segunda-feira, 11 de abril de 2016

Lazer para livres e escravos no Brasil Colonial

Quem vinha colonizar o Brasil, ao menos nos primeiros tempos, precisava trabalhar muito. Afinal, para padrões europeus, tudo ainda estava por fazer. Se é fato que os colonizadores, por uma questão de sobrevivência, habituavam-se ao modo de vida dos indígenas, é também verdade que a maioria deles não tinha intenção de manter esse estilo de vida para sempre. O sonho dourado era enriquecer - bem depressa, se possível - e voltar para o Reino, a fim de desfrutar uma vida regalada. Nem todos conseguiam, mas os poucos que alcançavam a meta eram suficientes para insuflar esperanças em quem se atrevia a cruzar o Atlântico e vir para uma terra sobre a qual se afirmava não haver nela, curiosamente, assim como na língua geral indígena, nem f, nem l e nem r: nem fé, nem lei e nem rei...
Ora, leitores, como ninguém é de ferro, mesmo os colonizadores mais fanáticos por trabalho precisavam ter momentos de lazer. Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, aponta a existência de uma diversão favorita na Cidade da Bahia de seu tempo: "Está no meio desta cidade uma honesta praça, em que se correm touros quando convém..." (¹)
jogo de bola chegou a ser proibido no Rio de Janeiro (!!!), e os missionários jesuítas costumavam desestimular os jogos de dados e de cartas, que também eram proibidos pelas Ordenações do Reino (²), embora os jogos de tabuleiro fossem permitidos:
"Defendemos (³) que pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, em nossos Reinos e Senhorios não jogue cartas, nem as tenha em sua casa e pousada, nem as traga consigo, nem as faça, nem traga de fora, nem as venda. [...].
 E os que jogarem dados sejam presos, e da cadeia paguem vinte cruzados, se forem peões, e sejam açoitados publicamente com baraço e pregão, e se forem de maior condição, sejam degradados um ano para África, e pagarão quarenta cruzados, salvo se jogarem os jogos que em tabuleiro se jogam [...], os quais lhes não vedamos, porque as pessoas tenham com que se desenfadem." (⁴)
Sim, vai uma distância enorme, às vezes, entre a proibição e a obediência (⁵), tão longa quanto a distância do Brasil ao Reino, mas de vez em quando algum governante muito estrito encasquetava em fazer cumprir as leis, o que até servia para tornar a transgressão mais divertida.
Em datas religiosas e em outras comemorações (como ano-novo, por exemplo), as competições que envolviam habilidades equestres eram muito apreciadas. Eram, quem sabe, os últimos suspiros de velhas tradições medievais, que vinham esmorecer em terras da América, mas, à parte disso, possibilitavam a reunião de muitos espectadores, e, entre eles, as mulheres, que viviam trancafiadas, e que nessas ocasiões saíam de casa em companhia dos homens da família, que iam presenciar os jogos e corridas. A Nobiliarchia Paulistana refere a existência de verdadeiros campeões em São Paulo nos tempos coloniais. Um deles foi Inácio Dias da Silva, que "na arte de andar a cavalo excedeu a todos os do seu tempo e ainda aos do passado, e sabia na última perfeição todo o manejo da cavalaria, e foi de tantas forças que com ela executava a cavalo algumas ações em as quais não achava quem o competisse. [...]." A Nobiliarchia diz, ainda, que por ocasião de grandes festas organizadas em honra da missa nova do padre Eusébio de Barros Leite, "levou Inácio Dias da Silva em todas as três tardes sempre os prêmios de louvor entre os muitos e destros cavaleiros daquela função, da qual foi ele o primeiro mantenedor e guia nas escaramuças." 
Autores do Período Colonial fazem muito poucas referências quanto a bailes, música e danças. É que a severidade, quando não a hipocrisia dos costumes, desencorajava qualquer aproximação pública entre homens e mulheres. Já para aqueles que viviam fora dos círculos constituídos pela elite colonial havia sempre a possibilidade de passar o tempo livre nas tabernas (tão malfaladas quanto mais frequentadas), onde, junto às bebidas de qualidade duvidosa, sempre aparecia alguém para tocar viola, enquanto as danças consideradas escandalosas acabavam acontecendo e, em algum cômodo escondido, rolava a tavolagem que as leis proibiam.
Novos hábitos, mais gentis, começaram a ser introduzidos em fins do Século XVIII, ainda que em caráter restrito, em recepções que aconteciam nas residências da pouco numerosa elite urbana favorecida pela mineração. É quase impossível saber quando é que um minueto terá sido tocado e/ou dançado pela primeira vez no Brasil, mas não será absurdo imaginar que estudantes que haviam passado alguns anos na Europa tenham de lá trazido novas ideias sobre sociabilidade, que podem, a princípio,  ter parecido extravagantes para os rústicos colonizadores. Mas, como se sabe, o tempo se encarrega das mudanças. 
A vinda da Corte ao Brasil em 1808 foi também responsável pela introdução de inovações no estilo de vida, primeiro entre a população urbana do Rio de Janeiro e, aos poucos, também em lugares mais distantes, o que deu ocupação  aos aferrados às velhas tradições, que desaprovavam as novidades só por serem novas, e não porque fossem boas ou más. Quem tinha instrução e certo padrão econômico, porém, passou a apreciar as idas ao teatro, as óperas (⁶), os bailes, e assim as valsas que ficaram famosas no Congresso de Viena não tardaram a soar também no Brasil. Já era época da independência política, e o País queria ostentar um verniz de civilidade. Era o que acontecia na superfície; já o cerne, era outra coisa.
Resta falar ainda do lazer entre os escravos, embora esse seja um ótimo assunto para outra postagem. É sabido que muitos senhores eram dados a vetar as danças e folguedos, porém os mais sensatos proprietários entendiam que não era prudente (e nem mesmo favorável aos seus interesses), que uma proibição absoluta fosse imposta aos cativos. Daí resultava que, aos domingos e feriados, a música e a dança dos escravos, se não era explicitamente permitida, era ao menos tolerada. Como não imaginar que mais de um senhor, dentre os que faziam vistas grossas à diversão dos escravos, tenha ficado surpreso consigo mesmo por se perceber tamborilando com os dedos, no ritmo vivaz que ecoava das senzalas? 

Escravos dançando, de acordo com M. Rugendas (⁷)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 118.
(2) As Ordenações do Reino, compilação de leis que regiam Portugal e seus domínios, foram publicadas originalmente no começo do Século XVII; a maior parte das leis já existia bem antes disso.
(3) O mesmo que "proibimos".
(4) Ordenações do Reino, Livro Quinto, Título LXXXII, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(5) Como ocorreu, por exemplo, nos anos em que vigorou a Lei Seca nos Estados Unidos.
(6) Acreditem leitores: cantoras líricas eram endeusadas pelos jovens do Rio de Janeiro no Século XIX.
(7) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. 
O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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