O peixe-boi é mamífero sirênio. Portanto, de peixe, só tem o nome pelo qual é popularmente conhecido. No Brasil, as espécies encontradas, uma marítima, outra fluvial, são Trichechus manatus e Trichechus inunguis, respectivamente.
No Século XVI, os colonizadores europeus ficaram maravilhados com ele. Gândavo observou:
"É um peixe muito saboroso e totalmente parece carne e assim tem o gosto dela; assado parece lombo de porco ou de veado, coze-se com couves, e guisa-se como carne, nem pessoa alguma o come que o tenha por peixe, salvo se o conhecer primeiro. As fêmeas têm duas mamas pelas quais mamam os filhos, criam-se com leite (coisa que se não acha noutro peixe algum)..." (¹)
Bem se vê que Gândavo não sabia muito bem como diferenciar peixes de mamíferos. Não era, porém, o único a ignorar tais distinções.
"É um peixe muito saboroso e totalmente parece carne e assim tem o gosto dela; assado parece lombo de porco ou de veado, coze-se com couves, e guisa-se como carne, nem pessoa alguma o come que o tenha por peixe, salvo se o conhecer primeiro. As fêmeas têm duas mamas pelas quais mamam os filhos, criam-se com leite (coisa que se não acha noutro peixe algum)..." (¹)
Bem se vê que Gândavo não sabia muito bem como diferenciar peixes de mamíferos. Não era, porém, o único a ignorar tais distinções.
Há, também do Século XVI, a descrição feita por Gabriel Soares, detalhando o método cruel que era usualmente empregado na captura:
"Goaragoá é o peixe a que os portugueses chamam boi [...], o qual peixe tem o corpo tamanho como um novilho de dois anos, e tem dois cotos como braços, e neles umas mãos sem dedos; não tem pés, mas tem o rabo à feição de peixe e a cabeça e focinho como boi; tem o corpo muito maciço [...], não tem escama, mas a pele parda e grossa. A estes peixes se mata com arpões muito grandes, atados a grandes arpoeiras mui fortes, e no cabo delas atado um barril ou outra boia, porque lhe largam com o arpão a arpoeira, e o arpoador vai em uma jangada seguindo o rastro do barril ou boia, que o peixe leva atrás de si com muita fúria, até que o peixe se vaza todo do sangue e se vem acima da água morto, o qual levam atado a terra ou ao barco, onde o esfolam como novilho, cuja carne é muito gorda e saborosa, e tem o rabo como toucinho, sem ter nele nenhuma carne magra, o qual derretem como banha de porco e se desfaz todo em manteiga, que serve para tudo o para que presta a de porco, e tem muito melhor sabor [...]." (³)
Estejam certos os leitores de que, quanto aos colonizadores, a primeira utilidade que procuravam, em qualquer animal que encontravam, era a dos fins culinários. Mau para o peixe-boi, que foi amplamente apreciado. Por leigos e por clérigos.
O Padre Anchieta, pelo que se depreende de seus escritos, apreciava a carne do peixe-boi, embora tivesse lá suas preocupações. Dizia ele:
É excelente para comer-se, não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe; da sua gordura, que está inerente à pele e mormente em torno da cauda, levada ao fogo faz-se um molho, que pode bem comparar-se à manteiga, e não sei se a excederá; o seu óleo serve para temperar todas as comidas; todo o seu corpo é cheio de ossos sólidos e duríssimos, tais que podem fazer as vezes de marfim." (⁴)
A questão-chave aqui é: "...não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe". Muito simples, senhores leitores. Anchieta estava conjecturando se a carne do peixe-boi era ou não apropriada para dias de jejum prescritos pela Igreja, como era o caso da Quaresma. Grave problema naqueles tempos, nos quais havia muita religiosidade e, de um modo geral, pouco saber científico.
O caso pode hoje nos parecer irrelevante. Não o era, porém, no Século XVI. Não poucas vezes Anchieta e seus irmãos jesuítas registraram ter passado fome, enquanto percorriam a colônia portuguesa na América fazendo aquilo que criam ser seu dever, ou seja, procurando catequizar indígenas. Um único peixe-boi podia atingir centenas de quilogramas, e acabava sendo um suprimento alimentar muito bem recebido. É o que se percebe nesse trecho de uma carta, também escrita por Anchieta e datada de 31 de maio de 1560: "...e como pouca provisão nos sobrasse para o resto da viagem, lançaram os marinheiros a rede ao mar, e colheram de um só lanço dois dos tais bois marinhos, os quais, apesar de serem tão grandes, não romperam a rede, quando um só deles era suficiente para rasgar e despedaçar muitas redes; e assim, provendo-nos com fartura a munificência divina, fizemos o resto da viagem." (⁵)
Que ideia tinham os jesuítas de si mesmos? O relato dessa pesca que reputavam miraculosa é bastante elucidativo, uma vez que toda a linguagem que Anchieta empregou é quase clonada de um certo milagre registrado no Evangelho segundo São João: "Ascendit Simon Petrus et traxit rete in terram plenum magnis piscibus centum quinquaginta tribos et cum tanti essent non est scissum rete" - e, com serem tantos, a rede não se partiu...
O Padre Anchieta, pelo que se depreende de seus escritos, apreciava a carne do peixe-boi, embora tivesse lá suas preocupações. Dizia ele:
É excelente para comer-se, não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe; da sua gordura, que está inerente à pele e mormente em torno da cauda, levada ao fogo faz-se um molho, que pode bem comparar-se à manteiga, e não sei se a excederá; o seu óleo serve para temperar todas as comidas; todo o seu corpo é cheio de ossos sólidos e duríssimos, tais que podem fazer as vezes de marfim." (⁴)
A questão-chave aqui é: "...não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe". Muito simples, senhores leitores. Anchieta estava conjecturando se a carne do peixe-boi era ou não apropriada para dias de jejum prescritos pela Igreja, como era o caso da Quaresma. Grave problema naqueles tempos, nos quais havia muita religiosidade e, de um modo geral, pouco saber científico.
O caso pode hoje nos parecer irrelevante. Não o era, porém, no Século XVI. Não poucas vezes Anchieta e seus irmãos jesuítas registraram ter passado fome, enquanto percorriam a colônia portuguesa na América fazendo aquilo que criam ser seu dever, ou seja, procurando catequizar indígenas. Um único peixe-boi podia atingir centenas de quilogramas, e acabava sendo um suprimento alimentar muito bem recebido. É o que se percebe nesse trecho de uma carta, também escrita por Anchieta e datada de 31 de maio de 1560: "...e como pouca provisão nos sobrasse para o resto da viagem, lançaram os marinheiros a rede ao mar, e colheram de um só lanço dois dos tais bois marinhos, os quais, apesar de serem tão grandes, não romperam a rede, quando um só deles era suficiente para rasgar e despedaçar muitas redes; e assim, provendo-nos com fartura a munificência divina, fizemos o resto da viagem." (⁵)
Que ideia tinham os jesuítas de si mesmos? O relato dessa pesca que reputavam miraculosa é bastante elucidativo, uma vez que toda a linguagem que Anchieta empregou é quase clonada de um certo milagre registrado no Evangelho segundo São João: "Ascendit Simon Petrus et traxit rete in terram plenum magnis piscibus centum quinquaginta tribos et cum tanti essent non est scissum rete" - e, com serem tantos, a rede não se partiu...
(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 40.
(2) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 55.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 282.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 107 e 108.
(5) Ibid., p. 110.
(2) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 55.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 282.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 107 e 108.
(5) Ibid., p. 110.
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