarco, por ocasião da ceifa do trigo, Licurgo teria dito: "Toda a Lacônia está linda, assemelhando-se à terra de muitos irmãos, repartida entre eles em partes iguais." (*)
Ainda que a liderança atribuída a Licurgo não possa ser definitivamente classificada como fato real ou como lenda, seria esse um exemplo acabado de justiça social? Nem tanto, meus leitores. Apenas os esparciatas foram incluídos no projeto de reforma agrária. Periecos, mesmo livres, mas sem direitos políticos, ficaram fora do jogo da igualdade, e, quanto aos hilotas, nem é preciso dizer: oprimidos e explorados, eram vigiados continuamente para que trabalhassem nas terras, sempre sob a suspeita de que poderiam estar tramando uma revolta.

(*) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 28 de setembro de 2021

Urbanização turbulenta nas regiões mineradoras coloniais

Onde antes nada havia além da paisagem natural, surgia, em pouquíssimo tempo, um aglomerado de moradias precárias, em ruas tortuosas e sem qualquer planejamento - assim começava, como regra, uma povoação, em qualquer lugar em que se encontrava ouro de fácil extração no Brasil Colonial. 
Quanto tempo era necessário para que, desse processo, brotasse uma cidade? Segundo o Barão de Eschwege (¹), a mineração transformou, "no curto espaço de dez a doze anos, os lugares mais inóspitos em animadas cidades" (²). A despeito disso, colocar alguma organização em tamanha desordem seria processo trabalhoso e muito mais demorado. Ainda conforme Eschwege, "[...] muitos anos, contudo, foram precisos para que tamanha aglomeração humana se sujeitasse a certa disciplina" (³).
Sem qualquer pretensão a esgotar o assunto, veremos aqui, meus leitores, alguns aspectos que faziam dessas povoações de mineradores lugares turbulentos, inquietos, até muito perigosos:
1. A rapidez do processo de urbanização significava, ao menos nos primeiros anos, muita precariedade nas condições de vida. Pode-se facilmente imaginar como eram as casas construídas por quem desejava, desesperadamente, enriquecer tão rápido quanto possível, e sem dar, portanto, muita atenção, ao menos no início, a condições mínimas de higiene e conforto.

2. A heterogeneidade da população nas minas foi outro fator de complicação. Havia os bandeirantes descobridores e sua gente, havia os que vinham de outras regiões do Brasil tão logo ouviam falar em ouro, mas havia, também, os que vinham de além-mar, crendo que a riqueza fácil compensaria todos os sacrifícios. Embora proibidos de entrar no País, estrangeiros de várias nacionalidades acabavam tendo acesso às regiões mineradoras, e mesmo frades que abandonavam a rotina da vida religiosa podiam ser encontrados entre os que procuravam ouro. Ao lado dos livres, havia, como se sabe, uma multidão de escravos, obrigados a trabalhar em condições insalubres, mas sonhando com um belo achado que poderia resultar em liberdade.

3. A população heterogênea tinha interesses conflitantes. Havia os que queriam ouro, havia os que sonhavam com a liberdade, havia, também, os que não se ocupavam na mineração, mas praticavam um comércio extorsivo de artigos indispensáveis, como alimentos, vestuário e ferramentas, gente que, muitas vezes, acabava tendo maior êxito em enriquecer que os próprios mineradores. Havia conflitos entre os descobridores das minas e os que apareciam nelas quando ouviam falar de sua existência. O conjunto de incidentes conhecido como a "guerra dos emboabas" ilustra muito bem essa rivalidade.

4. O custo de vida nas minas era muito elevado, não só pela franca exploração exercida por comerciantes, como pela dificuldade em fazer chegar até elas os alimentos de que a população carecia. Os caminhos, quando existentes, eram precários, e o transporte de carga, efetuado por tropas de animais, sendo moroso em extremo, resultava em produtos que alcançavam as povoações já em mau estado. Pouca gente pensaria em gastar tempo plantando o que quer que fosse, quando a obsessão era achar ouro. Não deve ser surpresa, portanto, que, esporadicamente, algumas povoações chegassem aos extremos da fome.
Sabará - MG, de acordo com Rugendas (⁴)

Esse cenário trazia, por consequência, uma grande dificuldade para as autoridades coloniais na imposição de algum controle social e em exigir obediência à legislação portuguesa relativa aos direitos reais que deviam ser arrecadados sem demora. Aos poucos, a urbanização e a legalidade foram tomando forma. Agrupada em irmandades religiosas, a população se empenhava na construção de templos grandiosos, que ostentassem a riqueza que se arrancava da terra, e cujas celebrações eram motivo de orgulho e competição. Mais difícil foi impor a cobrança dos reais quintos e a obrigatoriedade da entrega de todo o ouro encontrado nas casas de fundição. A repressão foi a ferramenta mais útil neste caso, conforme se verifica, por exemplo, no caso da chamada "revolta de Filipe dos Santos" em Vila Rica, no ano de 1720. O esquartejamento, fosse antes ou depois da morte, devia ser suficiente para intimidar até os mais rebeldes.

(1) 1777 - 1855.
(2) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 51.
(3) Ibid.
(4) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Cidadãos romanos

O direito à cidadania era algo que os primeiros romanos reservavam ciumentamente para si, porque, além de ser considerado uma grande honra, incluía, também, uma série de direitos. Sêneca, o filósofo estoico, argumentou: "Causar dano à pátria é crime; portanto, causar dano a um cidadão, que é parte da pátria, também é crime. [...] O que seria se as mãos pretendessem causar dano aos pés, ou os olhos às mãos?" (¹)
Contudo, o título de cidadão romano, sob a pressão de questões práticas, foi, com o passar do tempo, estendido a um número crescente de pessoas. Durante a Segunda Guerra Púnica, por exemplo, escravos foram incorporados ao exército romano. Nas palavras de Floro, esses "libertos se tornaram romanos" (²). Um pouco mais tarde, em 89 a.C., os povos aliados da Itália obtiveram a cidadania romana e, ainda que no governo de Augusto as concessões tenham sido poucas, com Cláudio, em 47 d.C., o título de cidadão tornou-se disponível a qualquer estrangeiro que estivesse disposto a pagar por ele. 
Imperador Caracala (⁴)
Finalmente, sob o governo de Caracala (³), a condição de cidadão romano foi estendida a todos os homens livres que viviam dentro dos limites do Império. O motivo para tamanha generosidade não tardou a aparecer: os cidadãos estavam obrigados ao pagamento de certos impostos, cuja finalidade era manter o exército que, nesse tempo, coroava e destronava imperadores à sua vontade, às vezes de forma explícita, em outras ocasiões discretamente, mas, em quase todos os casos, mediante pagamento e com não pequena violência.

(1) SÊNECA. De Ira. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) FLORO, Aneu. Rerum Romanarum, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) 211 - 217 d.C.
(4) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 290. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
 

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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Penas de metal e canetas-tinteiro

Até meados da década de 50 do Século XX, quase todas as crianças, em suas tarefas escolares, deviam usar um lápis ou uma caneta como esta, composta por um bastão de madeira e uma pena de metal:


O processo de escrita era simples: a pena era mergulhada na tinta disponível em um
tinteiro e, a seguir, usada para traçar o que se quisesse sobre o papel. O grande inconveniente é que a tinta durava pouco, sendo preciso, portanto, que a pena fosse mergulhada no tinteiro muitas vezes, até que aquilo que se escrevia estivesse concluído. Percebe-se, desse modo, que a escrita era um tanto morosa. As canetas esferográficas, muito mais práticas e comercializadas desde meados do Século XX, eram, por pura implicância, ainda rejeitadas na maioria dos estabelecimentos de ensino. Só posso concluir que havia quem preferisse a lentidão, as páginas de caderno borradas, os tinteiros entornados sobre as carteiras ou rolando, já quebrados, sobre o piso das salas de aula. Algum tempo se passou e, como sempre, a praticidade venceu o conservadorismo.
No entanto, muito antes das esferográficas, já havia uma alternativa para quem escrevia habitualmente. Falo das canetas-tinteiro, cujo invento, resultante de um longo processo de aperfeiçoamento, levou à produção desses novos objetos para escrita em escala comercial a partir das últimas décadas do Século XIX. Nelas, um pequeno tubo deveria ser abastecido com tinta, permitindo escrita contínua por tempo razoável. Porém, tinham, a princípio, um defeito muito sério: a tinta podia vazar, danificando o papel em que se escrevia, ou, pior ainda, sujando a roupa de quem levasse uma caneta dessas no bolso.
Este anúncio (*), publicado em julho de 1916, oferecia uma caneta-tinteiro que prometia, aliada à simplicidade, a virtude de não apresentar vazamentos:


Com tantas alternativas simples e econômicas para escrita, canetas-tinteiro tornaram-se, hoje, objetos de luxo - algumas são verdadeiras obras de arte - usadas por quem gosta delas ou, ainda, por calígrafos. Já que agora fazemos uso contínuo de meios digitais para escrever, não é impossível que, dentro de algum tempo, pouca gente venha a saber para que é que servem as canetas, sejam elas de que tipo forem.

(*) O ECHO, Ano XV, nº 1, julho de 1916.


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quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Esparta e Atenas

Antigamente era comum, como recurso didático nas escolas, que certas questões fossem propostas para debate durante as aulas. Como muitos alunos se destinavam à carreira das leis, a capacidade argumentativa era incentivada. Hoje proponho a vocês, leitores, uma questão desse tipo: Atenas ou Esparta, qual das duas cidades gregas da Antiguidade foi maior?
É claro que não há nenhuma resposta óbvia. Tucídides, que era ateniense e viveu no Século V a.C., logo no começo de sua monumental História da Guerra do Peloponeso chegou a conjecturar que, se em algum tempo no futuro, Esparta e Atenas fossem abandonadas, e delas não restasse nada além de ruínas, um observador que a elas chegasse teria uma visão provavelmente distorcida quanto à sua importância em pleno apogeu (¹).
Esparta, construída à moda das antigas povoações gregas contemporâneas à Guerra de Troia (segundo Tucídides!), com templos e edifícios públicos pouco suntuosos, pareceria, talvez, uma cidade inexpressiva. No entanto, ela foi extremamente poderosa, ocupou grande parte do território do Peloponeso e, se considerado o controle que exercia sobre os vizinhos, pode-se afirmar, sem temor de erro, que dominou toda a região. 
Quanto a Atenas, um visitante do futuro (repito, são ideias de Tucídides) imaginaria ter sido muito maior e mais poderosa do que de fato foi, tal a imponência de seus edifícios. Acham que Tucídides se enganou, leitores? 
Caio Salústio Crispo, em uma passagem de Catilinae coniuratio, afirmou: "As façanhas dos atenienses foram grandes, segundo avalio, verdadeiramente magníficas, mas não ao ponto que geralmente se supõe; como tiveram escritores geniais, os atenienses têm suas ações celebradas em todo o mundo (²)." Os espartanos, por seu turno, "ao contrário dos atenienses, não dedicavam toda a afeição ao cultivo das letras, somente estudavam o suficiente para que não fossem considerados ignorantes e para que tivessem capacidade de administrar os assuntos do governo civil e da guerra" (³), disse Plutarco, ao traçar a biografia de Licurgo
A que conclusão chegam vocês, leitores? À parte dos grandes edifícios, dos monumentos, das vitórias nos campos de batalha, não lhes parece que a cultura do espírito já é, por si mesma, um indício de grandeza? Quem ousaria desprezar a influência exercida, até nossos dias, pelos pensadores atenienses ou que em Atenas desenvolveram uma linha filosófica? Escrever, e escrever bem,  falar com clareza e capacidade de persuasão, não são coisas insignificantes (⁴), principalmente dentro de uma democracia. Lamento por quem pensa o contrário.

(1) Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro I, § 10. 
(2) SALÚSTIO. Catilinae coniuratio. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Para bem e para mal.


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terça-feira, 14 de setembro de 2021

Condenados a açoites no pelourinho

O pelourinho era símbolo da autoridade municipal e, por isso, motivo de orgulho para os habitantes de uma localidade (¹). Mas era, também, um lugar de má fama, porque era nele que, acorrentados ou amarrados, os condenados à pena de açoites tinham o corpo lacerado pelo chicote manejado por aquele a quem se encarregara a execução da sentença.
Nos tempos coloniais a pena de açoites somente era imposta a pessoas de baixo estrato social, "peões", como se dizia. Ao fidalgos essa penalidade era vedada. De acordo com as Ordenações do Reino, nem sempre a pena de açoites devia ser aplicada em público, mas, no Brasil, a regra era que os infelizes sentenciados, muitas vezes por delitos que hoje consideraríamos insignificantes (²), fossem expostos ao desprezo e zombaria dos que se reuniam para contemplar o "espetáculo", como este trecho de As Minas de Prata, de José de Alencar, descreve tão bem:
"No meio do largo atopetado de gente erguia-se o pelourinho de cantaria, cercado por quadrilheiros. Estavam lá, jungidos ao poste, dois condenados, presos de uma e outra banda, dando-se as costas, com o rosto voltado para o povo. Eram homem e mulher; dois cúmplices e sócios, o Brás e a Eufrásia. A gente ria e chacoteava, cuspindo a zombaria à face dos réprobos, que ali estavam mesmo para vergonha e infâmia do crime."
Por ser As Minas de Prata uma obra de ficção histórica, não haveria nela algum exagero? Recordando, de passagem, que, após a Independência, somente aos escravos se impunha a pena de açoites, vejam, leitores, o que disse Arsène Isabelle, viajante francês que esteve no Rio Grande do Sul em 1834:
"Todos os dias, das sete às oito horas da manhã, podeis assistir um drama sangrento, em Porto Alegre. Se fordes até a praia, ao lado do arsenal, defronte de uma igreja, diante do instrumento de suplício de um divino legislador, vereis uma coluna levantada sobre um pedestal de pedra, e junto a ela... uma massa informe [...]. Um negro condenado a duzentas, quinhentas, mil ou seis mil chicotadas! Passai adiante, retirai-vos dessa cena de desolação: o infortunado não é mais do que um conjunto de membros mutilados, que se reconhecem dificilmente sob os pedaços sangrentos de sua pele flagelada." (³) 

Escravo recebendo castigo público, de acordo com Rugendas (⁴)

Essa cena horripilante, que Arsène Isabelle presenciou em Porto Alegre, poderia ter também visto em muitas outras localidades, Brasil afora. Exagerou? Talvez, porque o Código Criminal do Império do Brasil determinava, no Título II, Capítulo I, Artigo 60, que, cabendo ao juiz determinar o número de açoites para um escravo condenado, não poderia este exceder a cinquenta por dia. Daí resulta que, se a pena total fosse superior a esse número, o escravo seria açoitado em tantos dias quantos fossem necessários para que a sentença chegasse a ser integralmente cumprida. Não se exclui, porém, a possibilidade de que, eventualmente, se fizesse pouco caso da letra da lei e, em consequência, escravos fossem açoitados muito além daquilo que se permitia no Código Criminal. Somente em 13 de outubro de 1886, quando à escravidão restavam poucos dias, é que a Câmara do Império votou  e aprovou o fim da pena de açoites para escravos (⁵).

(1) A querela entre Olinda e Recife, no contexto da chamada Guerra dos Mascates, teve episódio curioso relacionado à construção de um pelourinho em Recife.
(2) Se é que ainda seriam considerados delitos.
(3) ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006,. pp. 247 e 248.
(4) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) As duzentas e cinquenta chibatadas aplicadas em 1910 no marinheiro Marcelino Rodrigues Meneses, um dos motivos da chamada Revolta da Chibata, provam que, mesmo com o advento da República, a prática dos castigos corporais não desapareceu completamente. 


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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Soldados de Hernán Cortés que se tornaram monges

Os homens que seguiram Hernán Cortés na guerra que culminou com a conquista do Império Asteca eram movidos, na mais esmagadora maioria, pela ambição. Queriam ficar ricos, muito ricos, no menor tempo possível. Alguns - poucos - conseguiram. Muitos morreram por doenças, ferimentos recebidos em combate ou foram aprisionados por indígenas e sacrificados. Dentre os sobreviventes, houve alguns que tomaram um rumo quase inusitado, diante das pretensões anteriores: professaram em alguma ordem religiosa, tornando-se monges, portanto.
Seriam estes movidos pela consciência da destruição que haviam causado e, com a vida religiosa, pretenderiam, quem sabe, redimir os atos cruéis do passado? Ou foram movidos apenas pela influência de seu tempo, que concedia um valor extremo à vida religiosa, ainda que poucos fossem, de fato, estritos praticantes da regra da respectiva ordem?
Um única resposta poderia fazer injustiça a tais homens. Essas hipóteses devem ser consideradas, sem exclusão de outras, ainda. Mas quem foram eles, afinal?
De acordo com Bernal Díaz del Castillo, que também acompanhou Cortés, e que não se tornou monge, mas escreveu a Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España, estavam entre os que optaram pela vida monástica estes soldados:
"[...] outro bom soldado que se chamava Villasinda, natural de Portillo, que se tornou frade franciscano [...]."
"[...] outro soldado que tinha por sobrenome Lencero, [...], que foi bom soldado e se tornou frade mercedário; [...] Alonso Durán, que era um tanto velho e não enxergava bem, que ajudava como sacristão e se tonou frade mercedário [...]."
"[...] um soldado que se chamava Síndos de Portillo, natural de Portillo, e teve índios muito bons (¹) e esteve rico, e deixou seus índios e vendeu seus bens, repartiu-os entre os pobres e se tornou frade, e foi de santa vida; e outro bom soldado que se chamava Quintero, natural de Moguel, e teve bons índios e esteve rico, e o deu por Deus e se tornou frade franciscano e foi bom religioso; e outro soldado que se chamava Alonso de Aguilar [...], foi pessoa rica e teve bom repartimiento de índios, vendeu tudo e entregou a Deus, e se tornou frade dominicano e foi muito bom religioso [...]."
É preciso reconhecer que nem todos perseveraram na vida monástica:
"[...] outro soldado chamado Fulano Burguillos, teve bons índios e esteve rico, e deixou e se tornou frade franciscano, e este Burguillos depois saiu da Ordem; e outro bom soldado que se chamava Escalante, tinha boa aparência e era bom cavaleiro, tornou-se frade franciscano, depois saiu do monastério e voltou a triunfar, e cerca de um mês mais tarde tornou a tomar o hábito e foi bom religioso [...]."
Por outro lado, havia também quem fosse a extremos:
"[...] outro soldado que se chamava Gaspar Díaz, natural de Castilla la Vieja, e foi rico, assim por seus índios como por seus negócios, e tudo entregou a Deus e se foi aos cumes de Guaxocingo, em lugar muito isolado, fez uma ermida e nela se pôs como ermitão e foi de tão boa vida e se entregava a jejuns e disciplinas (²), que esteve muito fraco e debilitado e diziam que dormia no chão sobre palhas; disso soube o bispo dom frei Juan de Zumarraga e lhe mandou que não fizesse vida tão áspera, e teve tão boa fama de ermitão Gaspar Díaz, que se puseram em sua companhia outros ermitães, e todos fizeram boas vidas, e depois de quatro anos que ali estava Deus foi servido levá-lo à sua santa glória [...] (³)."

(1) Tinha uma encomienda, podendo, assim, explorar a força de trabalho indígena.
(2) Autoflagelação.
(3) Todos os trechos citados da Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 7 de setembro de 2021

Arte plumária indígena

Característica presente em muitos povos indígenas do Continente Americano, a arte plumária por eles desenvolvida era (e em alguns casos, ainda é) notável. José de Alencar, em romances classificados como "indianistas", colocou em relevo o uso de penas, não só como expressão artística, mas como fator de distinção tribal. Vejamos, portanto, alguns exemplos.
Em Guarani, o herói Peri usa penas de ema na cabeça:
"Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas de ema matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham roçar com as pontas negras o seu pescoço flexível."
Por outro lado, no mesmo Guarani, um guerreiro aimoré, que se opõe a Peri, leva um colar de penas de tucano:
"Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e oleosa, e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes do tucano; no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavam como dois fogos vulcânicos no seio das trevas."
Já em Ubirajara, novamente a arte plumária é descrita como fator de identificação de dois grupos indígenas, os tocantins e os araguaias:
"Do outro lado da campina assoma um guerreiro.
Tem na cabeça o canitar (¹) das plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.
É um guerreiro tocantim. De longe avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias."
Como sabem, leitores, essas obras de Alencar pertencem ao Século XIX, escritas no intento de dar ao Brasil uma literatura que tivesse personagens verdadeiramente nacionais. No entanto, nessa época muitos povos indígenas já haviam desaparecido ou perdido elementos culturais significativos, em consequência da colonização. Sabe-se, porém, que cada povo tinha preferência por determinadas penas, que geralmente eram escolhidas entre as aves existentes na localidade em que vivia, e isso não se restringe aos indígenas do Brasil. Astecas, por exemplo, foram grandes apreciadores das penas do quetzal (verdes) e do colibri (de coloração azul-turquesa). E, se quisermos voltar ao testemunho de alguém que viveu no Brasil no Século XVI, temos as palavras de Gabriel Soares, senhor de engenho na Bahia e autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, em que, ao falar dos tupinambás, observou: "[...] fazem carapuças e capas de penas de pássaros, e outras obras de pena do seu uso, e sabem dar tinta de vermelho e amarelo às penas brancas; e também contrafazem as penas dos papagaios com sangue de rãs, arrancando-lhes as verdes, e fazem-lhes nascer outras amarelas [...]." (²)
Creio, todavia, que, em se tratando de arte plumária, a melhor exemplificação só pode vir de trabalhos reais. Portanto, leitores, vejam as fotos (³) e tirem suas conclusões quanto à maestria dos povos indígenas nessas obras.




(1) Palavra indígena de mesmo significado que cocar.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 319 e 320.
(3) Todos os objetos pertencem ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF), que vocês não devem deixar de visitar, quando puderem.


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quinta-feira, 2 de setembro de 2021

As galinhas e os loureiros da dinastia júlio-claudiana

É coisa da Roma Antiga e dos romanos, com suas crenças em prodígios e presságios. Augusto, o primeiro imperador, tinha uma propriedade agrícola de que muito gostava, e foi lá que tudo aconteceu. Lívia, que se casara com Augusto, observava uma águia voejando logo acima, quando a poderosa ave deixou cair uma galinha branca, que talvez pretendesse usar no almoço e que, por infelicidade, veio abaixo. Até aqui, nada surpreendente. Agora vem o melhor: a dita galinha não só estava viva, como ainda trazia no bico um verde ramo de loureiro (*). Esqueçam a inverossimilhança, leitores. 
Posteriormente, a galinácea sobrevivente pôs ovos e teve uma multidão de descendentes. Quanto ao ramo de loureiro, Lívia decidiu plantá-lo, e veio a ser uma árvore robusta, de onde os Césares retiravam os ramos que deviam compor as coroas de louros que ostentavam nos triunfos. Cada imperador da dinastia júlio-claudiana, ao ascender ao poder, plantava lá mais um loureiro e - prodígio imperial não se discute - logo se verificou que, pela época da morte de cada um, a respectiva árvore secava. 
Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio... Era o último ano da turbulenta vida de Nero, mas ele ainda não sabia disso. No entanto, lá na fazenda, subitamente, todos os loureiros secaram e todas as galinhas morreram. Quem quiser um relato formal desses notáveis acontecimentos deve ir ao Livro VII de De vita Caesarum, de Suetônio. Para os crédulos em presságios, algo notável (e terrível) estava para ocorrer. Era o fim de uma dinastia.
Há quem suponha que Suetônio, ao incluir essa história em sua obra, estava caçoando das crenças vigentes em Roma. Acho mais provável que, imerso na cultura de seus dias, julgasse perfeitamente razoável a crença tão arraigada em Roma de que certos eventos prediziam o futuro, embora, algumas vezes, só posteriormente é que as pessoas se dessem conta disso, numa espécie de profecia invertida. Era o modo romano de ver e explicar o mundo, tentando encontrar alguma lógica em meio a um cenário que, de outro modo, pareceria caótico.

(*) Laurus nobilis.


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