quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O Catetinho

Projetado em 1956 por Oscar Niemeyer, o Catetinho evidencia as características óbvias de uma construção planejada para uso temporário (inclusive pelo emprego de madeira, em lugar de alvenaria). Quem o observa, logo nota a semelhança entre ele e outros prédios, também provisórios, utilizados durante a construção de Brasília. Até que o Palácio da Alvorada fosse concluído, funcionou como residência presidencial, que Juscelino Kubitschek usava sempre que vinha acompanhar de perto as obras da nova capital. Foi chamado "Catetinho" porque, na época, o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, era a sede do Executivo federal, posição que ocupou até 1960. 
Hoje o Catetinho é um museu. O acervo não é muito grande, mas tem importância por conservar a memória de um momento significativo para o Brasil, além de objetos que eram usuais na época e que, para maioria de nós, atualmente, talvez pareçam um pouco estranhos: rádio, lampião, telefone antigo - a futura capital estava longe dos maiores centros urbanos - além de roupas e objetos de uso pessoal do presidente Juscelino Kubitschek.  As fotos darão a vocês, leitores, uma ideia do que há para ver. 

Vista geral do Catetinho

Escada para acesso ao segundo piso (fotografia infravermelha a 720 nanômetros)

Refeitório

Uma das janelas do Catetinho (fotografia infravermelha a 720 nanômetros)

Gabinete do presidente no Catetinho


Veja também:

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A celebração do Natal durante a expedição missionária do padre Antônio Vieira em 1653

Véspera de Natal, 1653: uma expedição percorre o rio Tocantins. Para os jesuítas que dela participam, o objetivo é estabelecer contato com indígenas que pretendem catequizar. Mas vão também colonizadores, e estes têm outras ideias (¹). A data, porém, pede celebração. Mas, que fazer, em meio à floresta?
A simplicidade deu o tom, pelo que se depreende de um relato feito pelo padre Antônio Vieira, que liderava os missionários jesuítas:
"Tínhamos determinado fazer alto neste dia mais cedo que nos outros, para gastar toda a tarde em adereçar uma capela de palma, em que celebrar com mais decência os mistérios desta sagrada noite, mas não tivemos lugar para mais que de engenhar uma pequena choupana mal coberta com as toldas das canoas, aonde armamos o nosso altar. [...]." (²)
Aos missionários não ficou sequer a alegria de celebrar missa com todos reunidos. É que uma das canoas não acompanhou o ritmo das demais, conforme explicação do próprio Vieira:
"Não nos achamos juntos mais que os padres Francisco Veloso, Manoel de Sousa e eu, porque o padre Antônio Ribeiro com a sua canoa não pôde avançar tanto, e ficou em outro lugar, aonde também aportaram algumas canoas que não estavam conosco, e por esta tardança e apartamento vieram uns e outros a ter a consolação da santa missa aquela noite." (³)
Desse modo, a ocasião foi marcada pela celebração de missas e por uma refeição muito simples - quem esperaria encontrar uma autêntica ceia de Natal em meio às águas e matas ainda desconhecidas para europeus? Sigamos com as informações do padre Vieira:
"O padre Antônio Ribeiro contentou-se só com a água sem farinha, os demais [...] não tiveram mais sobre a farinha que um pouco de peixe seco, mas Deus tempera de maneira estes regalos que os não trocarão os que gostam deles pelos maiores do mundo. O trabalho tão extraordinário de todo o dia parece pedia o descanso da noite, mas toda ela se passou em vela sobre a terra nua da choupana, oferecendo cada um ao Menino nascido não só os desamparos de seu Belém, mas as saudades da devoção e concerto que esta santa noite celebra nos colégios da Companhia. À meia-noite dissemos três missas, que todos ouviram, as demais se disseram às suas horas, e no dia comungaram alguns portugueses e alguns índios." (⁴)
Entre preces e reflexões que talvez não ousassem compartilhar, missionários passaram as horas do Natal. Fatigados pela viagem, a mente inquieta pelo temor quanto às péssimas intenções de alguns integrantes da expedição, deram as boas-vindas a algum repouso. Concluindo o informe desse Natal atípico, Vieira escreveu: "Por celebridade do dia não fizemos jornada nele [...]." (5)

(1) A ideia, óbvia para quem conhece alguma coisa sobre a conduta dos colonizadores da época, era escravizar indígenas.
(2) Cf. MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 467.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Riscos existentes na prática do comércio e da agricultura entre os antigos romanos

Qual seria a ocupação mais honesta e rentável para um romano da Antiguidade? O austero Marco Pórcio Catão (¹), que escreveu De agri cultura, achava que era o cultivo do solo. Demos a palavra a ele, portanto:
"O comércio, não fora os riscos que encerra, seria uma atividade tão recomendável quanto propícia ao enriquecimento; o mesmo poderia ser dito dos banqueiros, desde que honestos. Pensando nisso, nossos antepassados fizeram constar nas Leis que um ladrão estava obrigado a restituir em dobro aquilo que roubasse, enquanto que os usurários seriam condenados à restituição do quádruplo, evidenciando, assim, que, em seu julgamento, os usurários eram cidadãos piores que os ladrões. Por outro lado, sempre que pretendiam elogiar um homem, diziam-no proprietário de terras e bom agricultor [...]."
Depois de afirmar que tinha os bons comerciantes em alta conta, lamentando, porém, os riscos em que incorriam, o mesmo Catão alardeava as vantagens que supunha haver na agricultura:
"É dos labores do solo que emergem os melhores cidadãos, fisicamente vigorosos e ótimos soldados (²), resultando da agricultura um ganho honesto, absolutamente seguro e não sujeito à inveja [de quem quer que seja]." (³)
Convido os leitores a uma reflexão sobre quais seriam os riscos envolvidos no comércio em larga escala na Antiguidade. Primeiro,. comerciantes precisavam viajar muito, por terra e por mar, e as viagens, nesse tempo, podiam ser bastante perigosas. Além disso, mercadorias eventualmente se estragavam ou "desapareciam" por obra de ladrões. Talvez os potenciais compradores não se interessassem pelos artigos à venda e, no caso de Roma, incêndios em armazéns adjacentes ao porto de Ostia não eram um fenômeno desconhecido. Finalmente, havia a ameaça de piratas que, à espreita em áreas litorâneas pouco habitadas, aguardavam uma oportunidade para a captura de embarcações que iam e vinham pelo grande "lago salgado" romano em que o Mediterrâneo se tornara após a destruição de Cartago.
Contudo, também a agricultura envolvia riscos. Falta de chuva ou estiagem prolongada, um inverno demasiado rigoroso ou um verão escaldante, podiam arruinar o trabalho de uma temporada. Mas não era só: se houvesse guerra, talvez acontecesse que, por conveniência estratégica, uma fértil área de cultivo fosse transformada em campo de batalha, sem falar nas pilhagens feitas por inimigos ou na possibilidade do confisco de toda a lavoura, já pronta para a colheita, para sustento das tropas. Nessas condições, como alguém podia supor que a agricultura fosse uma atividade isenta de contratempos? E por que, afinal, Catão via nos proprietários de terra figuras tão dignas de elogios?
O motivo, meus leitores, talvez possa ser encontrado no próprio Catão, cuja vida transcorreu em uma época na qual, como resultado das conquistas militares, o luxo ia já invadindo Roma e caindo no gosto de seus outrora rústicos habitantes. Nesse cenário, Marco Pórcio Catão teimava, como político, em buscar a aprovação de leis que limitassem os gastos e obrigassem a gente abastada a viver "como nos velhos tempos", em que líderes militares romanos deixavam o arado para empunhar armas e, vitoriosos, voltavam rapidamente ao trabalho, para não prejudicar a lavoura. Era assim, idilicamente agropastoril, que Catão supunha a Roma ideal. Mas estava sem sorte: seus concidadãos tinham outras ideias, o comércio experimentava um crescimento absurdo, a agricultura perdia importância e o cultivo do solo era entregue a prisioneiros de guerra escravizados. Roma, senhora de uma parte considerável do planeta, passou, pouco a pouco, a depender das remessas de cereais que vinham de outras terras - principalmente do Egito - para sobreviver. O Século seguinte à morte de Catão se encarregou de consolidar essa nova tendência.

(1) 234 - 149 a.C.
(2) Lembrem-se, leitores: Catão foi um combatente na Segunda Guerra Púnica.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

De onde vinha o óleo que mantinha as candeias acesas no Brasil Colonial

Óleo de baleia na iluminação de casas e engenhos coloniais


Uma parte nada desprezível na adaptação dos colonizadores à vida no Brasil estava relacionada a encontrar substitutos para artigos de uso corrente em Portugal. Foi assim, por exemplo, quanto ao óleo usado para manter acesas as candeias que, à noite, asseguravam que casas e engenhos não ficassem às escuras. Com o passar do tempo, o chamado "óleo de baleia" seria muito utilizado; contudo, as baleias (¹), que nos primeiros tempos da colonização eram em extremo numerosas ao largo da costa do Brasil, foram gradualmente desaparecendo, em razão da autêntica guerra de extermínio que a cobiça moveu contra elas. "As baleias são em tão grande número, que só nesta Bahia anda hoje o Contrato Real sobre elas em quarenta e três mil cruzados por tempo de três anos" (²), escreveu o padre Simão de Vasconcelos no Século XVII. Era a suposição, nascida à altura do descobrimento, de que, no Brasil, água, terra, matas, tudo, enfim, era infinito. As baleias infinitas pagaram caro por isso.

Algumas alternativas para iluminação


Óleo de copaíba
Exemplar jovem de copaíba
Curiosamente, no Século XVI as candeias queimaram um óleo vegetal bastante perfumado, o de copaíba. Depois reputado medicinal, queimá-lo passou a ser, para os colonizadores, um desperdício. Na explicação de Gabriel Soares, senhor de engenho na Bahia por dezessete anos, a copaíba "é árvore grande, cuja madeira não é muito dura, e tem a cor pardaça, e faz-se dela tabuado; a qual não dá fruto que se coma, mas um óleo santíssimo em virtudes, o qual é da cor e clareza de azeite sem sal, e antes de se saber de sua virtude servia de noite nas candeias. Para se tirar esse óleo das árvores, lhes dão um talho com um machado acima do pé, até que lhe chegam à veia [sic], e como lhe chegam corre este óleo em fio, e lança tanta quantidade cada árvore, que há algumas que dão duas botijas cheias, que tem cada uma quatro canadas (³)." (⁴)

Óleo de fígado de peixe-serra
Seguindo o procedimento de aproveitar o que estava à mão, o óleo de fígado de peixe-serra também serviu para iluminação, assim como para calafetar embarcações. Disse Gabriel Soares: "Aragoagoay é chamado pelos índios o peixe a que os portugueses chamam peixe-serra [...]. Este peixe [...] tem tamanhos fígados [sic], que se tomam muitos de cujos fígados se tiram trinta a quarenta canadas de azeite, que serve para a candeia e para [...] o breu para os barcos." (⁵)

Óleo de fígado de tubarão
Ainda de acordo com Gabriel Soares, "porque se não podem brear as naus sem se misturar com a resina graxa, na Bahia se faz muita de tubarões, lixa e outros peixes, com que se alumiam os engenhos e se breiam os barcos que há na terra [...]" (⁶).

Além desses, outros óleos foram utilizados, à medida que, movido pela necessidade, o conhecimento quanto aos recursos naturais que a terra tinha a oferecer se expandiu . A interação entre colonizadores e indígenas, quando pacífica (⁷), foi, nesse sentido, muito produtiva.

(1) A carne de baleia era dada aos escravos para alimentação; outras partes tinham grande variedade de uso, até mesmo na composição de argamassa para construção de muros.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 280.
(3) Uma canada corresponde a 1,4 litros.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 196.
(5) Ibid., p. 281.
(6) Ibid., p. 358.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

O ódio dos romanos à monarquia

Os romanos odiavam a monarquia. É um tanto difícil separar os fatos das lendas quando se trata do período da história romana conhecido como realeza (que vai da fundação lendária de Roma em 753 a.C., fazendo de Rômulo o primeiro rei, até a expulsão de Tarquínio, o Soberbo, último dos famosos "sete reis de Roma"), mas parece evidente que o ódio à realeza ter-se-ia originado com os desmandos do último rei. Cícero, político e escritor romano do Século I a.C., perguntou: "Tu não vês que a maldade e a soberba de Tarquínio fizeram com que o título de rei fosse odiado pelo povo?" (¹) Também disse, apontando aquela que, para ele, era a deficiência fundamental de uma monarquia: "Dentre tudo o que falta ao povo cujo governante é um rei, a primeira delas é a liberdade, a qual não consiste em ter um senhor justo, mas em não ter qualquer senhor." (²)
Ora, meus leitores, esse ódio dos romanos à realeza estava muito longe de ser apenas uma questão de palavras. Os desdobramentos práticos são de arrepiar os cabelos. Vejamos:
  • De acordo com Cícero (³), Espúrio Cássio, um político importante da República, foi acusado de buscar o favor do povo com vistas a fazer-se rei e, por isso, foi condenado à morte, com voto popular e aprovação de seu próprio pai, que se declarara convencido da culpa do filho (⁴);
  • O cônsul Lúcio Júnio Bruto, um dos líderes do movimento que afastou Tarquínio do poder em 509 a.C., fez executar seus dois filhos, porque os rapazes eram partidários do monarca, fato que levou Aneu Floro a escrever: "O pai mostrou publicamente que adotava o povo romano em lugar dos filhos"; (⁵)
  • Durante uma grande escassez de alimentos no Século V a.C., Espúrio Mélio, conforme relato de Tito Lívio (⁶), comprou trigo na Etrúria para distribuição gratuita entre a plebe, levantando suspeitas de que se quisesse fazer aclamar rei, mas por ordem do ditador escolhido para aquela ocasião extrema, foi executado, e sua casa, a título de exemplo, foi completamente arrasada;
  • Nas intrigas que se acumularam após o assassinato de Júlio César, Otávio, que pretendia suprimir a concorrência de Marco Antônio, não vacilou em acusá-lo de ter pretensões monárquicas, até porque não lhe faltava, para isso, argumento convincente, já que, segundo Aneu Floro, quando estava em companhia de Cleópatra, o triúnviro adotava a indumentária típica de um rei: "Levava cetro de ouro na mão, espada ao lado, vestia púrpura adornada com pedras preciosas e usava um diadema [...]" (⁷).
Suponho, a esta altura, que alguns de meus leitores já tenham franzido a testa, com um muito razoável questionamento: Se tal era o ódio à monarquia, como explicar que Roma tenha se tornado um império? Não foram monarcas os imperadores de Roma?
É necessário dizer, portanto, que muitos romanos dos dias do Império ficariam surpresos se soubessem que, séculos depois, seu governo seria rotulado de monárquico, segundo nosso ponto de vista, mas não de acordo com o deles. Para os romanos, aquele a quem chamamos imperador era apenas príncipe, ou seja, nada mais que o principal cidadão da República romana, a despeito do componente dinástico eventualmente introduzido. A conservação do senado e de outros cargos e instituições típicas da República foi fundamental para manter as aparências - ou a cegueira conveniente, se preferirem.

(1) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro I.
(2) Ibid., Livro II.
(3) Ibid.
(4) Foi jogado da Rocha Tarpeia em 485 a.C.
(5) FLORO, Aneu. Epitome rerum Romanarum.
(6) LÍVIO, Tito. Ab urbe condita libri.
(7) FLORO, Aneu. Op. citAs citações das obras de Cícero e Aneu Floro foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Como sertanistas de São Paulo descobriam o rumo de alguém no sertão

Era 1736. Paulistas já haviam encontrado ouro "nos Goyazes" (¹) e no "sertão do Cuiabá". Portanto, estavam ocupados povoar em a região, ao mesmo tempo em que reviravam a terra à cata do tão cobiçado metal. Quase não havia córrego que não fosse explorado, ainda que ouro, em profusão, nem sempre viesse. Nesse tempo, colonizadores de origem portuguesa andavam às turras com os vizinhos "castelhanos". Afinal, mesmo que ninguém soubesse exatamente por onde passava a "linha" - uma referência aos limites estipulados no Tratado de Tordesilhas - havia certa desconfiança de que os súditos de Portugal já vinham, há muito tempo, entrando em terras que, ao menos pelo acordo de 1494, deviam ser de Espanha. Deviam, mas...
Sendo essas as circunstâncias, Manoel Dias da Silva, à frente de um grupo armado, foi ao chamado "Sertão da Vacaria". Não achou os castelhanos, que, de acordo com a Nobiliarchia Paulistana, já haviam se recolhido às povoações em que residiam. Achou, porém, um monumento por eles deixado, atestando a posse da área para o monarca espanhol. Conta Pedro Taques de Almeida Paes Leme (²), autor da Nobiliarchia, que o dito marco era "um padrão de pedra lavrada, em forma de cruz, posta ao alto, a que servia de base outra pedra em figura triangular, de seis palmos de alto, com proporcionada grossura à altura do padrão; nele estavam abertas as letras do idioma castelhano, que diziam: "Viva el-rei de Castela, senhor dos domínios destas campanhas""
Se podemos crer no que escreveu Pedro Taques, Manoel Dias e sua gente trataram de pôr abaixo o monumento, substituindo-o por outro. Na impossibilidade de erguer um marco de pedra, foi usada a melhor madeira disponível: "Do madeiro mais grosso e menos corruptível mandou lavrar em quatro faces uma cruz (³), em que lhe gravou as letras no idioma português, que diziam: "Viva o muito alto e muito poderoso rei de Portugal D. João V, senhor dos domínios deste sertão da Vacaria"."
É difícil saber se as coisas aconteceram assim, como é também duvidoso se alguma vez el-rei tomou conhecimento de tão notável dedicação da parte de seus súditos. Contudo, foi no fim do reinado de D. João V que se costurou o Tratado de Madri (⁴), com a intenção de colocar termo às divergências em relação às fronteiras entre terras de Portugal e Espanha na América do Sul. 
Mais interessante, talvez, seja o registro do método usado por paulistas quando, em perseguição a quem quer que fosse, precisavam descobrir por onde andava o seu "alvo". Disso somos informados também por Pedro Taques, justamente ao narrar as aventuras de Manoel Dias. Lembrem-se, leitores, de que paulistas desse tempo não eram notáveis por conhecimentos acadêmicos de geografia; mapas, à exceção de garatujas feitas por sertanistas, eram quase inexistentes e, como é óbvio, não era possível consultar um GPS: "[...] até pela figura dos ranchos e cinzas do fogão conheciam os sertanistas, pouco mais ou menos, o tempo que tinha passado depois que naquele sítio estivera alguma tropa [...]."
Em suma, essa gente tinha o faro do sertão. Com quem tal habilidade fora aprendida? Com indígenas, certamente. Aliás, muitos paulistas desse tempo eram mamelucos. O lado trágico da questão é que esse mesmo conhecimento foi empregado, muitas vezes, com o objetivo de caçar e aprisionar ameríndios para escravização.

(1) Era essa a grafia na época.
(2) 1714 - 1777.
(3) Observe-se o uso que era feito do símbolo da cruz, tanto por colonizadores espanhóis como por portugueses.
(4) 1750.



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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Como o látex era usado para iluminação nos tempos coloniais

A exploração do látex, extraído da Hevea brasiliensis (seringueira, se preferirem) da região amazônica, proporcionou, em fins do Século XIX e início do Século XX, um período de prosperidade para o norte do Brasil que é, frequentemente, chamado surto ou ciclo da borracha (¹). 
A Hevea brasiliensis não é, contudo, a única árvore fornecedora de látex (²). Das explorações conduzidas por Félix de Azara (³) no Século XVIII ficaram registros que demonstram a importância do látex extraído em áreas de colonização espanhola na América do Sul:
"O mangaysy é uma árvore [...] cuja resina é bastante conhecida no mundo todo com o nome de goma elástica. [...] Neste país (⁴) só a vi ser empregada para fazer bolas com que os meninos brincam e para iluminação à noite no deserto (⁵)." (⁶)
É pouco provável que Azara falasse da Hevea brasiliensis, que, como já disse, é nativa da região amazônica, mas, havendo outras árvores que produzem látex, ainda que de qualidade inferior, não surpreende que crianças logo encontrassem aplicação para tão útil recurso natural. Como, porém, seria o látex usado na iluminação? Voltemos a Azara:
"[...] faz-se desta resina uma bola que é posta na água; observando-se o lado que flutua, apertam-na para fazer uma espécie de mecha à qual se põe fogo e, acesa, é colocada na água, onde queima a noite toda, até que se consome inteiramente." (⁷)
Distantes da Europa, colonizadores precisavam improvisar (muitas vezes) e investigar, entre a população nativa, materiais que suprissem a falta dos recursos a que estavam acostumados. O uso do látex para iluminação parece, assim, ser um exemplo interessante a comprovar tal fato (⁸). 

(1) Há divergências quanto à nomenclatura.
(2) Embora o látex dela extraído seja considerado da mais alta qualidade.
(3) Viveu entre 1742 e 1821. Ao liderar a Comissão Demarcadora de Limites da Espanha entre 1789 e 1801, teve a oportunidade de fazer inúmeras observações quanto às condições geográficas no Paraguai, Argentina e Uruguai, bem como sobre a fauna e a flora dessa região.
(4) Referia-se ao território atual do Paraguai.
(5) Deserto, aqui, significa uma área desabitada.
(6) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, pp. 80 e 81.
(7) Ibid., p. 81. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(8) Não foi o único meio de iluminação obtido mediante o uso de recursos naturais conhecidos pela população indígena da América do Sul.


terça-feira, 4 de dezembro de 2018

De que se ocupavam os barbeiros

Parece óbvio que barbeiros são profissionais especializados em aparar barba e cabelo, certo? Já houve tempo, porém, em que, no Brasil, barbeiros tinham, além dessas, outras atribuições. Mas, a título de curiosidade, vamos começar pela Roma Antiga, onde o hábito de fazer a barba foi introduzido muito depois da origem da cidade. Pelo menos, é o que diz Plínio, o Velho (¹), no Livro VII de Naturalis historia:
"De acordo com Varrão, os primeiros barbeiros que vieram a Roma foram trazidos da Sicília por Públio Titínio Mena no ano 454 da fundação da cidade (²); antes disso, os romanos jamais se barbeavam. [...]. O divino Augusto sempre manteve o hábito de se barbear." (³)
Passemos agora ao Brasil, onde, por muito tempo, a escassez de profissionais de saúde devidamente qualificados foi enorme, e, por essa razão, barbeiros tiveram uma gama de atribuições que não se restringiam ao corte de barba e cabelo. Vejam, leitores, este relato feito pelo militar alemão C. Schlichthorst (⁴), sobre a experiência de ter a barba devidamente aparada por um barbeiro português no Rio de Janeiro, a capital do Império:
"Não preciso recear a mão pesada dum barbeiro alemão. A aveludada e perfumada mão dum português de Portugal, como gostam de ser chamados os brasileiros vindos da Metrópole, ata-me ao pescoço imensa toalha guarnecida de rendas, ensaboa-me durante cinco minutos com água de flor de laranjeira e gasta dez para raspar minha barba com outras tantas navalhas, sem que eu sinta mais do que o leve roçar do aço e um pouquinho de tédio. Depois de empoar-me o rosto para amaciar a pele, o fígaro penteia meus cabelos e gasta muito tempo quanto pomada para dar-lhe uma forma elegante. E ainda não acabou! Oferece-se para arrancar-me este ou aquele dente, o que cortesmente não aceito. Então, lava-me o rosto e fricciona-me a nuca com a mesma água de flor, apresenta-me o espelho e diz com profunda mesura: - 'Vossa Excelência está preparado para fazer sua reverência à dama de seu coração'." (⁵)

Barbeiros ambulantes trabalhando no Rio de Janeiro na primeira metade
do Século XIX, de acordo com Debret (⁶)

Schlichthorst entrou, está claro, em uma barbearia algo sofisticada. Contudo, havia, nesse tempo, até barbeiros ambulantes nas ruas do Rio de Janeiro, e deles não seria possível exigir tantos cuidados. Suponho, porém, que os leitores devem ter ficado um tanto intrigados com a proposta feita pelo barbeiro, quanto à extração de dentes. Ora, não se espantem, era coisa comum no Século XIX. E não só: barbeiros também eram chamados para fazer sangrias, recomendadas principalmente quando alguém tinha febre. O avanço dos conhecimentos científicos desobrigou os barbeiros de tal prática, poupando, com isso, muitas vidas.


Barbeiros e sangradores estabelecidos no Rio de Janeiro em meados do Século XIX




Esta lista de barbeiros e sangradores estabelecidos na capital do Império foi publicada na edição de 1854 do Almanaque Laemmert (⁷). Observem-na atentamente e vejam que, além dos serviços tradicionais de um barbeiro, eram também oferecidas aplicações de ventosas e sanguessugas (hirudíneos).

(1) 23 - 79 d.C.
(2) 300 a.C. 
(3) Naturalis historia, Livro VII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Esteve no Brasil pouco depois da Independência, como oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros do Império.
(5) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, pp. 86 e 87.
(6) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, pp. 512 e 513.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Infanticídios na Roma Antiga

Um indicativo do grau de civilização de um povo é o modo como trata aqueles, dentre a população, que são mais frágeis ou têm alguma deficiência, de modo a prestar-lhes a assistência necessária, oferecendo oportunidades de educação e desenvolvimento pessoal. Mas saibam, leitores, que nem sempre foi assim. 
Façamos um breve passeio pela Antiguidade greco-romana, mas antes, preparem os nervos. Em Esparta, todos sabem, um bebê, tão logo nascia, era apresentado pelo pai à Gerúsia (¹). Se fosse julgado saudável, ficava com os pais, que deveriam cuidar dele até que tivesse sete anos.  A partir dessa idade, toda criança era entregue aos cuidados do Estado, que lhe ministrava uma educação verdadeiramente espartana (e não vai aqui qualquer redundância). Contudo, se o bebê fosse frágil ou apresentasse alguma deficiência, deveria ser imediatamente jogado no abismo de Taigeto. 
Busto de menino romano desconhecido (⁴)
Isso assusta? Passemos a Roma. A Lei das Doze Tábuas (²) era peremptória: "Um bebê severamente deformado deve ser morto de imediato". Notem, meus leitores, que, neste caso, não havia crime em tirar a vida de uma criança - conservar vivo um bebê reputado pouco saudável é que seria desobediência à lei romana. E, se isso parece coisa de tempos incultos, vamos ao Século I, quando Sêneca, filósofo estoico e um dos sujeitos mais instruídos de seu tempo (³), escreveu, justificando o proceder de seus concidadãos: "Matamos cães raivosos e touros que não conseguimos domar, degolamos ovelhas doentes para que sua enfermidade não se espalhe por todo o rebanho, asfixiamos recém-nascidos deformados e afogamos crianças fracas e defeituosas, não por ira, mas racionalmente, para apartar o que pode trazer doença àquilo que é saudável" (⁵). Percebam, leitores, que, nesta passagem, Sêneca teve ainda o cuidado (não intencional) de revelar, para o futuro, a informação relativa aos métodos de infanticídio que eram usuais em seus dias. Tudo racionalmente, como ele mesmo frisou.
É de congelar o sangue. Pergunto, apenas, como é que cronologicamente tão perto de nós, ideias semelhantes ainda encontraram terreno fértil para germinar. Digo isso, porém, sem a mínima convicção de que ideologias análogas tenham desaparecido por completo.

(1) Um conselho composto pelos dois reis e por vinte e oito anciãos cujo mandato era vitalício.
(2) Foram escritas em 450 a.C.; antes disso, as leis de Roma eram conservadas em segredo pelos pontífices (!!!), resultando, portanto, em inúmeros abusos dos patrícios contra os plebeus. As leis originais se perderam, de modo que apenas se sabe delas aquilo que foi citado em obras literárias da Antiguidade.
(3) Nunca é demais lembrar que foi professor de Nero.
(4) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 235. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) De ira. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Quilombolas capturados eram marcados a ferro quente e tinham uma orelha cortada

Tempos sombrios no Brasil Colonial, em que imperou este bárbaro costume: ao escravo fugitivo que se unisse a um quilombo e fosse capturado era feita a marca de um F com ferro quente, e, se reincidisse, teria uma orelha cortada. E não se imagine que tais práticas decorressem da crueldade pura e simples dos senhores, já que eram autorizadas por um alvará régio datado de 3 de março de 1741. Para que não fique dúvida, vou transcrevê-lo na íntegra:
"Eu el-Rei faço saber aos que este alvará virem, que sendo-me presentes os insultos, que no Brasil cometem os escravos fugidos, a que vulgarmente chamam calhambolas (¹), passando a fazer o excesso de se juntarem em quilombos; e sendo preciso acudir com remédios que evitem esta desordem, hei por bem que todos os negros, que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F, que para este efeito haverá nas câmaras (²); e se quando se for executar esta pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha, tudo por simples mandado do juiz de fora, ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia." (³)
É possível que alguns leitores concluam que estas ordens horripilantes não passavam de ameaça, cujo efeito seria dissuadir, mesmo os mais corajosos entre os escravos, da ideia de fuga para algum quilombo. Mas não. Aconteceu dez anos depois que entrara em vigor a ordem para marcar a ferro quente e cortar uma orelha de quilombolas capturados: "[...] desempenhou tanto o conceito que se formava do seu valor e disciplina da guerra contra esta canalha [sic], que se recolheu vitorioso, apresentando 3.900 pares de orelhas [sic!!!] dos negros, que destruiu em quilombos, sem mais prêmio que a honra de ser ocupado no real serviço [...]." Está na Nobiliarchia Paulistana (⁴), em referência a Bartolomeu Bueno do Prado. A intenção era, evidentemente, elogiar.

(1) O escrivão de Sua Majestade talvez quisesse dizer "quilombolas".
(2) Referência às Câmaras Municipais.
(3) Cf. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1868, pp. 70 e 71.
(4) Escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme.


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quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Se você fosse um viking

Vindos do Norte, os vikings varreram as cidades litorâneas da Europa entre c. 790 d.C. e c. 1066 (¹), incendiando, pilhando e espalhando o pânico entre a população. Já se nota, pela data, que os ataques começaram quando Carlos Magno (²) ainda vivia, mas ganharam intensidade depois de sua morte, em decorrência do enfraquecimento e fragmentação do império que governara (³).
Existe alguma controvérsia quanto à causa da expansão viking, mas poucos duvidam de que, entre elas, pode ser mencionada a insuficiência de terras para cultivo, aliada aos poucos meses favoráveis à agricultura em sua Escandinávia natal. Isto, porém, não explica por que as viagens seguidas de invasões não ocorreram antes.
Lâmina de um machado viking (⁴)
Tente imaginar, leitor, como seria sua vida se você fosse um viking. Para ajudar, vão aqui algumas informações:
  • Você provavelmente moraria em uma casa muito simples, que, para evitar a perda de calor, não teria janelas, mas apenas algumas frestas para a entrada e saída do ar, além de uma porta;
  • A lavoura e a criação de gado ocupariam grande parte do tempo ao ar livre durante os meses em que o frio não fosse muito intenso;
  • Você passaria os meses menos frios ocupado, também, em estocar alimentos e lenha para o inverno;
  • Devido às condições restritivas de prática da agricultura, a caça seria um recurso importante para suplementar a alimentação;
  • O alimento seria cozido em um fogão cavado no chão de sua casa, de modo que haveria muita fumaça no ambiente;
  • As condições climáticas na Escandinávia favoreceriam o uso de roupas quentes, com predomínio do uso de peles e lã, embora o emprego de linho, como complemento ao vestuário, não fosse desconhecido;
  • Para que roupas de lã fossem confeccionadas, seria preciso que alguém na casa (você ou outra pessoa de sua família) fosse hábil no uso do tear (será útil, portanto, esclarecer que, entre os vikings, tecer e costurar eram tarefas reservadas às mulheres);
  • Tudo aquilo de que precisasse e não fosse produzido por sua própria família poderia vir de um mercado ou feira em alguma das cidades vikings, nas quais artesãos ofereciam seus serviços e produtos aos interessados (⁵);
  • O ataque a povoações ao sul da Escandinávia seria uma fonte importante de riquezas e, se você fosse um viking do sexo masculino, teria muito interesse em participar de uma dessas expedições;
  • Se, no entanto, você fosse uma mulher, deveria, durante a ausência dos envolvidos nas expedições de invasão e comércio, cuidar não apenas dos afazeres rotineiros de manutenção da casa e da família, como também comandar as tarefas locais que, de hábito, eram feitas pelos homens (⁶).
Então, que lhe parece, leitor? Era divertido ser um viking? A realidade não soa exatamente como na fantasias populares, concorda?

(1) A derrota dos vikings na batalha de Stamford Bridge, em 25 de setembro de 1066, é tradicionalmente apontada como um marco na decadência de sua capacidade bélica; entretanto, a aceitação dessa data não descarta a ocorrência de ataques menores posteriormente.
(2) 742 - 814.
(3) O sucessor de Carlos Magno foi Luís, conhecido como "o Piedoso", cujos filhos, estando este ainda vivo, iniciaram uma disputa acirrada pelo poder. Mais tarde, a assinatura do Tratado de Verdun (843 d.C.) sacramentou a fragmentação do império que Carlos Magno tentara construir.
(4) ANDERSON, Joseph. Scotland in Pagan Times. Edinburgh: David Douglas, 1883, p. 97. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) Apesar de frequentemente associados a atitudes truculentas, os vikings eram ótimos comerciantes e tinham rotas para troca de mercadorias que alcançavam longas distâncias, indo muito além das terras que originalmente habitavam.
(6) Separadas das mulheres vikings por uma distância enorme tanto no tempo quanto no espaço, mulheres paulistas dos tempos coloniais viviam situação parecida quando os homens se juntavam às bandeiras que iam ao sertão para capturar indígenas e procurar metais preciosos. 


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terça-feira, 20 de novembro de 2018

Como indígenas obtinham sal

Gabriel Soares foi senhor de engenho na Bahia, e é razoável supor que tinha grande interesse na prosperidade de seu empreendimento. Porém, em oposição a muitos colonizadores, cujo único objetivo era enriquecer tão rápido quanto possível, deve ter dedicado muito tempo em aprender tudo o que podia sobre o Brasil: relevo, hidrografia, vegetação, fauna... Ao que parece, tinha verdadeira sede de conhecimento. Como informações em primeira mão vinham, não raro, da população ameríndia, travou contato com ela. Por isso, ao escrever o Tratado Descritivo do Brasil em 1587 teve muito a dizer, não somente sobre o território colonial, mas também sobre seus habitantes. Chega a ser surpreendente a quantidade de detalhes nas informações que, graças a seu livro, chegaram até nós. Comparando-as aos escritos de outros autores quinhentistas, como Anchieta e Pero de Magalhães Gândavo, é possível esboçar um panorama do Brasil na época, e, malgrado eventuais erros ou exagerada credulidade desses escritores, devemos muito a eles. Provenientes de culturas ágrafas, povos indígenas mencionados pelos autores coloniais não deixaram suas próprias informações escritas, para que pudéssemos estudar.
Há quem pense que todos os povos indígenas do Brasil desconheciam o uso de sal na alimentação. Ora, meus leitores, o testemunho de Gabriel Soares mostra que tal ideia não corresponde à realidade. Embora grupos que viviam nas florestas interiores de fato não empregassem sal no preparo de alimentos, alguns, especialmente os que viviam perto do litoral, sabiam como obtê-lo, de diferentes fontes e por diferentes processos. É o que veremos agora.

Sal para os indígenas de Cabo Frio


De acordo com Gabriel Soares, tudo o que os indígenas da região de Cabo Frio precisavam fazer para obter sal era esperar a ocasião certa a cada ano:
"Por esta baía entra a maré muito pela terra adentro, que é muito baixa, onde de 20 de janeiro até todo o fevereiro se coalha a água muito depressa, e sem haver marinhas tiram os índios o sal coalhado e duro, muito alvo, às mãos-cheias, de debaixo da água [...]." (¹)

Como os tapuias da Bahia salgavam os alimentos


Tapuias eram chamados os indígenas que não falavam tupi, e que, como regra geral, não viviam junto à faixa litorânea. Por essa razão, os tapuias do sertão da Bahia, segundo informação de Gabriel Soares, desenvolveram um método algo complexo para salgar os alimentos:
"Costumam estes tapuias, para fazerem sal, queimarem uma serra de salitre, que está entre eles, de onde tomam aquela cinza, e a terra queimada, lançam-na na água do rio em vasilhas, a qual logo fica salgada, e põem-na ao fogo onde a cozem [...] até que se coalha, e fica feito o sal em um pão, e com este temperam seus manjares [...]." (²)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 81.
(2) Ibid., p. 353.


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

A Lei das Doze Tábuas

Os plebeus de Roma que viveram antes de 450 a.C. tinham um sério problema: precisavam, como todo mundo, obedecer às leis, mas nem mesmo sabiam que leis eram essas. Isso acontecia porque o patriciado, a pretexto de pias intenções religiosas, mas tencionando conservar para si todo o poder na cidade, havia resolvido que as leis eram um segredo que devia ser guardado pelos pontífices. Assim, uma pessoa podia ser acusada e punida por um delito que sequer sabia ser crime. Tal situação provou-se insustentável, de modo que, finalmente, as leis foram compiladas (¹) e passaram a ser de conhecimento público. De acordo com Tito Lívio (²), foram escritas em dez tábuas, às quais, posteriormente, foram anexadas outras duas, por se verificar que faltavam algumas leis. O conjunto da obra recebeu o nome de Lei das Doze Tábuas (³), porque foi exatamente assim que as normas foram afixadas no Fórum Romano. 
Infelizmente, o texto original da Lei das Doze Tábuas foi perdido, e o que hoje sabemos dela vem das citações em outros documentos e obras de autores da Antiguidade. É o suficiente, porém, para que se tenha a certeza de que, perto dela, leis severas como as do Código de Hamurabi pareceriam um enunciado humanitário. Vejamos, então, algumas amostras:
  • Aquele que fizer ou cantar uma música para insultar alguém deverá ser espancado até que morra.
  • Os frutos de uma árvore que venham a cair na propriedade de um vizinho podem ser recolhidos pelo dono da árvore.
  • Mulheres, ainda que adultas, permanecerão sob tutela [do pater familias], com exceção das virgens vestais, que serão livres.
  • É passível de punição aquele que deixar seu gado pastar no terreno de um vizinho.
  • É proibido consagrar [a um templo / aos deuses] qualquer coisa sobre a qual haja dúvida quanto ao verdadeiro proprietário [...].
  • Quem puser fogo [intencionalmente] em uma construção ou em [um campo de] cereais nas proximidades de uma casa será preso, chicoteado e queimado até a morte, desde que fique provado que sua ação foi consciente; se, porém, fizer isso por acidente, deverá reparar o dano [de acordo com suas posses].
  • Juízes ou árbitros legais que receberem suborno para favorecer alguém serão sentenciados à morte.
  • Fica proibido executar quem quer que não tenha sido [formalmente] condenado.
  • Escravos detidos em flagrante por roubo serão açoitados e jogados da rocha [Tarpeia].
  • Qualquer pessoa que for chamada a testemunhar e mentir será jogada da rocha Tarpeia.

(1) Pelos decênviros, dez homens especialmente designados para isso. 
(2) Ab urbe condita libri. Outra fonte importante para os mesmos acontecimentos (ainda que posterior à obra de Tito Lívio) é Epitome rerum Romanarum, de Aneu Floro.
(3) Lex Duodecim Tabularum.


terça-feira, 13 de novembro de 2018

Leilão de escravos

Quando alguém queria comprar um ou mais escravos, podia ir ao estabelecimento de um vendedor de "escravos novos", ou seja, de escravizados que haviam chegado recentemente da África e iriam para as mãos de seu primeiro "senhor" em solo brasileiro. Era também possível comprar cativos de um particular que planejava vender alguns dos que tinha. Havia, ainda, a opção de comprar escravos em um leilão. Dentre outras razões, escravos eram leiloados quando se tratava de converter em dinheiro (para partilha entre herdeiros ou satisfação de dívidas) os bens deixados por alguém que havia morrido. Escravos eram seres humanos como nós, tinham sentimentos como vocês e eu temos. Não obstante, eram comprados, vendidos, leiloados. Pensem nisso, leitores.
Vamos adiante. Para que vocês tenham uma ideia de como funcionava um leilão de escravos, vejam estes anúncios publicados em jornal, ambos no ano de 1852:

"Pelo Juízo de Órfãos e cartório do escrivão Castro se faz público que acham-se em praça duas escravas de nomes Francisca e Catarina, pertencentes à herança do finado José Justiniano Vieira Falcão; hão de as mesmas se arrematarem na casa da polícia no dia 10 do corrente às 10 horas da manhã, cujas avaliações acham-se no cartório do dito escrivão, e as escravas em poder de Tomás Luís Álvares, testamenteiro do dito finado." (¹)

"Por ordem do Ilustríssimo Sr. Dr. José Antônio Vaz de Carvalhaes, juiz de órfãos desta cidade e seu termo, se faz público que no dia vinte e oito do corrente, nas casas de audiência deste Juízo, ao meio-dia se arrematarão os escravos Generosa e seu filho, pertencentes à herança da finada Esméria Maria, da Freguesia da Penha, e a escrava Felicidade, de 16 anos de idade, pertencente a dois herdeiros do finado Joaquim Nunes Ribeiro, da Freguesia de Itapecerica. São Paulo, 12 de agosto de 1852. - O escrivão, Manoel José Simões Guimarães." (²)

Percebam que, como regra, não era dada a mais ínfima relevância à opinião dos escravos quanto à mudança de senhor. Talvez pareça que os cativos, em razão dos contínuos maus-tratos a que eram submetidos, aceitassem passivamente a mudança de "dono". Mas nem sempre era assim. Sabemos de um incidente, por registro do pintor francês Auguste François Biard, ocorrido no Rio de Janeiro em 1858. Com ele, a palavra:
"Durante minha permanência no Rio venderam-se sete escravos que pertenciam a um senhor de bom coração; esses pobres diabos [sic], habituados a ser tratados com doçura, não se conformavam com a ideia de irem cair a outras mãos e, nesse propósito, revoltaram-se, entrincheiraram-se. Ofereceram desesperada resistência a uns sessenta soldados e muitos deles só foram dominados depois de gravemente feridos. Levaram-nos então para a Correção. [...]." (³)
Sendo pintor, Biard fez um esboço de um leilão de escravos que presenciou, também no Rio de Janeiro. Convertido em desenho por E. Riou, esse esboço foi publicado na edição francesa de 1862 de Deux Années au Brésil, e vocês podem vê-lo logo abaixo:

Leilão de escravos (⁴)

Não deixem de observar, leitores, que, em posição dominante no cenário, o leiloeiro é retratado com seu emblemático martelinho, enquanto à volta, em meio a uma variedade de objetos, um potencial comprador, sem muita cerimônia, examina os dentes de uma escrava. Como se sabe, esse mesmo procedimento era usual, na época, entre os compradores de animais de carga.

(1) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 57, 3 de julho de 1852, p. 4.
(2) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 68, 21 de agosto de 1852, p. 4.
(3) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 48.
(4) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 94.


quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O que é proletariado

O conceito de proletariado mais difundido atualmente é aquele proposto por Marx e Engels: "Por proletariado entende-se a classe dos modernos trabalhadores assalariados que, não tendo seus próprios meios de produção, são reduzidos a vender a força de trabalho para sobreviver" (¹).      
Contudo, o termo "proletariado" existe muito antes que o Manifesto Comunista viesse a público em 1848. Teria sido posto em uso político por Sérvio Túlio, o penúltimo dos sete reis de Roma, quando dividiu a população da cidade em centúrias. Os romanos muito ricos teriam maiores obrigações quanto ao sustento do Estado, mas também maiores direitos políticos. Os muito pobres, porém, não estavam completamente isentos de direitos, porque também tinham uma obrigação, e já verão o que era, leitores. 
Tem a palavra Marco Túlio Cícero, político, orador e escritor romano do Século I a.C.: "[...] àqueles que no censo demonstraram não ter outra posse além de suas pessoas, [Sérvio Túlio] chamou proletários, dos quais se esperava apenas que tivessem filhos, para assegurar a continuidade da cidade [de Roma]" (²). Assim, tudo se explica: a procriação por parte dos proletários, gerando uma descendência (³) que se desejava tão numerosa quanto possível, foi incentivada como um dever patriótico, por ser vital para compor o exército, garantindo a Roma o domínio do mundo à sua volta (⁴). 

(1) MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. Manifest der Kommunistischen Partei, 1848. 
(2) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro Segundo.
(3) Prole!
(4) Os trechos citados de Manifest der Kommunistischen Partei e De re publica foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Providências do padre Antônio Vieira para agilizar a catequese de indígenas no Maranhão

Vieira é conhecido dos jovens estudantes pelas aulas de Literatura, nas quais se estudam seus famosos Sermões. Mas foi também um missionário dedicado e, a seu modo, um protetor dos indígenas, de acordo com aquilo que, em seu tempo, se pensava ser o melhor para eles.
Reconhecendo que havia poucos missionários para a aventura da catequese em um território gigantesco, o padre Antônio Vieira adotou algumas medidas de ordem prática, cujo propósito era agilizar a doutrinação nas aldeias formadas por índios já catequizados e/ou catecúmenos. A ideia era simples: contar com a ajuda dos próprios ameríndios para a instrução religiosa, sempre que não fosse possível ter a presença de um jesuíta. Então, de acordo com a História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará (¹), escrita pelo padre José de Moraes:
  • Todas as aldeias indígenas controladas pela Companhia de Jesus deviam ter livros para registro de batismos, casamentos e óbitos;
  • Em cada aldeia deveriam ser selecionados dois rapazes, que receberiam instrução que os capacitasse a, diariamente, dirigir orações e doutrina na igreja;
  • Alguns índios deveriam receber preparo para que, na ausência dos padres, pudessem batizar catecúmenos e prestar assistência aos que estivessem para morrer.
Observando, de passagem, o quanto Vieira se mostrava pragmático na adoção dessas medidas, cumpre explicar que, na primeira delas, atendendo a uma determinação do Concílio de Trento, o missionário pretendia assegurar que ninguém, em cada aldeia, deixasse, a seu tempo, de receber o batismo, além de, com o registro dos casamentos, impedir a poligamia e as uniões consanguíneas vetadas pela Igreja - em tal contexto, tarefas bastante difíceis. 
Digam-me, leitores, estão curiosos para saber qual foi o resultado dessa estratégia? Nas palavras do padre José de Moraes, "exercitaram eles [os missionários] a ordem com tão grande zelo e atividade, que dentro em breve tempo não faltaram mestres para os homens e já sobejavam mestras para as mulheres, que de ordinário são as mais hábeis em aprender, e de melhor retentiva para ensinar" (²). Ao que parece, o plano de Vieira funcionou.

(1) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus. O tom bastante encomiástico em alguns trechos da obra pode, assim, ser facilmente explicado.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, pp. 391 e 392.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Deuses da Mesopotâmia

Povos de diferentes etnias, falando línguas distintas, viveram na Mesopotâmia na Antiguidade. Apesar disso, compartilhavam o culto a quase todos os deuses. É verdade que, às vezes, um mesmo deus ou deusa era venerado com nomes diferentes, mas, a despeito da variação na nomenclatura, sabemos que se tratava da mesma divindade porque a mitologia associada era muito semelhante. Além disso, não eram poucos os deuses vinculados à guerra, chamados "deus-sol", "deus-lua" (ou "deusa-lua") ou relacionados aos planetas, à fertilidade do solo, ao amor, à procriação, aos fenômenos da natureza. Em se tratando do culto aos deuses, povos da Antiguidade não tinham por hábito economizar nos encômios. Eram títulos e mais títulos, de modo que, às vezes, fica até difícil identificar a que deus, exatamente, se referiam.
Por que isso acontecia?
A antiga Mesopotâmia, em tempos nos quais o nomadismo era bastante comum, foi área de trânsito para muitos povos. Conviviam um pouco, pacificamente ou não, assimilavam algo da cultura alheia e seguiam em frente. O passar do tempo amalgamou elementos às vezes muito diversos, de modo que, com a sedentarização, as diferentes cidades, em se tratando de religião, tiveram muito em comum, ainda que, como regra, cada uma venerasse um deus principal, sem descartar o culto secundário a outras divindades. Portanto, a lista de deuses e deusas que veremos a seguir inclui, sem ser exaustiva, apenas as principais divindades cultuadas por assírios e babilônios (¹). Lembrem-se, leitores, de que havia uma infinidade de outros deuses e deusas. Era politeísmo às últimas consequências.


Relevo assírio retratando uma procissão em homenagem aos deuses (²)

Divindades cultuadas por assírios, babilônios e outros povos da Mesopotâmia


Marduk - Era o deus principal da Babilônia, retratado, muitas vezes, em companhia de quatro cães, embora também representado ao lado de um dragão dotado de dois chifres.  Era relacionado ao nascer do Sol. Sua companheira era Sarpanitu, vinculada ao nascer da Lua e, às vezes, a Vênus.
Ashur - Era cultuado exclusivamente pelos assírios, sendo, portanto, seu deus nacional e protetor da cidade de Ashur, que foi, durante muito tempo, a capital assíria. Representado frequentemente por um círculo dotado de asas, estava relacionado ao sol durante um eclipse.
Nusku - Guerreiro notável, esse deus era particularmente venerado pelos reis assírios. Era também considerado mensageiro de Marduk.
Nebu (ou Nebo, ou ainda Nabu) - Filho de Marduk, era cultuado em Borsipa. Tido como o deus-profeta, patrocinador das ciências, mensageiro dos deuses. Os escribas tinham em Nabu o seu patrono. Sua companheira chamava-se Tasmetu.  
Shamash - Seguramente uma das mais antigas divindades da Mesopotâmia, era o deus-sol (³). Por sua capacidade de iluminar todas as coisas, estava identificado como juiz tanto do céu como da terra. Ele e Aa, sua companheira, eram particularmente venerados em Larsa e Sippar. 
Ishtar - Deusa da criação, também venerada como Nina e, por isso, particularmente relacionada à cidade de Nínive, uma das capitais assírias. Um aspecto curioso de seu culto era a prática das oferendas de peixes. 
Amurru - Foi muito popular nos dias de Hamurabi. Era considerado o deus das montanhas.  
Sin Nannar ou Narnar - deus-lua; cujo principal centro de culto estava em Uru (⁴). Sua companheira era Nin-Uruwa, ou seja, a senhora de Uru. 
Rammanu (ou Rimmon, ou ainda Hadad) - Conhecido como o trovejador, era o deus das tempestades (⁵), vendavais e outros fenômenos correlatos. Sua companheira era Shala. 
Tamuz - Um dos deuses mais antigos e de culto mais amplo, a ponto de exceder os limites da Mesopotâmia. Era retratado como um pastor cuidando de seu rebanho. Sua companheira era Ishtar, deusa do amor e da guerra, cultuada principalmente em Erech e Nínive. Tamuz morria e ressurgia anualmente, sendo, por isso, identificado com a sucessão das estações do ano. 
Nin-Girsu (ou Ninurta) - Era cultuado em Lagash.  Às vezes Identificado com Tamuz, por ser, como ele, deus da agricultura. Bau, a deusa-mãe de Lagash, era sua companheira. 
Nergal - Era o deus do mundo dos mortos, do fogo, da guerra e causador das epidemias. Promovia destruição e, por isso, era invocado quando se esperava que agisse contra os inimigos na guerra. Seu principal centro de culto estava em Kutha, perto de Babilônia. Tinha Eresh-Kigal por companheira.

Relevo assírio em que o rei vitorioso é mostrado sob um círculo alado,
símbolo do deus Ashur (⁶)


A consagração de uma estátua de Nebu na Assíria


Agora, meus leitores, veremos um desses documentos que, escritos em argila, sobreviveram para que soubéssemos como era a consagração da estátua de um deus na antiga Mesopotâmia. 
Foi em 798 a.C.: sob as ordens de um governador provincial assírio, uma estátua de Nebu foi edificada. Não devia ser um monumento qualquer, tendo em vista a grandiloquência de sua consagração, à qual não faltou nem mesmo um recadinho para os que viveriam muito tempo depois:
"Para Nebu, o protetor exaltado [...] que tudo vê, sem limites, o grande, o poderoso [...], cuja autoridade é suprema, mestre das artes, que vê tudo o que acontece no céu e na terra, que tudo sabe e tudo ouve, portador do estilo (⁷) de escriba [...], gracioso e majestoso, capaz de todo conhecimento e adivinhação, amado de Bel, senhor de senhores, cujo poder não tem rival, sem cujo conselho nada se faz no céu [...], ao grande senhor [...], para o bem de Ramman-nirari o rei da Assíria, seu senhor, e para o bem de Sammuramat, senhora do palácio e sua companheira, Bel-tarsi-iluma, governador das províncias de Kalach, Chamedi, Sirgana, Temeni e Yaluna, para que sua vida seja preservada e seus dias prolongados [...], para que haja paz em sua casa e em sua descendência e para que seja livre de toda enfermidade [esta estátua] foi feita e dedicada. Homem do futuro! Confie em Nebu, não confie em nenhum outro deus!"
Quem vivia na Antiguidade quase não tinha controle sobre as doenças, já que as verdadeiras causas das diferentes moléstias eram desconhecidas. A expectativa de vida, por consequência, era baixa e, na busca por cura e sobrevivência, era usual a invocação de divindades. É nesse contexto que se insere a dedicação da estátua de Nebu, homenageado, dessa vez, por assírios, embora fosse, também, estimadíssimo entre os babilônios. É bastante provável que proclamações semelhantes fossem realizadas onde quer que a consagração de um novo templo ou estátua ocorresse entre os demais mesopotâmios.  

(1) A ideia é apenas colocar um pouco de ordem no vastíssimo panteão da Mesopotâmia, venerado por sumérios, acádios, babilônios, assírios, etc.
(2) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Ou um deles...
(4) Também conhecida como Ur.
(5) Quase toda mitologia tem um.
(6) LAYARD, Austen Henry. Op. cit. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) Pequeno bastão destinado à gravação da escrita cuneiforme em placas de argila.


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