sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Como os indígenas do Brasil faziam canoas

Não há quem desconheça o fato de que os indígenas do Brasil, como regra geral, eram excelentes nadadores. Eram também muito hábeis em construir canoas e, com elas, podiam deslocar-se por rios e mesmo no mar, embora, neste último caso, nunca se distanciassem muito da costa, ou acabariam perdidos em meio ao oceano, sem que pudessem voltar.
Cada grupo indígena tinha sua própria técnica para construir canoas, mas era quase unânime o uso de um só grande tronco, conforme explicou Frei Vicente do Salvador:
"...os índios naturais da terra, as embarcações que usam são canoas de um só pau, que lavram a fogo e a ferro; e há paus tão grandes, que ficam depois de cavados com dez palmos de boca de bordo a bordo; e tão compridos, que remam a vinte remos por banda." (¹)

Sistema indígena para fabricação de canoas, de acordo com desenho de
Joaquim José Codima (²)

Lavrar a ferro, é bom recordar, só foi possível, todavia, a partir do escambo (troca) com europeus. Antes disso, as ferramentas eram de pedra.
Os tupinambás estavam entre os que faziam canoas pelo sistema de usar um único tronco:
"...São grandes remadores, assim nas suas canoas, que fazem de um só pau, que remam em pé vinte ou trinta índios, com o que as fazem voar." (³)
Os tamoios (⁴), que o Padre Anchieta tão bem conheceu, provavelmente usavam um método parecido, pelo que se depreende da explicação dada pelo famoso jesuíta nativo das Canárias:
"...Tinham aparelhadas duzentas ou mais canoas, que fazem de uma cortiça só de uma árvore cada uma, pondo-lhes outros pedaços da mesma cortiça por bordos, mui bem atados com vimes, e são tão grandes que levam cada uma delas vinte e vinte e cinco e mais pessoas, com suas armas e vitualhas; e algumas mais de trinta, e passam ondas e mares tão bravos que é coisa espantosa e que não se pode crer nem imaginar, senão quem o vê..." (⁵)

Canoa indígena, de acordo com Rugendas (⁶)

Os leitores já devem ter notado que uma característica das técnicas indígenas para confecção de objetos de uso diário era que sempre usavam material fartamente disponível na área em que viviam. Não era comum que fossem procurar recursos a grande distância. Portanto, grandes canoas feitas de um só tronco eram possíveis a quem vivesse próximo às grandes matas. Sendo outras as circunstâncias naturais, a técnica para a construção de embarcações também mudava, como podemos facilmente deduzir desta descrição, feita por Gabriel Soares, das canoas usadas pelos índios caetés:
"As embarcações de que este gentio usava eram de uma palha comprida como a das esteiras de tabua (⁷) que fazem em Santarém, a que eles chamam periperi, a qual palha fazem em molhos muito apertados com umas varas como vimes, a que eles chamam timbós, que são muito brandas e rijas, e com estes molhos atados em umas varas grossas faziam uma feição de embarcações, em que cabiam dez a doze índios, que se remavam muito bem e nelas guerreavam com os tupinambás neste rio de São Francisco, e se faziam uns aos outros muito dano. E aconteceu por muitas vezes fazerem os Caetés desta palha tamanhas embarcações, que vinham nelas ao longo da costa fazer seus saltos aos tupinambás junto da Bahia, que são cinquenta léguas." (⁸)
É verdade que, do ponto de vista tecnológico, os colonizadores europeus estavam muito à frente, de um modo geral, dos povos indígenas do Brasil. No entanto, é inegável que os ameríndios estavam bastante bem adaptados ao meio em que viviam e, com habilidade por vezes surpreendente, eram capazes de satisfazer às suas pequenas necessidades de consumo, como suas eficientes embarcações eram capazes de demonstrar.

(1) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil, c. 1627.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 321.
(4) Segundo a compreensão atual, os tamoios pertenciam ao grupo tupinambá, e a distinção do nome se faz pela região em que habitavam, ou seja, o litoral dos atuais Estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 203.
(6) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) Em São Paulo também se diz "taboa".
(8) SOUSA, Gabriel Soares de. Op. cit., pp. 38 e 39.


Veja também:

4 comentários:

  1. Havia feito um projeto em vídeo e citei ocasionalmente que os índios faziam canoas com o fogo, fico feliz de acertar.. mas creio que isso era algo fácil de deduzir "fá"

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    1. Olá, Nydoocker,
      As ferramentas de pedra usadas por indígenas antes do contato com europeus tornavam difícil o trabalho de cortar e entalhar a madeira, daí o uso do fogo, conforme você deduziu corretamente.
      Um fato interessante: encontrei, há pouco tempo, no interior de Goiás, artesãos que fazem floreiras (ou jardineiras) com troncos de árvores que foram cortadas e, para isso, aplicam a mesma técnica de queimar a madeira. Tradição indígena, certamente.

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