terça-feira, 31 de março de 2020

Sarampito, passa pra dentro!

Foi há cento e poucos anos. O lugar, uma povoação bem perto de Campinas - SP. 
Aparecera por lá a varíola, despertando temor geral. Não precisaria ser assim, porque a vacinação antivariólica era conhecida e praticada no Brasil, ao que parece, desde fins do Século XVIII. No entanto, fosse por teimosia, medo ou ignorância, parte da população teimava na recusa a ser imunizada.
Retomando o fio da história, pipocavam casos de varíola. Recursos médicos, se existentes, eram escassos. Para impedir o contágio, um integrante da reduzida força policial da localidade era destacado a dar plantão diante de cada casa em que se sabia haver um doente, com trabalho dobrado ou triplicado na hipótese de que houvesse vizinhança também enferma, uma situação nada incomum. Portanto, ficava o doente, toda a família e quem mais com ele residisse, sob proibição de pôr os pés na rua, até que, de um jeito ou de outro, a varíola cessasse.
Ora, meus leitores, nesse tempo as famílias costumavam ter muitas crianças, que, se estavam saudáveis, logo se aborreciam com o isolamento. Acontecia, às vezes, que um pimpolho mais ousado se aventurava a pôr o nariz para fora da porta, ao que o vigilante, de imediato, berrava:
- Sarampito, passa pra dentro!
Faz tempo que ouvi pessoa muito idosa relatar esse fato, do qual dizia ter sido, na infância, testemunha ocular. Mas, mutatis mutandis, o assunto parece tão atual... 
Era outra época, a população era muito menor. Ninguém, imagino, pensaria hoje em estacionar guardas à porta de residências para impedir a entrada e saída daqueles que estão sabidamente enfermos. Seria impossível. Espera-se que, para bons cidadãos, a melhor vigilância venha da prudência, da sensatez, do senso pessoal de responsabilidade - do civismo, afinal. O que mais será preciso dizer? 


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quinta-feira, 26 de março de 2020

Roubou duas galinhas e quase foi enforcado

Como Hernán Cortés mantinha a disciplina entre seus comandados


No imaginário popular, ladrão de galinhas é o estrato mais baixo entre os gatunos de toda espécie. Pior, ainda, foi a situação de um soldado que, como parte do bando liderado por Hernán Cortés, invadiu o Império Asteca. Antes, porém, que se efetuasse a chamada "conquista" do México, o soldado Mora quase perdeu o fôlego, e de uma vez por todas.
Tem a palavra Bernal Díaz del Castillo, outro aventureiro comandado por Cortés: 
"[...] partimos para Cempoal (¹) por outro caminho, [...] e estávamos descansando porque fazia sol forte, e vínhamos muito cansados, com as armas às costas, e um soldado que se chamava Fulano de Mora, natural de Ciudad Rodrigo, tomou duas galinhas de uma casa de índios daquele povoado [...]." (²)
Ora, leitores, os invasores europeus são frequentemente descritos como aves de rapina, para quem o roubo, a pilhagem, eram ferramentas úteis, quer para sobrevivência, quer para dominação. Mas havia quem prezasse algum sentimento cavalheiresco de honra, e, infelizmente para o ladrão, Hernán Cortés, ainda que ávido por ouro, era um desses. Portanto, não estava disposto a tolerar indisciplina entre seus soldados, mesmo porque o roubo das galinhas fora feito contra um povoado com o qual eles, espanhóis, haviam entrado em amizade. Para que seus sonhos dourados (³) de conquista vingassem, era indispensável ganhar e manter o apoio de nativos desafetos dos astecas.
Para azar do ladrãozinho, Cortés viu o que fizera. Disse Bernal Díaz:
"{...] Cortés ficou furioso com o que, diante dele, fez aquele soldado em um povoado de paz em tomar as galinhas, que logo mandou colocar uma corda em seu pescoço e teria sido enforcado, se Pedro de Alvarado, que estava junto de Cortés, não lhe cortasse a corda com a espada, e meio morto ficou o pobre soldado." (⁴)
Cortés era homem de vontade férrea. Para bem ou para mal, tratava de manter a disciplina entre os comandados, não fosse o caso de algum deles estragar seus planos. Era bom negociador, conversava bem, e não seria um ladrão de galinhas que iria impedi-lo de surrupiar algo infinitamente mais valioso: o tesouro de Montezuma, imperador asteca.

(1) ou Cempoala.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Sem intenção de trocadilho... 
(4) CASTILLO, Bernal Díaz del. Op. cit.


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terça-feira, 24 de março de 2020

Como era preparada a cachaça usada no tráfico de africanos escravizados

Cachaça e tabaco estavam entre as principais mercadorias que, levadas do Brasil, eram trocadas, já na África, por humanos escravizados. Em uma pequena obra publicada ainda durante o Período Regencial (¹) e destinada a combater o tráfico de africanos, Frederico Burlamaqui não economizou palavras para mostrar que traficantes de cativos incentivavam os conflitos entre povos do Continente Africano para que, depois, quando apresentassem mercadorias de valor irrisório, pudessem comprar inimigos derrotados  e aprisionados, a fim de embarcá-los rumo ao Brasil, onde seriam vendidos como escravos. De acordo com esse autor, "os primeiros contrabandistas de escravos foram os próprios que promoveram guerra entre as nações da África, e continuam a fornecer-lhes armas que alimentam e fazem perpétuas essas guerras assoladoras. E a que preços, e por que preços [...] vendem e trocam tantos milheiros de indivíduos da espécie humana? É a troco de miseráveis fazendas, de armas e veneno [...]". (²)

Africanos escravizados em Moçambique sendo conduzidos para embarque (³)

A argumentação empregada por Burlamaqui pode soar pesada aos leitores de hoje, mas deve ser considerada no contexto das lutas pela abolição do tráfico no Século XIX. É preciso esclarecer, porém, a que espécie de "veneno" se referiu, como em uso no tráfico. Em uma nota de rodapé na sua Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica, vem, do mesmo autor, a explicação: "Ninguém ignora ser a aguardente ou cachaça o principal gênero do comércio de escravos [...]. Todos sabem que o uso imoderado deste licor faz o efeito de um verdadeiro veneno; mas nem todos sabem, que, para tornar este gênero mais forte, e ao mesmo tempo produzir mais interesse aos traficantes, lhe ajuntam uma infusão concentrada de fumo, e a misturam com água salgada. Julguem que efeitos não devem produzir tais ingredientes, e se é hiperbólico o termo veneno [...]." (⁴)
Estarrecedor? Concordo, e já advirto que é improvável que o autor exagerasse, ou o argumento não alcançaria o fim pretendido. Teve, ainda, o cuidado de explicar, na mesma nota, que outros artigos entravam no tráfico: "O resto das carregações consta de armas, munições, algumas roupas já em desuso [...], e em miseráveis fazendas (⁵), rebotalho das fábricas inglesas! Se algum dinheiro em moeda vai não é certamente para os negros: esta mercadoria só a querem alguns miseráveis brancos estabelecidos temporariamente no país, e que aspirando a deixá-lo quando tiverem adquirido alguma fortuna, só querem moeda, que facilmente se transporta." (⁶)
Essa era, portanto, a situação do tráfico de africanos no Século XIX, que, no Brasil, somente seria abolido em definitivo no ano de 1850, mediante a Lei Eusébio de Queirós. 

(1) Escrita em 1834, a obra foi publicada três anos mais tarde.
(2) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 10.
(3) _____ Bilder-Atlas, Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Op. cit., p. 10.
(5) Burlamaqui se refere a tecidos de procedência britânica.
(6) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Op. cit., pp. 10 e 11.


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quinta-feira, 19 de março de 2020

Horário das refeições no Império Romano e no Brasil Colonial

Hábitos dos romanos ricos quanto ao horário das refeições


Menções feitas por vários autores da época sugerem que os antigos romanos, ao menos nos dias do Império, tinham por costume fazer uma refeição muito leve pela manhã, composta, como regra, por frutas, pão, talvez queijo, e nada mais que isso. Por que tanta frugalidade? Vocês já vão descobrir, leitores.
Estamos falando, é certo, dos romanos livres e de boa situação econômica. Pão e frutas eram o hábito de muitos por volta do meio-dia ou mesmo mais tarde, e não gastavam muito tempo nisso - é que lá pela hora nona (¹) vinha a refeição de verdade, o banquete do dia, que, como já se pode imaginar, invadia as horas da noite. Entre romanos abastados, dar banquetes, aos quais parentes e amigos eram convidados, era uma forma civilizada de convivência. 
Os comensais eram servidos enquanto se mantinham deitados em leitos parecidos com divãs. Apoiavam-se em um dos cotovelos, ficando os alimentos em mesas dotadas de três pés, os triclínios. Havia gente em Roma que travava verdadeiras disputas quanto à sofisticação dos banquetes oferecidos, contratando cozinheiros que, no comando de numerosos escravos, faziam comparecer às mesas alimentos preparados com os mais exóticos ingredientes. Gente comedida se contentava, porém, com culinária mais sóbria. Para que tudo corresse a contento, era comum ter sempre alguém para ler durante as refeições, e mesmo músicos e dançarinos para entretenimento do anfitrião e de seus convidados. 
A situação da gente pobre era bem diferente, valendo o mesmo no caso dos escravos. Portanto, deve-se entender que os excessos cometidos em banquetes oferecidos por Calígula e outros imperadores eram exceção, e não regra, ainda que suas práticas chegassem, às vezes, a pôr em perigo a saúde financeira do Império. De acordo com Suetônio (²), em apenas um ano, Calígula esgotou o tesouro acumulado por Tibério, seu antecessor, e, vendo que o dinheiro escasseava, não teve dúvida em fazer lançar novos impostos. 

Horário das refeições no Brasil Colonial


Agora, vejamos o que acontecia no Brasil Colonial, em se tratando do horário usual para refeições. Graças a Joaquim Manuel de Macedo (³), que explicou a questão muito bem em Memórias da Rua do Ouvidor, é fácil saber que gente desse tempo já distante tinha hábitos diferentes daqueles que predominam no Brasil de hoje:
"No século décimo sexto e ainda até quase o fim do décimo oitavo, os antigos colonos portugueses não tinham no Brasil café para tomá-lo com a aurora, mas almoçavam com o sol às seis ou sete horas da manhã, e jantavam com ele em pino ao meio-dia, salvo o direito de merendar (hoje se diz fazer lunch) às dez horas da manhã."
Macedo, consciente ou não de que seria útil aos leitores do futuro, ainda explicou como andavam os horários de refeições em seu próprio tempo, aquele a que nos referimos como sendo o "do Império". Professor de História que foi, ainda que médico por formação, tratou de mostrar a razão para tanta mudança nos costumes:
"Atualmente a sociedade civilizada almoça à hora em que os velhos portugueses jantavam, e janta de luzes à mesa à hora em que se levantavam da ceia aqueles nossos avós.
História de progresso e de civilização, que levam e estendem o sol de seus dias até depois da meia-noite com a iluminação a gás, e, ainda preguiçosos, saúdam o rompimento de suas auroras às nove horas da manhã, quando abrem as cortinas de seus macios leitos, e tomam, ainda bocejantes, o seu café madrugador."
O conjunto de transformações, não só nos horários de refeições, mas no estilo de vida como um todo, foi atribuído por Macedo à introdução de iluminação artificial eficiente - a gás, em seus dias - que possibilitava à gente que não tinha de madrugar para o trabalho, ficar acordada, a tagarelar, até muito tarde. Tarde, sim, mas para os padrões antigos, não para os notívagos do tempo do Império. Que diria se visse como vivemos no Século XXI? 
A ceia praticamente desapareceu dos hábitos brasileiros, exceto em ocasiões especiais ou por investidas fortuitas e quase sigilosas à geladeira, quando a noite se adianta. Refeições, como regra, ficaram mais rápidas, e, para a maioria das pessoas, ocorrem três vezes ao dia: antes do trabalho, no intervalo do trabalho e ao final do dia de trabalho. Percebem qual é aqui a palavra-chave, a moldar os hábitos? A disciplina imposta ao trabalho a partir da Revolução Industrial modificou radicalmente as práticas relacionadas ao horário das refeições no Ocidente. Acreditem, leitores: nem mesmo o Brasil escapou a esse processo. 

(1) Cerca de 15 horas, de acordo com a época do ano.
(2) De vita Caesarum, Livro IV.
(3) 1820 - 1882.


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terça-feira, 17 de março de 2020

Objetos que carpinteiros de São Paulo faziam no Século XVI

Como parte de um conjunto de medidas que tinham por objetivo disciplinar o exercício de várias profissões, fixando, inclusive, os valores que poderiam ser cobrados por serviços prestados, a Câmara de São Paulo, reunida em 23 de agosto de 1587, em atenção a requerimento do procurador, decidiu instituir um juiz para o ofício de carpinteiro. Dizia a ata respectiva:
"[...] "foi requerido aos ditos oficiais que fizessem a Bartolomeu Bueno, carpinteiro, juiz do ofício de carpintaria, por ser homem que melhor entendia o dito ofício e era examinado [...]." 
Esse Bartolomeu Bueno não era, evidentemente, aquele apelidado "Anhanguera", que só viria à existência muito tempo depois, realizando as suas façanhas de sertanista no Século XVIII. A ata não informa, mas, ao dizer que o carpinteiro Bartolomeu Bueno era "examinado", é razoável supor que fosse português vindo do Reino, e lá pertencente a uma corporação de ofício, onde fizera o exame que o admitira na profissão. Seja como for, o fato é que se entendia que tivesse as qualificações necessárias para supervisionar o trabalho dos colegas. Além disso, devia ser um espécime raro no Brasil do Século XVI, quando a falta de trabalhadores habilitados em ofícios mecânicos era gritante.
Posteriormente, foi aprovado um regimento para os carpinteiros da Vila de São Paulo, estipulando preços máximos para diversos objetos (¹):
"De uma caixa de seis palmos de comprido com seu escaninho, três cruzados;
outra caixa da própria medida, de cedro, três cruzados com seu escaninho;
uma mesa de seis palmos com seus pés, bem-acabada, seis tostões;
uma porta de cinco palmos de largo e oito de comprido, um cruzado;
as cadeiras de estado que agora se costumam, duzentos e cinquenta reis, as rasas, seis vinténs;
uma caixa para marmelada, trinta réis;
uma prensa de bom pau, bem-feita e forte, quatro cruzados;
uma dúzia de tábuas para caixas de marmelada, seis tostões;
uma dúzia de tábuas de seis palmos de comprido e dois de largo, boas e sãs, que se possa fazer proveito, dois cruzados [...]."
Vejam, leitores, que não há nada excepcional nos trabalhos e objetos listados no regimento: a vida em São Paulo era simples e rústica, como só poderia ser nestes tempos em que a colonização buscava, ainda, se firmar. Destaca-se, porém, a referência às caixas e tábuas para marmelada. É que esse doce era, então, produto importante da vila, não só para consumo local, mas para venda em outras capitanias. Não eram quaisquer marmeladas, e sim, "marmeladas de São Paulo", alvo da gula dos apreciadores de doces no Brasil do Século XVI.
Sabe-se que paulistas da época não eram muito amigos da obediência sem questionamentos às posturas da Câmara. Portanto, para dissuasão de algum atrevido, a publicação do regimento dos carpinteiros foi concluída assim: "se guardará sob pena de quinhentos réis, a metade para o concelho (²) e a outra metade para quem o acusar". Desestimulavam-se as infrações, com evidente incentivo aos delatores.

(1) O regimento de 1587 para os carpinteiros foi aqui transcrito em ortografia atual, com adição da pontuação indispensável, para que seja devidamente compreendido. 
(2) Concelho, com "c", em referência à administração local. 


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quinta-feira, 12 de março de 2020

César Augusto e o javali ameaçador

Javalis são perigosos; uma fêmea com filhotes, perigosíssima. Augusto, o imperador romano, teve seu dia de confrontar um javali. Lembrem-se, leitores, de que na Antiguidade os animais selvagens podiam ser uma ameaça real, mesmo nas imediações dos centros urbanos.
Augusto saiu a passeio com Diomedes, seu administrador (¹) que, de acordo com Suetônio (²), diante da aparição de um javali de aspecto bravio no caminho, desatou a correr, deixando que o imperador se entendesse com a fera. Sucede que disso nada resultou, mas, pelas regras da época, Diomedes cometera um crime gravíssimo. No entanto, longe de se zangar, o imperador, passado o susto, preferiu simplesmente zombar da covardia do servidor, entendendo que agira movido pelo medo e não por maldade.
Javali, de acordo com uma obra do Século XVI 
dedicada à descrição de animais (⁴)
Em outra circunstância, porém, Augusto obrou com muito menos brandura. Verificou, após a morte de um filho que estivera em uma província romana, que os funcionários que o acompanhavam, valendo-se da doença do jovem, haviam ostentado tanto arrogância como improbidade. Neste caso, também conforme Suetônio (³), o imperador não exerceu nenhuma misericórdia: mandou que se amarrassem pesos enormes ao pescoço dos corruptos e que, sem mais delongas, fossem lançados em um rio. Seria Augusto um juiz instável? 

(1) Provavelmente um liberto, ou seja, um ex-escravo.
(2) De vita Caesarum, Livro II.
(3) Ibid.
(4) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560, p. 82.


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terça-feira, 10 de março de 2020

A venda de alimentos nas ruas da capital do Império

Quem vivia no Rio de Janeiro no Século XIX ou em outras cidades do Império do Brasil podia comprar alimentos de comerciantes locais, mesmo sendo fato que o Rio tinha problemas de abastecimento, porque as estradas que ligavam as áreas produtoras à cidade eram muito ruins. Entretanto, quem desejasse comprar pequenas quantidades, podia recorrer aos escravos e libertos que andavam pelas ruas vendendo gêneros alimentícios. 
Um relato interessante, feito por Daniel Kidder, pastor e missionário metodista americano que esteve no Brasil entre 1837 e 1840, mostra como se fazia o comércio de alimentos na rua. Kidder falava, em especial, das frutas nativas, embora outros itens fizessem parte das vendas habituais, inclusive animais vivos que, para consumo, obviamente seriam abatidos. "Esses artigos", disse ele, referindo-se a alimentos, "são encontrados em profusão nos mercados e apregoados pelas ruas da cidade e dos subúrbios por escravos e negros libertos que os levam geralmente em balaios na cabeça. Os vendedores ambulantes passam constantemente pelas ruas apregoando em altas vozes a natureza e a excelência de suas mercadorias, ou emitindo algum som indeterminado, apenas para atrair a atenção do público. Quem quiser comprar alguma coisa, tem apenas que chamá-los com um "psiu", sinal que todos compreendem como sendo um convite para entrar e exibir seu estoque." (¹)

Vendedora de galinhas conversa na rua com vendedor de hortaliças (²)

É certo que o comércio ambulante não se restringia a artigos alimentícios. Uma variedade de mercadorias era, assim, disponibilizada aos potenciais compradores. Quanto aos alimentos, 
especificamente, é um tanto difícil avaliar com exatidão as condições de higiene em que eram oferecidos, ainda que seja razoável supor que o cenário nem sempre fosse muito favorável, levando em conta a situação urbana relativamente a esse aspecto na época.

(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 89.
(2) _________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 5 de março de 2020

A recepção de calouros nas universidades medievais

Esperando em um semáforo, vi passar à frente um grupo de estudantes de uma universidade local. Alguns iam pintados com o nome dos respectivos cursos, com os cabelos cortados, ou melhor, picotados, enquanto outros, que os seguiam, batiam palmas e faziam tanto alarido quanto podiam. Vocês já entenderam, não é? Era a hora do "trote", a recepção de calouros por estudantes veteranos.
Ah, pensei, eles nem sabem que toda essa algazarra tem suas raízes na Idade Média... 
Vou explicar. Para frequentar uma universidade medieval era preciso saber latim. Apesar disso, estudantes eram admitidos muito mais cedo do que acontece hoje - não era incomum que rapazotes de quatorze ou quinze anos entrassem para alguma universidade. A disciplina era severa e, como o material para escrita era dispendioso e escasso, todo aluno devia ter boa memória para reter tudo quanto diziam os professores. Assim é que se aprendia.
Os costumes quanto à recepção de novos estudantes variavam um pouco de um lugar para outro, mas a regra era considerar que os recém-chegados precisavam de algum tipo de "purificação" antes de ocupar um lugar nas salas de aula. Por isso, tinham as unhas e cabelos cortados, deviam tomar um banho (verdadeira tortura medieval) e, tendo recursos, dar uma festa para os veteranos. O bullying incluía, às vezes, uma espécie de desfile em que os novatos montavam jumentos. Não era raro, também, que se impusessem tarefas aos calouros, tais como carregar livros dos veteranos, além da obrigação de ceder o lugar junto ao fogo que aquecia o ambiente, sempre que um veterano chegava. Havia, por suposto, outras tradições ainda mais perversas, mas não menciono aqui para não dar a ideia a quem quer que seja. Só posso dizer que, aos estudantes que encontrei na L4, pedindo "esmolas" para a festa que, como calouros, deveriam custear, não resta nem mesmo o consolo da originalidade. O trote universitário é uma dessas tradições que todo mundo condena, mas que, com notável persistência, tem atravessado os séculos.


terça-feira, 3 de março de 2020

Meninos tamoios

A água do mar, tépida e faiscante à luz do sol, atrai os meninos tamoios para fora da paliçada que protege a aldeia. Tudo parece calmo e em paz. Por que não brincar no aconchego da natureza? Logo, na areia tão alva, pegadas fundas denunciam a passagem, em corrida, dos que, mais adiante, transpõem as primeiras ondas e, acelerando as braçadas, nadam com perícia invulgar.
Alguns minutos depois, retornam à praia. Risos, brincadeiras, a água que jogam uns nos outros. Enfim, o cansaço. Deitam-se na areia, olham o céu quase sem nuvens, a imaginação voa pelas aventuras que ouvem os mais velhos contarem. Um dia serão como eles.
Já refeitos, sentam-se, olham ao redor. Não muito longe, junto às rochas na ponta da praia, aves esvoaçam e mergulham, subindo com peixinhos no bico. 
Vamos remar? Palavras e ação são quase a mesma coisa. Lá se vão os três, já sobre a canoa que estivera encalhada na praia, os longos remos nas mãos, passando uma onda após outra, na cadência do mar. Remam em pé, como aprenderam com os grandes. Que equilíbrio têm eles... Miram, à distância, as escarpas da Serra do Mar. O vento traz o aroma da liberdade.
Um quarto de hora mais tarde, chegam a um pequeno estuário e, entrando por ele, remam com cuidado, junto à vegetação do mangue, cujas raízes expostas denunciam a maré baixa. Tateando com os remos, buscam caranguejos, aqui e ali. Vão atentos, sufocando gritinhos de entusiasmo para não afugentar alguma caça. É para isso, afinal, que trazem na canoa os arcos que já manobram com destreza. 
Súbito, veem movimento entre os arbustos, à distância, em terra firme. Em silêncio, trocam um olhar, contendo a respiração e, com o menor ruído possível, aproximam a canoa das árvores, ocultando-se, quanto podem, enquanto continuam a observar. 
Uma longa fila de homens armados caminha, removendo a vegetação. Estão pintados, e os meninos sabem: é pintura de guerra, que mostra, no corpo, a sanha que vai na mente. São inimigos. Vêm vingar um dos seus, que, há tempos, foi morto por gente da aldeia à beira-mar.
Por costume indígena, não atacarão enquanto há luz. A guerra é coisa para as horas em que as estrelas vigiam, quando a surpresa pode ser manejada como a mais útil das armas. Depois de esperar por um momento de segurança, os meninos se afastam, deslizando os remos sutilmente. Em alguns minutos já estão no mar. Agora, seus músculos juvenis têm pressa. Chegarão a tempo, avisarão os idosos, o chefe dará as ordens, haverá flechas em quantidade, arcos, tacapes e pintura corporal, também. Nesse dia, em meio à agitação dos preparativos de defesa, os três meninos é que serão os heróis.