terça-feira, 3 de março de 2020

Meninos tamoios

A água do mar, tépida e faiscante à luz do sol, atrai os meninos tamoios para fora da paliçada que protege a aldeia. Tudo parece calmo e em paz. Por que não brincar no aconchego da natureza? Logo, na areia tão alva, pegadas fundas denunciam a passagem, em corrida, dos que, mais adiante, transpõem as primeiras ondas e, acelerando as braçadas, nadam com perícia invulgar.
Alguns minutos depois, retornam à praia. Risos, brincadeiras, a água que jogam uns nos outros. Enfim, o cansaço. Deitam-se na areia, olham o céu quase sem nuvens, a imaginação voa pelas aventuras que ouvem os mais velhos contarem. Um dia serão como eles.
Já refeitos, sentam-se, olham ao redor. Não muito longe, junto às rochas na ponta da praia, aves esvoaçam e mergulham, subindo com peixinhos no bico. 
Vamos remar? Palavras e ação são quase a mesma coisa. Lá se vão os três, já sobre a canoa que estivera encalhada na praia, os longos remos nas mãos, passando uma onda após outra, na cadência do mar. Remam em pé, como aprenderam com os grandes. Que equilíbrio têm eles... Miram, à distância, as escarpas da Serra do Mar. O vento traz o aroma da liberdade.
Um quarto de hora mais tarde, chegam a um pequeno estuário e, entrando por ele, remam com cuidado, junto à vegetação do mangue, cujas raízes expostas denunciam a maré baixa. Tateando com os remos, buscam caranguejos, aqui e ali. Vão atentos, sufocando gritinhos de entusiasmo para não afugentar alguma caça. É para isso, afinal, que trazem na canoa os arcos que já manobram com destreza. 
Súbito, veem movimento entre os arbustos, à distância, em terra firme. Em silêncio, trocam um olhar, contendo a respiração e, com o menor ruído possível, aproximam a canoa das árvores, ocultando-se, quanto podem, enquanto continuam a observar. 
Uma longa fila de homens armados caminha, removendo a vegetação. Estão pintados, e os meninos sabem: é pintura de guerra, que mostra, no corpo, a sanha que vai na mente. São inimigos. Vêm vingar um dos seus, que, há tempos, foi morto por gente da aldeia à beira-mar.
Por costume indígena, não atacarão enquanto há luz. A guerra é coisa para as horas em que as estrelas vigiam, quando a surpresa pode ser manejada como a mais útil das armas. Depois de esperar por um momento de segurança, os meninos se afastam, deslizando os remos sutilmente. Em alguns minutos já estão no mar. Agora, seus músculos juvenis têm pressa. Chegarão a tempo, avisarão os idosos, o chefe dará as ordens, haverá flechas em quantidade, arcos, tacapes e pintura corporal, também. Nesse dia, em meio à agitação dos preparativos de defesa, os três meninos é que serão os heróis.


2 comentários:

  1. Por momentos também eu me senti menino tamoio.
    Que bela prosa, Marta!

    Uma boa semana :)

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    Respostas
    1. Os lugares são reais, eu os conheço bem. Um dia, andando por lá, comecei a imaginar o que poderia ter acontecido há séculos... O resultado foi esse pequeno texto.
      Uma ótima semana a vc também!

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