Missionários jesuítas adaptavam os horários de catequese à rotina seguida pelos povos indígenas
Embora, pelas cartas de Anchieta, seja possível inferir que missionários jesuítas não perdiam ocasião de ensinar suas crenças aos indígenas, também sabemos que, sempre que conseguiam ser admitidos ao convívio em uma aldeia, logo tratavam de adotar um horário definido para a catequese. O aspecto interessante é que a escolha da hora estava relacionada à rotina que habitualmente era seguida, não pelos padres, mas pelos índios, ao menos para a catequese de adultos.
Razão para isso? Muito simples: os homens indígenas adultos costumavam passar boa parte do dia em atividades como caça e pesca, e só no final da tarde é que retornavam à aldeia. O padre Simão de Vasconcelos, autor seiscentista da Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, explicou:
"Como [os índios] vivem de seu arco, em amanhecendo partem à caça das aves e feras por esses campos [...], voltam comumente à noite, de maneira que em todo o dia não há tratar com eles com sossego. Porém este inconveniente vencia o grande fervor de Aspilcueta (¹). Ia esperá-los sobre a tarde, a tempo que vinham carregados com suas caças, dava-lhes as boas-vindas e os parabéns do sucesso aos que tiveram boa dita. Dizia-lhes que descansassem e ceassem [...] com suas famílias; e quando já estavam descansados e satisfeitos, em começando a noite a desenrolar seu manto, começava ele a despregar a torrente de sua eloquência, levantando a voz, e pregando-lhes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé, espalmando mãos, fazendo as mesmas pausas, quebros e espantos costumados entre seus pregadores, para mais os agradar e persuadir." (²)
Para a catequese das crianças a estratégia era diferente: estabeleciam-se escolas, que funcionavam durante o dia. O mesmo Simão de Vasconcelos, na biografia do padre José de Anchieta, escreveu: "Nestas escolas gastam duas horas de manhã, outras duas da tarde." (³)
Logo os missionários jesuítas perceberam que os meninos catecúmenos podiam ser muito úteis quando a questão era convencer os adultos. Assim que anoitecia, as crianças, cantando, percorriam as ruas, o que devia fazer boa impressão entre os nativos do Brasil, notórios amantes da música:
"Tangendo as Ave Marias da noite, tornam-se a ajuntar [os meninos] à porta da igreja, e daí formam procissão com cruz levantada diante, e postos em ordem, vão cantando pelas ruas em alta voz prosas santas em sua língua [...]." (⁴)
Aos jesuítas parecia, a princípio, mais fácil catequizar crianças que adultos; o tempo veio provar, porém, que assim que chegavam à adolescência, quase todos os meninos optavam pelo atraente estilo de vida de seus pais, com sua liberdade, suas caçadas e suas guerras a cada nova safra de cajus, em lugar dos severos costumes que os padres tentavam ensinar. Justamente por isso é que Anchieta, um mestre no gênero epistolar, viria a escrever algumas de suas páginas mais amargas, exprobando à criançada indígena o abandono da fé que antes pareciam aceitar com tanta facilidade.
(1) Padre João Aspilcueta Navarro, o primeiro dentre os missionários jesuítas a ser capaz de ensinar na "língua geral" dos indígenas que viviam em áreas litorâneas.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 55.
(3) Idem. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 163.
(4) Ibid.
Veja também:
Queriam impor correntes a quem vivia em liberdade. Tarefa inglória.
ResponderExcluirUma boa semana, Marta :)
É preciso levar em conta que a imposição de um novo estilo de vida, que cerceava a liberdade dos indígenas, não tinha em vista apenas um propósito de caráter religioso. Mais que isso, obedecia a interesses de colonização, à medida que impunha um controle da população nativa para que não "atrapalhasse" o projeto de ocupação e exploração do território.
ExcluirObrigada pela visita, tenha uma ótima semana.