quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Uma anta dentro de casa

Não foram muitos os cientistas e artistas (pintores e/ou desenhistas) que viajaram pela América do Sul nos Séculos XVI, XVII e XVIII, um fato que se explica pela dificuldade e risco que corriam os suficientemente atrevidos que ousavam entrar em terras ainda desconhecidas, para investigar e registrar fauna e flora muito diferentes das que conheciam no respectivo lugar de origem. As compensações, reconheçamos, eram poucas, diante da possibilidade de alguma doença e morte longe de casa, sem falar nos confrontos eventuais com os ameríndios que, cientes já das intenções pouco honestas de muitos colonizadores, nem sempre podiam diferenciar, à primeira vista, um pesquisador de um caçador de escravos (¹).
No Século XIX, contudo, o número de viajantes estrangeiros dispostos a percorrer a América do Sul aumentou bastante. No caso do Brasil, especificamente, deve-se notar que o governo joanino incentivou o trabalho, tanto dos que pesquisavam a natureza, como daqueles que registravam-na com lápis, tinta, e outros materiais. As obras que deixaram são uma fonte preciosa de informações, até porque, ocupados com animais e plantas, muitas vezes tratavam, também, com palavras e imagens, da vida social no Brasil da época. Não obstante, eram alvo da curiosidade popular, causando certa estranheza por sua mania de colecionar borboletas e outros insetos, reunir folhas e flores, além, é claro, de dissecar e empalhar uma variedade de animais. Quase todos eram vistos escrevendo muito, e surpreendiam, por esse hábito, a população local, da qual a maioria não tinha muita intimidade com o alfabeto. 

Azara e a tentativa de domesticar as antas


Em fins do Século XVIII um enviado da Espanha chegou à América do Sul para liderar a Comissão de Limites que, juntamente com representantes de Portugal, deveria fazer a demarcação de fronteiras. Ora, esse espanhol, mesmo não sendo por formação um cientista, deixou registros significativos, em razão das viagens e pesquisas que realizou entre 1789 e 1801, principalmente na Argentina e no Paraguai. Seu nome? Félix de Azara. Como parte da fauna por ele estudada nesses países é compartilhada com o Brasil, seus trabalhos também são significativos para este lado da fronteira. Deve-se notar, contudo, que foi pensando em leitores europeus que Azara escreveu, tanto para oferecer informação confiável como para corrigir erros grosseiros sobre a fauna e a flora do Novo Mundo que corriam até nos círculos intelectuais de seu tempo, embora seus próprios escritos não estivessem livres de equívocos. Tanto quanto lhe era possível, procurava observar as coisas por si mesmo, e então escrever, evitando fiar-se apenas de relatos, e nisso consiste uma de suas maiores virtudes.
Falando do filhote da anta (Tapirus terrestris), animal que no Brasil todo mundo conhece, afirmou: "Capturado jovem, se domestica desde o primeiro dia: anda por toda a casa quase sem sair, até depois de adulto [...], e quando se deseja retirá-lo de um lugar contra sua vontade, é quase preciso arrastá-lo." (²) 
Teria Félix de Azara hospedado alguma anta ou filhote de anta? Iria até esse ponto sua curiosidade científica? Nos anos que permaneceu na América do Sul enfrentou, em suas muitas viagens, dificuldades ocasionais em encontrar moradia ou hospedagem adequada, e não é impossível que, observando como viviam os ameríndios, tenha, algumas vezes, concordado em compartilhar a residência com alguns dos animais que desejava estudar. 

Anta adulta

(1) Isso quando uma coisa e outra não se encontravam na mesma pessoa.
(2) AZARA, Félix de. Apuntamientos Para la Historia Natural de los Quadrúpedos del Paraguay y Rio de La Plata, Vol. 1. Madrid: Imprenta de la Viuda de Ibarra, 1849, p. 1.  O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

2 comentários:

  1. Registro muito interessante. A anta como um animal doméstico no século XIX é algo bem curioso. Afinal, o processo de inserção de animais como cães e gatos no ambiente interno da casa, em residências urbanas e principalmente rurais, parece uma relação ainda em construção no Brasil do século XIX. Inserir outros, como a anta, me parece algo não tão comum. Ou será que era?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Durante os séculos de colonização não foram incomuns as tentativas de "domesticação" de alguns animais para fins alimentares (ok, acho isso horrível, sou vegetariana). Não é difícil perceber que, em linhas gerais, quase todas as tentativas resultaram em fracasso, ao menos em grande escala. Sorte dos animais, portanto.

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.