quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Doces do Brasil, dos tempos coloniais aos dias do Império

Bom dia, leitores, o texto de hoje é dedicado às formigas humanas.
Já ouviram a expressão: "doces como os de antigamente"? Ao que parece, a ideia está ligada à noção de fartura das antigas cozinhas de fazenda, em que, sobre a chama de um fogão a lenha, doces eram preparados em tachos enormes: cocadas, paçocas, doce de leite, de batata-doce, de frutas variadas...
Contudo, uma cena dessas somente foi possível com a expansão da indústria açucareira. Antes disso, já havia açúcar, mas produzido em pequenas quantidades e, por isso mesmo, caríssimo. Assim, ele era visto como uma especiaria, algo raro e dispendioso, ao alcance apenas dos mais endinheirados, e usado com parcimônia, como era o caso do emprego farmacêutico, para tornar xaropes e outros terrores supostamente medicinais um pouco mais suportáveis ao paladar, em especial no caso das crianças. E, voltando ainda no tempo, antes do açúcar, era o mel que se usava para adoçar o que quer que fosse. As limitações ficam, portanto, evidentes, ainda que certas geleias pudessem ser feitas sem adição de mais adoçantes que os existentes nas próprias frutas. 

De onde vinha açúcar para o Reino antes que a indústria açucareira fosse estabelecida no Brasil


Antes que a produção açucareira se tornasse um empreendimento importante no Brasil, já era possível obter açúcar em Portugal, vindo de outras partes. Foi o que disse frei José Mariano da Conceição Veloso em O Fazendeiro do Brasil, citando que Vasco da Gama encontrara comércio expressivo desse produto em Calicute, assim como Cabral, em 1500, ao estar em Cambaia. Havia ainda comércio de açúcar em outras áreas:
"Duarte Barbosa diz que pelos anos de 1515 [...] nas costas do Malabar se fazia um rico comércio de açúcar em pó (¹), porque o não sabiam fazer em pães. O mesmo refere que em Bengala se fazia açúcar branco e bom, mas que, não sabendo reduzi-lo em pães, se metia em sacos de pano cobertos de couro [...]; conclui, finalmente, dizendo, que também se faziam conservas de limão, de gengibre e de outros frutos [sic] do país, que eram excelentes confeitos com açúcar." (²)

Doces e bolos no Brasil Colonial


Produzir açúcar no Brasil mostrou-se muito conveniente, por dar à Coroa um lucro interessante, além do controle sobre as áreas produtoras. Em consequência da disponibilidade do produto, desenvolveu-se aos poucos uma rica culinária. Com base em testemunhos de autores da época, falemos dos doces no Brasil Colonial, quando o açúcar, ainda que grosseiro, não costumava faltar, e era até usado como moeda, na ausência de meio circulante convencional.
Na Informação da Província do Brasil, atribuída a Anchieta, com data de 1585, encontra-se uma observação relativa a doces em conserva, que eram petiscos destinados aos doentes (sim!):
"Para os enfermos não faltam regalos que se fazem de açúcar, que há muito, e assim fazem laranjada, cidrada, aboboradas e talos de alface [sic...] e outras conservas. Em Piratininga se faz muita carne de marmelo [...] e açúcar rosado alexandrino." (³)
Ora, meus leitores, talvez as crianças da época tivessem nisso um pretexto nada desprezível para simular alguma doença!... Notaram que Anchieta citou as marmeladas de São Paulo? Elas foram famosas nos dias coloniais, e a produção era tão grande, que não somente atendia à pequena São Paulo de Piratininga e adjacências, como era exportada até mesmo para regiões distantes do Brasil.
Gabriel Soares, um contemporâneo de Anchieta, referiu em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 o uso do milho, do qual os colonizadores faziam bolos: "Há outra casta de milho", disse ele, "que sempre é mole, do qual fazem os portugueses muito bom pão e bolos com ovos e açúcar" (⁴). Agradeceríamos se houvesse detalhado a receita que andava em uso, mas Gabriel Soares foi senhor de engenho, não cozinheiro. No entanto, também informou que em seu tempo se faziam ótimos doces de caju, fruta nativa: "Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave, e para se comerem logo cozidos no açúcar, cobertos de canela, não têm preço" (⁵). Castanhas de caju também estavam em uso, substituindo as amêndoas, para colonizadores já saudosos do Reino: "Destas castanhas fazem as mulheres todas as conservas doces que costumam fazer com as amêndoas, o que tem graça na suavidade do sabor" (⁶).
Nem mesmo a mandioca, tão conhecida e cultivada entre povos indígenas, deixou de entrar na pauta de doces, conforme explicou o padre Simão de Vasconcelos, jesuíta que viveu no Século XVII: "Também se fazem dela [mandioca], bolos doces com manteiga e açúcar" (⁷). Outro que mereceria aplausos se houvesse detalhado a receita, não é?

Bolos, sonhos e tachos de cocada no tempo do Império


Já nos dias do Império, alguns dos mais famosos "doces de fazenda" ou "doces da roça" eram conhecidos e, até certo ponto, difundidos, respeitadas as variações regionais. Lacerda Werneck, falando do cará, explicou que seu uso era corrente, e não só para se fazer pão:
"Esta batata [sic] serve para se misturar com o cozido. Também se fazem dela ótimos bolos e sonhos, bem como, juntando-se em cada três libras de farinha de trigo, duas de sua massa, dá em resultado um excelente pão, que se torna balofo e de sabor agradável." (⁸)
Mas é da literatura que vêm algumas das referências mais saborosas a doces. Veremos apenas duas, para concluir. Machado de Assis, primeiro, com uma pérfida alusão em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. [...]"
Não tenham dúvidas, leitores, Machado estava simplesmente retratando o quotidiano da escravidão, sem disfarces açucarados (no mau sentido). Quanto a José de Alencar, em O tronco do Ipê, também se referiu a um esplendoroso tacho de cocada, igualmente no contexto do trabalho escravo:
"- Já tomou ponto, nhanhã! Agora, se quer mais apertado!...
Estas palavras partiam da gorducha Florência, a doceira famosa da casa. Incumbida de um tacho de cocada, que fervia na cozinha, ela assomara à porta da copa, com a colher de pau em uma mão e o pires cheio d'água na outra."
Do trabalho de mãos livres e escravas, nasceram algumas glórias da culinária do Brasil, doces e, ao mesmo tempo amargas, pelas circunstâncias de exploração da força de trabalho. Não nos esqueçamos disso.

(1) Frei Mariano da Conceição Veloso talvez ficasse surpreso se pudesse saber que hoje o açúcar, como regra, é comercializado em pó.
(2) VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil  Tomo I, Parte II. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1799, p. 10.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 428.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 173.
(5) Ibid., p. 178.
(6) Ibid.
(7) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 49.
(8) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 107 e 108.


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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Uma anta dentro de casa

Não foram muitos os cientistas e artistas (pintores e/ou desenhistas) que viajaram pela América do Sul nos Séculos XVI, XVII e XVIII, um fato que se explica pela dificuldade e risco que corriam os suficientemente atrevidos que ousavam entrar em terras ainda desconhecidas, para investigar e registrar fauna e flora muito diferentes das que conheciam no respectivo lugar de origem. As compensações, reconheçamos, eram poucas, diante da possibilidade de alguma doença e morte longe de casa, sem falar nos confrontos eventuais com os ameríndios que, cientes já das intenções pouco honestas de muitos colonizadores, nem sempre podiam diferenciar, à primeira vista, um pesquisador de um caçador de escravos (¹).
No Século XIX, contudo, o número de viajantes estrangeiros dispostos a percorrer a América do Sul aumentou bastante. No caso do Brasil, especificamente, deve-se notar que o governo joanino incentivou o trabalho, tanto dos que pesquisavam a natureza, como daqueles que registravam-na com lápis, tinta, e outros materiais. As obras que deixaram são uma fonte preciosa de informações, até porque, ocupados com animais e plantas, muitas vezes tratavam, também, com palavras e imagens, da vida social no Brasil da época. Não obstante, eram alvo da curiosidade popular, causando certa estranheza por sua mania de colecionar borboletas e outros insetos, reunir folhas e flores, além, é claro, de dissecar e empalhar uma variedade de animais. Quase todos eram vistos escrevendo muito, e surpreendiam, por esse hábito, a população local, da qual a maioria não tinha muita intimidade com o alfabeto. 

Azara e a tentativa de domesticar as antas


Em fins do Século XVIII um enviado da Espanha chegou à América do Sul para liderar a Comissão de Limites que, juntamente com representantes de Portugal, deveria fazer a demarcação de fronteiras. Ora, esse espanhol, mesmo não sendo por formação um cientista, deixou registros significativos, em razão das viagens e pesquisas que realizou entre 1789 e 1801, principalmente na Argentina e no Paraguai. Seu nome? Félix de Azara. Como parte da fauna por ele estudada nesses países é compartilhada com o Brasil, seus trabalhos também são significativos para este lado da fronteira. Deve-se notar, contudo, que foi pensando em leitores europeus que Azara escreveu, tanto para oferecer informação confiável como para corrigir erros grosseiros sobre a fauna e a flora do Novo Mundo que corriam até nos círculos intelectuais de seu tempo, embora seus próprios escritos não estivessem livres de equívocos. Tanto quanto lhe era possível, procurava observar as coisas por si mesmo, e então escrever, evitando fiar-se apenas de relatos, e nisso consiste uma de suas maiores virtudes.
Falando do filhote da anta (Tapirus terrestris), animal que no Brasil todo mundo conhece, afirmou: "Capturado jovem, se domestica desde o primeiro dia: anda por toda a casa quase sem sair, até depois de adulto [...], e quando se deseja retirá-lo de um lugar contra sua vontade, é quase preciso arrastá-lo." (²) 
Teria Félix de Azara hospedado alguma anta ou filhote de anta? Iria até esse ponto sua curiosidade científica? Nos anos que permaneceu na América do Sul enfrentou, em suas muitas viagens, dificuldades ocasionais em encontrar moradia ou hospedagem adequada, e não é impossível que, observando como viviam os ameríndios, tenha, algumas vezes, concordado em compartilhar a residência com alguns dos animais que desejava estudar. 

Anta adulta

(1) Isso quando uma coisa e outra não se encontravam na mesma pessoa.
(2) AZARA, Félix de. Apuntamientos Para la Historia Natural de los Quadrúpedos del Paraguay y Rio de La Plata, Vol. 1. Madrid: Imprenta de la Viuda de Ibarra, 1849, p. 1.  O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Espartanos teriam provocado a "desaparição" de muitos hilotas

Narrado por Tucídides no Livro IV de sua História da Guerra do Peloponeso, há um episódio que bem pode ser rotulado como verdadeira síntese da perfídia: espartanos, que viviam com medo de uma revolta dos hilotas, a quem dominavam brutalmente, mas de quem dependiam para todo o trabalho na lavoura, base de sua economia, resolveram convocar, dentre eles, todos os indivíduos que se julgavam dignos de respeito porque, indo à guerra com seus senhores esparciatas, haviam se notabilizado pela coragem e pelos bons serviços prestados a Esparta. Subentendia-se que, em virtude desses méritos, os hilotas que comparecessem receberiam, como prêmio, a liberdade. Sim, os que vieram, uns dois mil homens, ao todo, depois de coroados, foram em procissão aos templos da cidade, exatamente como homens livres fariam. Mas não... A ideia era simplesmente testar quem tinha consciência do próprio valor, calculando-se que gente assim seria perfeita para a liderança de uma rebelião. Os supostos libertos desapareceram e nunca mais foram vistos. 
Como julgar esta história? Intriga, apenas? Ou horrorosa verdade?
De um lado, foi contada por Tucídides, que, mesmo buscando ser imparcial, era ateniense. De outro, não é difícil admitir que tenha mesmo acontecido, se apenas considerarmos que, sendo capazes de lançar os próprios filhos recém-nascidos em um abismo, caso tivessem algum defeito, não seria demais para os espartanos matar, às ocultas, os servos hilotas, se entendessem que, sendo bons demais como soldados, poderiam liderar um motim de sua gente para que, depois de aniquilados os esparciatas opressores, pudessem, afinal, desfrutar completa liberdade. 
Não há provas de que isso tenha mesmo ocorrido. Não há, igualmente, comprovação de que não tenha acontecido. É inegável, todavia, que combina muito bem com o que se sabe sobre Esparta e o modo como era governada. Decidam vocês, meus leitores, se, nesse ponto, desejam crer ou não em Tucídides.


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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Corujas

Corujas-buraqueiras em vigilância alternada

Enquanto escrevo, ali no gramado um par de corujas-buraqueiras (Athene cunicularia) vigia a entrada do ninho. Por que será que em algumas culturas as corujas são consideradas mensageiras de acontecimentos infelizes? Talvez a explicação esteja no grito estridente que emitem. À noite, quando tudo o mais está em silêncio, não é mesmo música das mais agradáveis.
Corujinha, artesanato
karajá
É verdade que entre os antigos gregos o mocho era símbolo de sabedoria, em virtude de sua associação com a deusa Palas Atena. Já entre indígenas do Brasil, o conceito sobre as estrigiformes era (ou é) um tanto variável. Vejam, leitores, o que se encontra no Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré, datado de 1885, sem menção a uma etnia indígena específica, mas com certeza fazendo referência a quem vivia no Norte do Brasil:
"A coruja passa por agoureira; grasnando junto à taba (casa), é sinal de que vai morrer pessoa da família. Se, porém, passam patos-do-mato por cima da casa é aviso de próxima visita de pessoas de consideração" (*). Que dizer, no entanto, da bela corujinha aí ao lado, um brinquedo simpático, em artesanato karajá contemporâneo?
Quanto a vocês que leem este texto, que ideia têm sobre as corujas? Eu, particularmente, até gosto delas, e, por isso, resolvi homenageá-las aqui com algumas fotos, por conta do "& Outras Histórias" deste blog. Divirtam-se!

Corujas-buraqueiras em árvore

Dona coruja e seus filhotes

(*) _____. Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré. Rio de Janeiro: Soares e Niemeyer, 1885, p. 128.


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