segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O abacaxi e a Inquisição

"Uma espécie mui galante e causa de louvar o Autor da natureza é a que chamamos ananás; seu fruto é a modo de pinha de Portugal, o gosto e cheiro a modo de maracotão o mais fino, suas folhas são semelhantes a erva babosa. A cabeça do fruto galanteou a natureza com um penacho ou grinalda de cores aprazíveis."
Padre Simão de Vasconcelos (¹)

Ao contrário das colônias da Espanha na América, o Brasil, colônia portuguesa, nunca teve tribunais fixos do Santo Ofício da Inquisição. Teve, porém, "Visitações" do Santo Ofício, que poderiam ser definidas como uma versão ambulante do Tribunal, com uma estrutura bastante simplificada, cujos funcionários obrigatórios eram apenas três: o visitador, um escrivão e um meirinho (²).
Foi na última década do Século XVI que a primeira Visitação chegou às terras do Brasil, ocorrendo a publicação dos editos da Fé e da Graça em Salvador, então capital, no domingo, 28 de julho de 1591.
Expliquemos.
Tendo o visitador nomeado, Heitor Furtado de Mendonça, chegado ao Brasil e efetuado as apresentações formais às autoridades civis e eclesiásticas (que, conforme o rito, deviam demonstrar satisfação e submissão aos atos inquisitoriais), determinava-se que toda a população da cidade e adjacências comparecesse à cerimônia na qual, após um sermão enaltecendo as virtudes do Santo Ofício, era feita uma proclamação dando prazo de trinta dias para confissões e denúncias.
Fica entendido que tal prática precisa, necessariamente ser avaliada no contexto da época, em que a Inquisição inspirava autêntico terror, tanto pelas penas eternas que sugeria como pelas terrestres, talvez até mais temidas. A consequência é que, nos trinta dias "de graça" a população corria a confessar os supostos crimes contra a fé, com o agravante de que era necessário fazê-lo antes que alguém denunciasse...
A perversidade do sistema era de tão alto grau que mesmo cônjuges, apavorados, corriam a denunciar os respectivos companheiros. No entanto, alguns casos podiam até, pelos nossos padrões, ter um viés cômico. Foi o caso da confissão feita por uma certa Catarina Fernandes, que vivia no Brasil condenada a degredo de cinco anos, por ter-se envolvido em um caso de homicídio no Reino.
Ananás ou abacaxi (⁶)
O escrivão relatou:"...e confessando-se disse que haverá ano e meio que em dia de Nossa Senhora da Conceição pela manhã, morando ela em Pirajá desta Capitania, se confessou ao capelão do engenho da cidade Pantaleão Gonçalves, e dele recebeu o Santíssimo Sacramento, e depois indo para sua casa lhe lembrou seu marido que ela antes de ir para a igreja tinha comido uma talhada de ananás (³), e ela vendo também as cascas no chão lhe lembrou então que tinha comido uma talhada de ananás antes de ir comungar, e então teve grande arrependimento e se tornou a confessar a um padre da Companhia (⁴), o qual lhe deu em penitência que trouxesse um cilício quinze dias e rezasse cinco vezes o rosário e outras tantas a coroa de Nossa Senhora e jejuasse três sábados a pão e água, a qual penitência ela cumpriu, e que hora pedia misericórdia nesta mesa, conforme a este tempo de graça."
Quem acha que, afinal, o caso de Catarina Fernandes não era para tanta severidade, não vê a coisa com os olhos de um inquisidor. O Senhor Visitador do Santo Ofício, em pleno exercício dos quase ilimitados poderes que lhe eram conferidos, farejou aqui a possibilidade de um caso de negação da chamada transubstanciação, de modo que interrogou a confitente de forma pormenorizada, ao que ela respondeu "...que nunca esteve em terra de luteranos, nem tratou com eles e que sabia muito bem que se há de comungar em jejum e que a isso estava obrigada [...]."
Diante da insistência do Visitador, saiu-se ela com uma explicação bastante razoável para seu inusitado esquecimento de que comera abacaxi, ou seja, "...com a cólera e agastamento que levava contra seu marido, com quem pelejara, lhe não lembrou"... (⁵)
Esse episódio chegaria às raias do ridículo, não fora o fato de nos dar informação sobre a desconfiança que devia pairar na sociedade nos tempos inquisitoriais, fazendo com que as pessoas corressem, por medo, a publicar ações e pensamentos diante de um inquisidor e seu escrivão. O temor de uma denúncia e subsequente processo garantia aos detentores do poder eclesiástico um nível elevado de controle sobre os indivíduos, mesmo porque a rede de "familiares" do Santo Ofício era certeza de que não seria por falta de informação que deixaria de estar ocupada a mesa inquisitorial.
O que entenderia Catarina Fernandes sobre transubstanciação, consubstanciação, luteranismo, etc.? Pouco ou nada, é bem provável. Ao final da confissão, como não soubesse assinar o próprio nome, pediu que o escrivão o fizesse por ela.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 243.
(2) Para efeitos práticos, um meirinho tinha, em uma Visitação, o papel de oficial de justiça.
(3) Abacaxi.
(4) Um jesuíta.
(5) Todas as citações da confissão da degradada Catarina Fernandes são provenientes da edição de 1922 da Primeira Vistação do Santo Ofício às Partes do Brasil, série Eduardo Prado.
(6) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 87.


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