quarta-feira, 31 de julho de 2013

As aranhas do padre Anchieta


"Umas são um pouco ruivas, cor de terra..."

Quem dentre meus leitores gosta de aranhas? Imagino que poucas pessoas, excetuando, por certo, os pesquisadores que se dedicam a elas - para bem da humanidade, felizmente.
"...outras pintadas, todas cabeludas"
Os monçoeiros que iam pelo Tietê e outros rios rumo ao interior do Brasil no Século XVIII eram acossados de contínuo por montes de aranhas que, caindo das árvores que margeavam os cursos d'água, iam dar nas embarcações - coisa que suscitava, neles, expressões constantes de desagrado, que beiravam ao horror, em alguns casos.
Muito antes dos monçoeiros, no entanto, o Padre José de Anchieta, missionário jesuíta no Brasil, instado a descrever a colônia portuguesa na América e suas particularidades, assim se referiu às aranhas, em uma carta ao Geral de sua Ordem:
"O que direi das aranhas, cuja multidão não tem conta? Umas são um pouco ruivas, outras cor de terra, outras pintadas, todas cabeludas; julgarias que são caranguejos, tal é o tamanho do seu corpo: são horríveis de ver-se, de maneira que só a sua vista parece trazer diante de si veneno." (*)
A carta da qual fazia parte o trechinho acima foi escrita em São Vicente, no fim de maio de 1560. Não se pode, por ela, concluir que Anchieta fosse um apreciador de aranhas, não é mesmo?

(*) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 115.


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domingo, 28 de julho de 2013

Nobres, sim, mas muito pobres

Do que ficou dito na postagem anterior, alguém poderá depreender que os fidalgos portugueses, tão favorecidos pelo rei e pelas leis, deviam ser pessoas muito poderosas e também muito ricas. Mas não era essa a situação da totalidade da nobreza lusitana. Havia os nobres ricos, é claro, mas também os havia muito pobres, como se verá a partir de uma lei que, à primeira vista, poderia indicar mais um favorecimento à fidalguia, mas que devidamente analisada, reflete o estado de penúria em que viviam alguns dos "bem nascidos", "filhos d'algo". Aplicava-se a tal lei (conforme as Ordenações do Reino, Livro III, § 23) (*) no caso de ter a justiça decretado a penhora de bens de algum fidalgo:
"Porém não se penhorarão os fidalgos e cavaleiros e nossos desembargadores nos cavalos, armas, livros e vestidos de seus corpos, nem as mulheres dos sobreditos, nem mulheres fidalgas nos vestidos de seus corpos e camas de suas pessoas, havendo respeito ao que a cada um é necessário para seu serviço e uso, conforme a qualidade de suas pessoas, posto que outros bens não tenham. E nos cavalos, vestidos e coisas sobreditas que lhes não forem necessárias, se fará execução, quando não tiverem outros bens móveis ou de raiz."
Pobre nobreza, essa, que eventualmente nada mais tinha que a roupa do corpo, a cama em que dormia ou o cavalo de que se servia para ir de um lugar a outro!...

(*) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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quarta-feira, 24 de julho de 2013

Desigualdade perante a lei: Os privilégios da nobreza em Portugal e seus domínios

Nas Repúblicas ocidentais o conceito da igualdade de todos os cidadãos diante da lei é visto como um dos pilares da democracia. Não se admitem, ou não deveriam ser admitidos, ao menos em teoria, quaisquer privilégios relacionados, por exemplo, à condição de nascimento de quem quer que seja. A atribuição de penalidade em caso de uma infração às leis não deve, também, estar relacionada à origem ou condição social do infrator. Não se reconhece, portanto, a existência de uma nobreza, camada social dotada de direitos superiores aos dos demais indivíduos. Mas nos antigos tempos das monarquias absolutistas as coisas eram explicitamente diferentes, com as desigualdades figurando de forma clara nas leis.
Vejamos o caso de Portugal. Como se justificava a diferença de tratamento atribuído à gente da nobreza e aos não-nobres?
Diz o Livro Segundo das Ordenações do Reino (¹), no Título 45:
"Como entre as pessoas de grande estado e dignidade e as outras é razão que se faça diferença, assim nas doações e privilégios concedidos às tais pessoas, costumaram os reis pôr mais exuberantes cláusulas, e de mais prerrogativas, para se mostrar a maior afeição e amor que lhes tinham."
Como se vê, o caso não carece de mais explicações. Vamos adiante, com algumas consequências práticas desse tratamento distinto.
Em caso de um réu da nobreza ser condenado à morte pela Casa da Suplicação, o mais importante tribunal do Reino, a sentença somente seria executada com o conhecimento e consentimento do rei, coisa que, em absoluto, não se concedia às "pessoas comuns":
"Porém, sendo o réu cavaleiro ou daí para cima, e condenado em morte natural, não se fará nele execução sem no-lo fazerem saber." (²)
No rito das audiências dos tribunais havia também prescrições relativas ao tratamento diferenciado de pessoas, conforme se vê no Livro Terceiro das Ordenações, Título 19, § 4:
"...Se na audiência estiverem pessoas religiosas, as ouvirá logo e despachará, para se logo irem, e então ouvirá as mulheres que aí estiverem, primeiro que ouça algum homem. E se alguns cavaleiros ou escudeiros, ou pessoas poderosas vierem à audiência, ouça-os, e lhes mande que se vão, e não lhes consinta que aí mais estejam [...]". Neste caso, no entanto, a providência era importante porque se pretendia evitar que as tais "pessoas poderosas" criassem tumulto nos tribunais, tentando impor pontos de vista pela força da posição social que ocupavam, como se vê no mesmo título e parágrafo: "...Se quiserem levantar palavras, defenda-lhes que não venham aí mais, e por seus procuradores requeiram seu direito nos casos em que procuradores o podem requerer."
Quando todos se iam, ouvia-se a gente do povo:
"E depois ouça os homens de menor qualidade, os quais virão um a um à vara com aquele acatamento que à Justiça é devido, e enquanto a ela estiverem, estarão sempre com o chapéu na mão, salvo se o julgador, por alguma causa ou qualidade de suas pessoas os mandar cobrir." (³)
Finalmente, resta acrescentar que, quando a Câmara de uma cidade ou vila lançava uma finta (⁴), havia uma lista enorme de pessoas que estavam dela isentas, o que, em última análise, significa que, para se atingir o valor necessário para cobrir o propósito da finta, todos os outros tinham que pagar mais:
"E as pessoas que são escusas de pagar na dita finta, quando assim for lançada, são as seguintes: os fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem, ou de criação de algum fidalgo [...], e assim mesmo os doutores, licenciados e bacharéis em Teologia, Cânones, Leis ou Medicina, que forem feitos por exame em estudo geral, e assim os juízes, vereadores, procurador do Conselho e tesoureiro no ano em que servirem [...]" (⁵)
Essa isenção não teria validade, porém, quando a finta tivesse por objetivo a efetivação de obras para defesa do lugar, como muros e fortalezas, ou ainda para construção de fontes, pontes e calçadas. A lei, podia, apesar de tudo, ser tida como generosa: ficavam também isentas das fintas "algumas pessoas que tão pobres sejam, que principalmente vivam por esmolas"...

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Livro I, Título Primeiro, § 16.
(3) Livro Terceiro, Título 19, § 4.
(4) Imposto em forma de quota que se lançava para uma necessidade específica do lugar.
(5) Livro Primeiro, Título 66, § 42.


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domingo, 21 de julho de 2013

O papel do cinema na formação de padrões de comportamento durante a República Velha

Bruzundanga, o país imaginário (ou nem tanto) do qual nos conta Lima Barreto, dava a seus presidentes o título de "Mandachuvas". Pois um Mandachuva era, quase sempre, um sujeito roceiro, mais preocupado com suas lavouras que integrado à cultura urbana da capital em que, como chefe de Estado e de Governo, devia viver. Assim é que um Mandachuva típico odiava deveres do ofício, tais como ir a concertos ou assistir a peças de teatro. Para ele, bom mesmo era o gramofone (que podia ouvir em casa) ou, quem sabe, ir ao cinema. Nada de peças cujo sentido não conseguia apreender: "As necessidades artísticas de sua natureza se cifram no gramofone doméstico e nos cinemas urbanos ou do arrabalde em que reside. Faz coleção dos programas destes últimos e, com eles, organiza a sua opulenta biblioteca literária." (¹)
Desnecessário é lembrar que, na crítica mordaz de Lima Barreto, retratava-se nada menos que o Brasil da República Velha. Mas seria inútil qualquer tentativa de ser convincente quanto às virtudes de uma representação teatral - ao vivo, por suposto - em oposição ao que, na época - se chamava de "cena muda". O nascente cinema caiu rapidamente no gosto da população brasileira e, com ele, vieram mudanças significativas no comportamento das pessoas.
Antes do cinema, o auge do luxo era a "última moda em Paris", que chegava ao Brasil com meses de atraso e, portanto, já não era a última de jeito nenhum. Agora, o padrão passava a ser o dos atores e atrizes dos Estados Unidos, e isso não apenas no vestuário, mas também nos penteados, nas maneiras, até nas estudadas expressões fisionômicas que o público adorava imitar. Bastava anunciar que esta ou aquela celebridade das telas usava o perfume X, o sabonete Y, o cigarro Z, este ou aquele cosmético, para que todo mundo que tivesse recursos para tanto, corresse a comprar tais coisas, na esperança de tornar-se mais parecido ou parecida com seu herói ou heroína do cinema. As atrizes apareciam de cabelos curtos? Então os cabeleireiros tinham serviço, não importando o quanto os novos cortes escandalizassem os mais conservadores. Valia a mesma regra para o vestuário ou para qualquer outra coisa que tivesse a mínima possibilidade de tornar alguém semelhante às novas estrelas cinematográficas.
Em vão a crítica censurou a mania de copiar costumes estrangeiros - de resto, isso sempre havia acontecido. Era evidente uma certa disposição para mudanças, o que acabou por refletir-se até na vida política (²). O fato é que, qual uma onda gigantesca, os novos ícones do capitalismo, propostos sutil mas persistentemente nos cinemas (ainda que não só neles), invadiram a vida de gente comum, nas ruas e nos lares, estabelecendo paradigmas substancialmente diversos dos que haviam imperado até então. Para bem e/ou para mau? Eis aí uma coisa que pode dar a você o que pensar, leitor.
Para se ter uma ideia de como as "novidades" eram percebidas nos anos vinte, sob uma perspectiva algo conservadora, veja abaixo dois cartuns de Belmonte, que apareceram na revista paulistana A Cigarra:

Cabelos e roupas curtíssimos, de evidente inspiração nos novos modelos propostos pelo cinema (³)

Cabelos curtos para elas, nem tanto para eles... (⁴)

(1) BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Os Bruzundangas.
(2) Cabe aqui uma consideração de não pouca importância. Era inevitável que a sociedade, assim predisposta a aceitar ou pelo menos a tolerar  novos padrões de comportamento se tornasse mais questionadora, mais consciente de que direitos civis não deviam ser apenas um enfeite na Constituição e acabasse rumando para novas tendências políticas, que culminaram com a supressão da hegemonia cafeeira, que já durava várias décadas, até porque a grande crise econômica que afetou o mundo no final da década de vinte deu uma contribuição relevante para isso. Não por acaso, os anos vinte foram tempos de grande agitação, com uma sequência de revoltas militares (o "Tenentismo") ou a proposição de novos parâmetros culturais (a Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo). Por outro lado, não se pode esquecer que todas as mencionadas transformações, por razões bastante evidentes, afetavam muito mais os centros urbanos, do que a população do Brasil rural, que ainda predominava.
(3) A CIGARRA, nº 209, Ano 11, 1º de junho de 1923.
(4) Ibid., nº 240, Ano 13, 1º de novembro de 1924.


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quarta-feira, 17 de julho de 2013

Guará, o "lobo" da América do Sul

Lobo-guará
(isto seria um sorriso... Ou não?

Talvez estivesse com sono...)
O guará (Chrysocyon brachyurus) não é, tecnicamente, um lobo (Canis lupus), embora desde os primeiros tempos da colonização, em virtude de algumas aparentes semelhanças, tenha sido chamado de lobo-guará. Sem pretensões a rigor científico, o Conde de Azambuja, que viajou em uma monção pelo Tietê e outros rios, durante o Século XVIII, registrou, quando da passagem pelo rio Pardo:
"A 17 se matou um lobo, que era do tamanho de um cão ordinário, e pelo avermelhado, a cabeça mais curta, a boca menos rasgada, e os dentes mais pequenos que os nossos costumam ter; e também parece não serem tão sagazes, porque o mataram à queima-roupa, parado de um perdigueiro, e quieto." (¹)
Vale notar, porém, que o Conde faz referência à sagacidade atribuída aos lobos cinzentos (veja a postagem anterior) e, em seu entendimento, o guará não se lhes equiparava neste atributo. Mas não é só. Ao lado de muitas outras dessemelhanças, cumpre notar que o guará tem hábitos solitários. Não se verá, por aí, nenhuma alcateia de guarás...
Em obra publicada na segunda década do Século XIX, o Padre Ayres de Casal também mencionou o guará, apontando, igualmente,  algumas distinções entre ele e os lobos conhecidos na Europa:
Crânio de lobo-guará (⁵)
"O guará tem a figura do lobo, com a diferença de uma pequena clina das espáduas até o coruto inclinada para diante; só se encontram nas províncias centrais, onde não são numerosos, nem tão daninhos como a sua espécie na Europa (²), sendo contudo roubadores de bezerrinhos; em algumas partes não duvidam chamar-lhe lobo; estimam-se-lhe a pele e os dentes." (³)
Estimam-se-lhe a pele e os dentes!!! Neste caso, as eventuais semelhanças entre o guará e os lobos devem ter valido ao pobre canídeo da América do Sul a perseguição implacável que a legislação do Reino fomentava, mediante premiação à caça, que se movia aos lobos de Portugal, conforme se mencionou na postagem anterior. Não se espanta, pois, que já no começo do século XIX, Ayres de Casal dissesse não serem os guarás muito numerosos.
A caça ao guará podia, também, ser motivada, digamos, por interesse científico, conforme se depreende deste relato de Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, realizada entre 1825 e 1829:
"Fez-se alto de jantar às 10 horas, para ter tempo de empalhar um lobo que fora morto à bala. Era do tamanho dos da Europa e estava bastante magro, prova de que apesar da abundância de veados e caititus, cuja carne é deliciosa, pouco achava que comer." (⁴)

Lobo-guará

Sim, meus leitores, mais uma evidência de que a vida destes animais não era nada fácil. E continua a não ser. Não são raras, atualmente, as notícias na imprensa de São Paulo, relativas a guarás atropelados e mortos nas rodovias que cruzam o Estado. É que, em busca de alimento, esforçam-se por ir de um pequeno trecho de mata a outro (nas poucas áreas florestadas que ainda restam) em meio às imensas extensões cultivadas e/ou habitadas e, para isso, arriscam-se à morte, principalmente nas horas da noite, quando acabam atingidos por algum veículo. Já se sugeriu que a existência de "corredores verdes" entre as áreas de mata poderia ser útil à preservação de uma grande variedade de espécies, e não apenas de guarás. Seja como for, é inegável que a crescente urbanização e expansão agrícola, sem o necessário planejamento em termos de preservação ambiental tem feito muitas vítimas, sendo o guará uma dentre elas.

(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 204.
(2) Está claro que Ayres de Casal não tinha qualquer compreensão quanto à taxonomia do guará e do lobo cinzento, daí supor, erroneamente, que pudessem ser da mesma espécie.
(3) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, pp. 63 e 64.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 60.
(5) O esqueleto de guará aqui retratado pertence ao acervo do Museu de História Natural de Itapira - SP.


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domingo, 14 de julho de 2013

Aí vem o lobo mau!

Lobos como caçadores e como caça através dos tempos


"La raison du plus fort est toujours la meilleure: Nous l'allons montrer tout à l'heure."
                                                                                   Jean de La Fontaine, Le Loup et l'Agneau
 
Belos, mas temidos e, por isso mesmo, detestados, os lobos têm desde muito tempo frequentado lendas, fábulas e mais histórias. São retratados como pérfidos, traiçoeiros, dispostos a qualquer coisa para agarrar a presa pelo pescoço e, pior que um lobo, só muitos lobos juntos: quando se pensa que um lobo está sozinho, pode-se, na verdade, contar com uma alcateia nas proximidades. Seu uivo, rompendo o silêncio de uma noite invernal, é capaz de provocar calafrios mesmo nos mais corajosos dentre os humanos, e isso desde tempos imemoriais.
Esopo, na Antiguidade, colocou lobos em muitas de suas fábulas. É o caso, por exemplo, de "O Lobo e o Grou" (¹), "O Lobo e o Cachorro" (²) ou "O Lobo e o Cabrito" (³). A mais conhecida delas, porém, é, a meu julgar, a chamada "O Lobo e o Cordeiro": um lobo acusa, injustamente, um cordeiro de sujar a água que iria beber, mas isso não passa de reles pretexto para o que de fato pretende e acaba por fazer: jantar o animalzinho inocente. Curiosamente, para Esopo, havia só um animal que era capaz de superar um lobo em esperteza e maldade. A raposa!
Em tempos modernos, La Fontaine retomou as fábulas de Esopo e vestiu-as com versos em língua francesa.
Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, em ilustração
de Paul Menerheim (⁷)
A mais célebre história envolvendo um lobo - o que pensam, leitores? - é provavelmente aquela que, na versão dos Irmãos Grimm, correu e corre ainda o planeta, e quase não há quem não a conheça. "Rotkäppchen", ou "Chapeuzinho Vermelho", nome que recebeu no Português do Brasil, não foi, certamente, inventada pelos dois estudiosos das tradições populares germânicas, pois em variadas formas já era contada em muitos lugares da Europa e, no Século XVII, teve uma versão impressa, de autoria de Charles Perrault, que teria reduzida probabilidade de agradar às crianças de hoje, uma vez que o lobo devorava a menina e ponto final. Na versão principal recolhida e contada pelos Irmãos Grimm (⁴), o lobo, abatido por um caçador, passa, digamos, por uma cirurgia, e de seu abdômen saem, vivíssimas (!!!), a vovó e a Chapeuzinho Vermelho...
Desnecessário é dizer que a mania do "politicamente correto" já acarretou versões mais ecológicas deste conto (supostamente) infantil; todo mundo sabe, também, que essa historinha aparentemente ingênua tem-se prestado a intermináveis estudos e debates sobre o comportamento humano. Mas, voltando ao assunto dos lobos, a antiga legislação portuguesa tinha, para eles, uma solução que causaria um certo espanto atualmente. É o que se vê no Livro Primeiro das Ordenações do Reino, Título 65, § 21 (⁵). Assumindo que os lobos causavam problemas à segurança das pessoas e ameaçavam rebanhos, caçá-los era não só permitido, mas incentivado, mediante premiação:
"E porque os lobos fazem grandes danos aos gados, havemos por bem que o homem que matar lobo velho, haja por cada um três mil réis, e por lobo pequeno, quinhentos réis. E o que emprazar cachorros (⁶) e os mostrar, haja quatrocentos réis, do qual prêmio se pagará a metade à custa da nossa Fazenda, e a outra à custa do povo, em cujo termo forem mortos. E o matador mostrará a cabeça e a pele do tal lobo ao juiz do lugar, o qual mandará fazer disso assento, e passará mandado para o almoxarife pagar logo a dita quantia à tal pessoa. [...]."
Problemas causados à parte, neste caso os lobos, quase sempre vilões da história, viam-se transformados em vítimas, com as cabeças literalmente postas a prêmio.

(1) Um grou salva a vida de um lobo que estava com um osso entalado na garganta. O ingrato, no entanto, depois de ver-se livre do perigo, maltrata a ave.
(2) Cansado de viver na penúria, à procura de caça, um lobo interroga um cão sobre seu aspecto excelente. Este lhe explica que tudo recebe do dono, mas acaba revelando que é obrigado a usar uma coleira, para que o prendam quando bem entenderem.
(3) Um lobo tenta enganar um cabrito, fazendo-se passar por sua mãe.
(4) São, na verdade, duas versões, e que aparecem, ambas, em Kinder und Hausmärchen.
(5) Sistematização de leis publicada, pela primeira vez, no início do século XVII. Seguiu-se a edição de 1824 da Universidade de Coimbra, sendo o texto trancrito no Português atual do Brasil.
(6) Filhotes de lobo.
(7) GRIMM, Jacob et Wilhelm. Kinder und Hausmärchen. Gütersloh: Bertelsmann, 1893. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 10 de julho de 2013

A moda em calçados, um século atrás

Este anúncio procura vender a ideia de que a menina está feliz por ter
um par de sapatos como o que é retratado, muito diferente daquele que as
meninas da mesma idade tendem a usar atualmente. (¹)

Olhe para seus pés, leitor. O que está calçando? (se é que está calçando alguma coisa...) Pode ser um par de chinelos, talvez uns tênis. Talvez sua prioridade seja o conforto, ou pode ser a elegância - ou ainda uma tentativa de conciliar tudo isso, com preço satisfatório e uma certa durabilidade. Não seria pedir demais?
Anúncio de calçados publicado em 1915 (²)
Curioso é notar que, há um século, mais ou menos, as pessoas esperavam as mesmas coisas de seus calçados, mas o modo como isso se materializava era, digamos, um tanto diferente daquilo que hoje consideramos aceitável. Para verificar como era a moda em calçados, veja alguns anúncios que apareceram em publicações da segunda década do Século XX, e compare com o que se vê, atualmente, nas vitrines das lojas de sapatos. Pode ser que sejamos obrigados a concluir que, moda vai, moda vem, os sapatos de hoje guardam alguma semelhança com os do passado, ao menos no que se refere aos artigos ditos "sociais", principalmente em se tratando de calçados masculinos. Nossos calçados esportivos, por outro lado, seriam impensáveis pelos anos 1915 ou 1916. Os "sapatos de tênis" eram usados só para esporte, mesmo, nunca para passeio, e tinham um aspecto muito diferente daquele que a tecnologia e o design contemporâneo agregaram aos tênis que usamos para correr, jogar e em muitas outras atividades quotidianas.
Além disso, certo ou errado, os sapatos das crianças eram, em geral, um tanto diferentes dos usados pelos adultos, quando a tendência atual é imitar, nos calçados infantis, muito da moda de "gente grande". Tudo correspondia, portanto, a uma época em que meninos usavam calças curtas, e deixar de fazê-lo, para usar as "verdadeiras calças de homem" constituía-se em um pequeno ritual de passagem pelo qual todo guri esperava, ansiosamente.

Anúncio de calçados para mulheres, publicado em 1915 (³)

(1) A CIGARRA, Ano VI, nº 126, 15 de dezembro de 1919.
(2) A CIGARRA, Ano II, nº 33, 30 de dezembro de 1915.
(3) Ibid. Todas as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 7 de julho de 2013

Um passeio de rede em Lisboa

Eis aqui uma história de gente que colonizou São Paulo, conforme relato que aparece na Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Nunca encontrei, é fato, referência a ela em qualquer outra fonte - mas, por ser uma aventura verdadeiramente deliciosa, resolvi tratar dela aqui, esperando que, caso algum de meus leitores conheça sobre ela qualquer outra informação, coloque um comentário logo aí abaixo desta postagem.
Conta Pedro Taques que "Manoel João Branco no ano de 1624 foi administrador geral das minas de São Paulo, provido por Diogo de Mendonça Furtado, governador-geral do Estado do Brasil, como se vê no arquivo da Câmara de São Paulo, Caderno de Vereanças, Título 1625, folha 16. Adquiriu um grande cabedal extraído das minas de ouro de São Paulo".
Contraditório esse Pedro Taques de Almeida Paes Leme - cita, estritamente, a fonte da titulação de Manoel João Branco, para depois dizer que ficara muito rico com o que extraíra das minas de São Paulo. Ora, isso simplesmente não podia ser. As minas de São Paulo rendiam magras recompensas a quem insistia em explorá-las. A menos, é claro, se considerarmos que, na pequenina São Paulo do século XVII, a pobreza era tal que um minerador modesto podia ser tido como um homem rico.
Continuemos.
Envelhecendo, o dito Manoel João Branco meteu na cabeça a ideia de que não podia morrer sem ver o rei. A realização de seu desejo, no entanto, significava empreender penosa viagem, à qual o nosso homem não se furtou, tal era a intensidade de seu propósito. Pois foi atravessar o Atlântico, para o que teve que esperar embarcação disponível e bem distante de São Paulo, já que, em seus dias, as viagens eram limitadas à época do ano mais favorável à navegação, fugindo das calmarias assim como das tempestades.
Seguimos com a narrativa de Pedro Taques, na qual somos informados de que o viajante chegou vivo a Lisboa:
"Estando já em avançados anos entrou nos pensamentos de querer conhecer ao seu rei e natural senhor. Com efeito, pôs em execução esta nobre ideia. Foi embarcar à Bahia, onde mandou fazer umas bolas de ouro, palhetas e aro, e também um pequeno cacho de bananas, tudo de ouro, e chegando à Corte, beijou a mão a Sua Majestade, o senhor rei D. Afonso VI, a quem com sinceridade de pureza de ânimo ofereceu o presente, e mereceu a honra de lhe ser aceito. Apareceu com as mesmas cãs brancas da cabeça, e El-Rei lhe fez um grande agasalhado, vendo na sua presença um vassalo que de tão longe ia procurar a honra de beijar-lhe a mão."
Ora, ora, e onde está o fato tão incomum nessa história?
Tenham paciência, senhores leitores, que já verão do que se trata.
Manoel João Branco tinha um problema: morria de medo de carruagens. Não de ser atropelado por uma delas, mas de nelas viajar. Então, como locomover-se na Corte? Com grande "engenho e arte", achou solução para seu problema. Continua Pedro Taques:
"Era tão velho que temendo os balanços de uma carruagem, levou de São Paulo ou da Bahia uma rede de fio de algodão e lã de várias cores, que ainda hoje se tecem na Capitania de São Paulo com perfeição, nela andava embarcado na Corte de Lisboa, e em lugar de mariolas, carregavam a rede mulatos calçados, seus escravos, que já os conduziu para este ministério. Seria objeto de grande riso esta nova carruagem em Lisboa, e na verdade só a Providência o faria escapar das pedradas dos rapazes da Cotovia."
Quem esperaria outra coisa?


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quarta-feira, 3 de julho de 2013

A importância do milho na alimentação no Brasil Colonial

Ao que se sabe, o milho é originário do território onde hoje é o México, e importantes civilizações pré-colombianas dominavam a técnica de seu cultivo e uso na alimentação. No Brasil, foi amplamente cultivado desde os tempos coloniais, sendo mencionado, em documentos da época, frequentemente ao lado de culturas de mandioca e algodão, estas últimas aprendidas com os povos indígenas que viviam em áreas colonizadas por portugueses.
Sabe-se, por exemplo, por informação da Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, que Amador Bueno (¹) tinha muitos índios escravizados, e que esses cativos eram ocupados em atividades agrícolas, dentre as quais a de cultivar milho:
"Com o trabalho destes homens, ocupados em dilatadas culturas, tinha todos os anos abundantes colheitas de trigo, milho, feijão e algodão."
Além disso - é o próprio Pedro Taques quem observa - o milho parecia ser muito útil na alimentação não apenas de humanos, mas também na de cavalos, e era fornecido a eles, no Brasil, como ração diária:
"...é o que se dá diariamente no Brasil aos cavalos, principalmente na capital de São Paulo, e tem feito ver a experiência a utilidade que recebem desse alimento, que os faz mais briosos, alentados e capazes de aturarem, como aturam, jornadas de duzentas léguas, sem haverem um só dia de descanso." Compreende-se a importância desse fato, em tempos em que quase toda viagem e/ou transporte terrestre de cargas se fazia com o auxílio de tropas de equinos e muares.
Quem, por sua vez, metia-se em expedições que procuravam ouro, não deixava de prover-se de produtos do milho, particularmente da farinha que dele se fazia, havendo quem, para fornecer tais suprimentos, plantasse roças no caminho dos sertanistas. O seguinte trecho é também da Nobiliarchia Paulistana:
"Foi Francisco Pedroso de Almeida o fundador da fazenda chamada Araraquara, do sertão e estrada das minas dos Goiases, onde se estabeleceu com grossas culturas, de cujos frutos, pelas sementeiras de milho e feijão e criação abundante de porcos, se aproveitavam os viandantes daquela comprida estrada, fornecendo-se de todo o necessário para sustento da jornada..."
Excetuando-se o perigo em que viviam tais agricultores, em razão das constantes escaramuças com índios, o ramo de negócio a que se dedicavam era lucrativo. Os esfomeados do ouro muitas vezes chegavam às roças a quase, literalmente, morrer de fome, e dispostos, portanto, a pagar preços exorbitantes por suprimentos alimentícios, dentre os quais o milho era um dos mais destacados.
Nas minas, então, os preços dos alimentos alcançavam as nuvens: de acordo com Antonil, nas chamadas "Gerais", sessenta espigas de milho eram vendidas por nada menos que trinta oitavas de ouro e, por seis bolos feitos com farinha de milho, cobravam-se três oitavas (²).

(1) É o famoso "aclamado" rei em 1640, que, na verdade, recusou a tal aclamação. Veja, sobre isso, a postagem "Sobre a aclamação de Amador Bueno e a interpretação de documentos históricos".


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