segunda-feira, 18 de abril de 2016

Os sapatos de couro usados pelos colonizadores do Brasil

Sapatos, armas defensivas e móveis eram feitos com o couro de animais de caça e de criação


Os primeiros colonizadores que vieram ao Brasil precisaram ativar o senso de criatividade. Por quê? Ora, simplesmente por uma razão de sobrevivência. Era necessário encontrar nas terras da América diversos materiais que pudessem substituir coisas a cujo uso estavam acostumados. É verdade que, tanto quanto possível, traziam do Reino objetos que acreditavam imprescindíveis. Além disso, sempre que tinham bom relacionamento com indígenas, aprendiam com eles algumas técnicas que se provavam utilíssimas. Mas, em muitos casos, só a experiência, obtida no contato diário com a nova terra em que tinham de viver, é que permitiu descobrir modos de uso para aquilo que estava à mão. Afinal, para quem tivera a coragem de atravessar o Atlântico, fosse pela perspectiva de enriquecimento, pela sede de aventura ou por idealismo missionário (¹), não fazia o menor sentido ficar choramingando pela falta de confortos que haviam ficado para trás.
Assim foi, por exemplo, em relação aos sapatos. Quando os calçados trazidos do Reino se gastavam, era difícil conseguir outros semelhantes. Ao menos no princípio da colonização os navios procedentes de Portugal a cada ano eram poucos, e, mesmo mais tarde, quando o comércio de açúcar se intensificou, os calçados "do Reino" eram caros, já que não vinham em grandes quantidades - todo mundo sabe o que é que acontece quando há demanda maior que a oferta de uma dada mercadoria. A solução era, por tentativa e erro, experimentar o que havia na terra e que podia garantir a obtenção de couros apropriados para o trabalho dos sapateiros (²). Ainda no Século XVI, Gabriel Soares explicou que couros de veado eram excelentes para botas:
"Criam-se nos matos desta Bahia muitos veados, a que os índios chamam suaçu, que são ruivos e tamanhos como cabras, os quais não têm cornos nem sebo, como os de Espanha. Correm muito, as fêmeas parem só uma criança. Tomam-nos em armadilhas e com cães; cuja carne é sobre o duro, mas saborosa; as peles são muito boas para botas, as quais se curtem com casca de mangues, e fazem-se mais brandas que as dos veados de Espanha." (³) 
Mesmo citando o fato para ilustrar o pouco caso que o jesuíta Belchior de Pontes (1644 - 1719) fazia dos luxos geralmente apreciados em seu tempo, o também jesuíta Manuel da Fonseca escreveu, em relação aos sapatos usados por seu biografado:
"Os seus pés, ou nunca, ou raras vezes calçavam sapatos de cordovão, contentando-se com uns de veado tão mal alinhados, que os conservava com a mesma cor, com que tinham saído do curtume." (⁴)
De couro de anta os colonizadores aprenderam, com os indígenas, que era possível fazer armas defensivas, segundo explicou José de Anchieta, em carta escrita em São Vicente e datada de 31 de maio de 1560, cujo destinatário era o padre geral dos jesuítas, Diego Laynez:
"Do seu couro [de anta], endurecido apenas pelo sol, os índios fabricam broquéis completamente impenetráveis às flechas." (⁵)
O elemento perverso nessa ideia de usar couro de anta é que, não demorou muito, e os paulistas, que iam ao sertão com o objetivo de capturar índios para escravização, estavam fazendo uso dos ditos objetos contra as flechas que, numa tentativa desesperada de escape, os nativos na América atiravam contra eles. 
Finalmente, para não ficarmos restritos à questão do uso de couros de animais nativos da América, basta citar que Rocha Pita, em sua famosa (ainda que muito questionada), História da América Portuguesa, cuja primeira edição data de 1730, informou que na Capitania de São Vicente se criavam porcos, cujo couro era utilizado tanto para calçados como para mobiliário:
"[...] Se criam nela [na Capitania de São Vicente] porcos tão grandes, que se lhes esfolam as peles para botas e couros de cadeiras, em que provam melhor que o das vacas." (⁶)
Os leitores não terão dificuldade em perceber que, se no início, era preciso que um colono se acomodasse ao que havia na terra, aos poucos foi possível adaptar ao Brasil os usos e costumes do Reino, o que incluía, por suposto, tanto os cultivos agrícolas como a criação de animais, possibilitando, assim, um estilo de vida mais semelhante àquele que era usual na Europa (com as devidas adaptações), tendo em conta as condições climáticas vigentes na América.

(1) Com exceção, naturalmente, dos que vinham ao Brasil para cumprir uma sentença de degredo; esses, como regra, não o faziam de livre e espontânea vontade.
(2) Os experimentos foram um sucesso: nos relatórios de exportações do Século XVII, com destino à Europa, era frequente que os principais itens fossem açúcar, tabaco e couros. A criação de gado bovino para corte obteve sucesso no Nordeste, mas havia também a exportação de couros de animais nativos do Continente Americano.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 246.
(4) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, p. 38. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 119.
(6) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 65.


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