quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A descrição do tuiuiú em um livro escrito no Século XVI

Tuiuiú (Jabiru mycteria)

Tuiuiú admirando o pé
O tuiuiú, também chamado jaburu (Jabiru mycteria), é uma ave identificada com o Pantanal, a ponto de ser considerada símbolo desse bioma, mas pode, também, ser encontrada em outras áreas da América do  Sul. Gabriel Soares, que viveu na Bahia no Século XVI e fez algumas expedições ao interior, mas que certamente nunca esteve no Pantanal, assim descreveu o tuiuiú em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587:
"Tuiuiú é uma ave grande, de altura de cinco palmos, tem as asas pretas, o papo vermelho (¹), e o mais branco; tem o pescoço muito grande e o bico de dois palmos de comprido (²); fazem os ninhos no chão (³), em montes muito altos, onde fazem grande ninho, em que põem dois ovos (⁴), cada um como um grande punho; mantêm os filhos com peixe dos rios, o qual comem primeiro e recozem-no no papo, e depois [...] repartem-no pelos filhos." (⁵)
Nem todas as informações de Gabriel Soares estão corretas (veja as notas abaixo). O que chega a ser uma surpresa é que, em uma época na qual quase todos os colonizadores estavam preocupados em alcançar enriquecimento rapidamente, este senhor de engenho, fugindo ao padrão, não só tinha curiosidade em investigar a fauna e a flora do Brasil, como ainda dedicava tempo para escrever sobre suas descobertas. Nós, do Século XXI, lhe agradecemos por isso.

(1) Essa e outras características evidenciam que o tuiuiú de que falava Gabriel Soares é mesmo o também chamado jaburu (Jabiru mycteria) e não o cabeça-seca (Mycteria americana).
(2) Há algum exagero nisso.
(3) Os ninhos são feitos geralmente em árvores.
(4) O número de ovos pode ser superior a dois.
(5) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 225.


terça-feira, 29 de outubro de 2019

No alto da muralha

No alto da muralha, um soldado caminha lentamente e olha entre as ameias. Para. Apoiado no arco, o olhar perdido na distância, perscruta os arredores. Ainda está escuro. O cansaço das noites seguidas sem dormir o faz, primeiro, encostar-se à parede, e ir, aos poucos, escorregando contra o chão. 
Que ruído é esse? Não há tempo a perder. Coloca uma flecha na corda, puxa, sustenta por um instante. A flecha desliza suavemente entre seus dedos e parte em direção à base da muralha, onde um bando de soldados inimigos, sob a proteção de escudos, trabalha para mover uma torre sobre rodas. Outra flecha, e outra. A aljava está quase vazia. Um auxiliar corre entre os arqueiros, levando mais flechas. São as que restam. Lá embaixo, alguns combatentes tombam e se contorcem, mas outros assumem o posto. O barulho ensurdecedor, que vem da direita, não dá lugar a dúvidas. É que inimigos, carregando pesados troncos, tentam forçar a porta principal da cidade. Uma pancada é seguida de outra. A porta resiste. Por quanto tempo? Dentro, alguns defensores aguardam, o coração quase explodindo. As mãos sujas e calejadas dos guerreiros correm pelo rosto para enxugar o suor, implorando aos céus por chuva, por água, por alívio.
Quem sabe não virá auxílio repentino de aliados? Quem sabe uma epidemia não devastará o exército inimigo? Quem sabe notícias vindas de longe não farão com que o cerco seja suspenso?
A gritaria, dentro e fora dos muros, é horrível. Fora, as ordens de comando, o ímpeto do ataque, a ânsia do saque iminente. Dentro, a miséria de quase um ano de cerco. Já não há comida e a água é escassa. A sede rói os miseráveis que, sobre a muralha, ainda insistem em protelar a rendição. Não sabem, sequer, se ainda lhes resta alguém da família. Só ouvem os gritos de terror das mulheres que, macérrimas, se arrastam pelas vielas escuras, quer implorando o auxílio dos deuses, quer maldizendo as ingratas divindades que nada fazem. Crianças choram, não há pão. Estão com as horas contadas, uns poucos minutos, talvez. É a agonia da fome.
Atacantes conseguem, afinal, escalar a muralha, carregando tochas que atiram sobre as casas próximas. Puxando a espada, os poucos defensores começam o combate corpo a corpo. Já não há nenhum controle ou ordem na defesa. Cada um luta como pode. Alguns ainda resistem, mas será por pouco tempo. A cidade está em chamas.
No alto da muralha, o arqueiro arregala os olhos e se levanta. O céu está limpo, o sol começa a subir. O vento frio o traz de volta à realidade. Respira fundo. Mais um dia de resistência. No acampamento inimigo, a uma distância prudente, já há movimento. O combate final se aproxima.


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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A rotina dos tropeiros no final de cada dia de viagem

Ao viajar por lugares distantes no interior do Brasil, tropeiros nem sempre encontravam um rancho em que passar a noite, e, por isso, era necessário acampar.  Mas, com rancho ou sem ele, havia sempre muito trabalho a fazer, antes que homens e animais pudessem dormir. Cada tropeiro tinha uma atribuição, que deveria desempenhar prontamente, a bem de todo o grupo, conforme explicação de Joaquim Ferreira Moutinho, português que, tendo vivido por dezoito anos em Cuiabá no Século XIX, decidiu voltar ao país de origem, e, em viagem a São Paulo, teve ocasião de conviver com tropeiros, cuja rotina observou e descreveu.

Providências imediatas ao chegar ao local de pouso:
" Logo que se chega ao pouso, descarrega-se a tropa, e os camaradas, depois de arranjarem as cargas de cada lote e de cobri-las com ligais, vão armar a tolda do patrão e a competente rede, ao lado da qual deitam as canastras e outros objetos indispensáveis aos viajantes." (¹)

A tropa era acomodada onde podia passar a noite:
"[...] Levam a tropa ao encosto, que é [...] um lugar naturalmente fechado por matas, rios ou brejos, para que a tropa não se espalhe durante a noite." (²)

Ocupações do arreador:
"O arreador fica no lugar do pouso ocupado em atalhar as cangalhas, curar os animais doentes e ferrar os estropiados. [...]" (³)

O cozinheiro preparava o jantar:
"[...] o cozinheiro [...] prepara os arranjos necessários à sua arte, acende o fogo, deita sobre ele uma trempe feita de paus, e nela pendura o caldeirão contendo o feijão e a carne seca, alimentos quase sempre usados pelos viajantes do sertão (⁴). Ordinariamente à noite estende no chão um couro de boi e sobre ele uma toalha na qual coloca os pratos de estanho. Depois com voz de trovão brada: feijão! A este grito acodem todos, e tanto o patrão como os camaradas e arreador fazem honroso ataque a tão saborosas iguarias." (⁵)

Na manhã seguinte, era preciso acordar cedo e preparar os animais e a carga para a partida:
"No dia seguinte os camaradas vão buscar os animais, e os prendem pelos cabrestos às estacas, para depois lhes deitar as cangalhas e os costais de cargas, que cobrem com os ligais, e arrocham com sobrecargas (⁶). Solta-se então a tropa, em cuja frente marcha uma besta escolhida que leva a cabeçada enfeitada de cincerros, e de um penacho ou boneca, com um peitoral de guizos." (⁷)
Isto feito, ia a tropa pelas terríveis estradas da época, até fazer pouso, quilômetros adiante, à hora em que a tarde chegava.

(1) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Itinerário da Viagem de Cuyabá a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, p. 12.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) Esses alimentos não eram apenas questão de preferência, e sim dentre aqueles que podiam ser mais facilmente conservados em viagem.
(5) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Op. cit., p. 12.
(6) Pobres animais!
(7) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Op. cit., pp. 12 e 13.


terça-feira, 22 de outubro de 2019

Por que os gregos da Antiguidade viviam bem, mesmo morando em um território pobre

Estrabão era grego. Viu a independência grega ruir, sob a imposição do domínio romano. De família rica, viajou, estudou e escreveu. Habituou-se ao modo de vida dos romanos e, talvez, até tenha apreciado estar entre eles. Mas nunca se esqueceu de que era um grego e, como tal, via muitas virtudes em sua gente. Talvez interiormente lamentasse o fim da hegemonia grega no Mediterrâneo. Há alguma evidência disso? É o que veremos.
Escrevendo em sua Geografia sobre os diferentes tipos de relevo e clima - era comum, na Antiguidade, atribuir às condições geográficas as características e mesmo o sucesso ou fracasso de um povo, naquilo a que chamamos "determinismo geográfico" - Estrabão notou, com respeito aos gregos:
"Observe os gregos, que habitam uma região de montanhas e pedras: eles viviam muito bem, porque se proviam de bom governo, artes e do necessário para a vida." (¹)
É possível que, aos gregos da Antiguidade, haja faltado, a despeito de todas as suas realizações políticas, uma conquista decisiva: não foram capazes de estabelecer uma unidade nacional, forte e permanente. A aliança momentânea entre cidades-Estado, forçada muitas vezes pela necessidade de resistir a invasores estrangeiros, não perdurava em tempos de paz, acometida que era por interesses locais ou regionais. Curiosamente, essa tendência grega à fragmentação política tem sido explicada, por tradição, em termos de determinismo geográfico, porque o território grego, tão acidentado, dificultava as comunicações internas e favorecia o isolamento das cidades. Por outro lado, o litoral, com seus portos, era um convite quase onipresente às navegações e à riqueza que o comércio marítimo podia trazer.
Não obstante, leitores, a hegemonia grega foi breve (²), e a romana, muito mais longa, também passou. Haverá alguma que dure para sempre?

(1) ESTRABÃO. Geografia, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Seu estilo de vida, contudo, tem atraído muita gente ao longo dos séculos.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Nos terreiros das antigas fazendas de café

Terreiro de uma fazenda de café, Século XIX (¹)

Um bom terreiro, com chão firme, era essencial às antigas fazendas de café, porque era nele que os pequenos frutos vermelhos eram espalhados após a colheita. O príncipe Adalberto da Prússia, que chegou ao Brasil em setembro de 1842, relatou, depois de visitar a fazenda Aldeia:
"Assim que o café é colhido pelos negros, as bagas são postas a secar no terreiro, um pátio diante da casa - uma espécie de eira de barro batido -; em seguida levam-nas em grandes caixas para os pilões movidos por água, e por fim para as máquinas de limpar café, por onde passam duas vezes. Só então o café está pronto para ser carregado pelas tropas e transportado." (²)
Pouco além de duas décadas mais tarde, o casal Agassiz, à frente da Expedição Thayer, também esteve no Brasil, deixando registrada esta observação sobre o uso do terreiro na fazenda Fortaleza de Santana:
"[...] os negros dividem em lotes a colheita do dia e a arrumam em pequenos montículos no terreiro. Quando o café está bem seco, e por igual, espalham-no em camadas de pouca altura sobre a extensão toda do terreiro, onde ainda recebe por algum tempo os raios do sol; os grãos são em seguida descascados com auxílio de máquinas muito simples que se usam em todas as fazendas, e a manipulação está concluída." (³) 
É importante assinalar que esses viajantes se referiam ao café cultivado e rusticamente beneficiado nas próprias fazendas, antes da grande expansão cafeeira pelo Oeste Paulista. Devido à demora na modernização das práticas agrícolas e pelas dificuldades quanto ao transporte (⁴), o café brasileiro, destinado à exportação, sofria questionamentos em relação à qualidade e encontrava, por isso, obstáculos para colocação no mercado internacional.   

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazonas - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 129.
(3) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 131.
(4) Notem, leitores, a referência às tropas de muares no relato feito pelo príncipe Adalberto da Prússia.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Os muros da Babilônia

"A Terra compõe-se de reinos, os reinos compõem-se de cidades, as cidades compõem-se de casas e campos, e principalmente de homens, e tudo isto, que tudo é terra (e toda a Terra) perpetuamente está passando. Daniel revelando a Nabucodonosor a inteligência da sua estátua, disse que Deus muda os tempos, e as idades, e conforme elas passa os reinos de uma parte para outra: Ipse mutat tempora, et aetates: transfert regna, atque constituit. Assim passou o reino do mesmo Nabuco para a Pérsia, o dos persas para a Grécia, o dos gregos para Roma, e dos romanos para tantos outros, quantos hoje coroam outras cabeças, as quais se devem lembrar daquela infalível sentença: Regnum a gente in gentem transfertur propter injustitias."
Padre Antônio Vieira, Sermão da Primeira Dominga do Advento, 1655

Os antigos habitantes da Babilônia eram apaixonados por tudo quanto fosse monumental. Seus templos, palácios, mesmo a muralha que cercava a capital de seu império, tudo parecia construído para a habitação de gigantes. Embora a megalomania não fosse escassa entre povos da Antiguidade (¹), é preciso reconhecer que monarcas babilônios tinham predileção por ela.
Muitas cidades antigas tinham muralhas (²), e o material mais geralmente empregado em sua edificação eram as pedras, sempre que elas estivessem disponíveis. Em Babilônia, porém, as muralhas foram construídas com uma espécie de tijolos. Se pudermos dar crédito ao que disse Heródoto no Livro Primeiro de suas Histórias (³), os tijolos (⁴), uma vez modelados, eram postos em fornos, para que, devidamente queimados, tivessem maior resistência. Para ligar os tijolos entre si, à medida que eram empilhados para formar a muralha, os mesopotâmios empregaram o que o mesmo Heródoto descreveu como betume quente. 
Ninguém deve imaginar que, por não ser feita de pedra, a muralha da Babilônia fosse pouco resistente. Não era de modo algum uma edificação frágil, que viesse abaixo ao soprar do primeiro vento. Ainda de acordo com Heródoto, a muralha era larga o suficiente para que, sobre ela, um carro de guerra ou uma carroça com seus animais de tração pudessem transitar sem qualquer dificuldade. Além disso, à semelhança de outras cidades importantes da Antiguidade, Babilônia era dotada de uma muralha composta (⁵), ou seja, havia mais de um muro para protegê-la, dificultando o ataque de inimigos que intentassem o cerco. Era, portanto, improvável que fosse derrotada pelos métodos convencionais de sítio. Por essa razão, Ciro, o persa, e seus comandados, precisaram desenvolver uma estratégia, tão brilhante quanto trabalhosa, para conquistar a cidade, que foi tomada em 539 a.C.

(1) Considerem-se, como exemplo, as construções do Egito Antigo.
(2) Para proteção em caso de guerra.
(3) Algumas afirmações de Heródoto podem ser reputadas como lendárias. Neste caso, porém, temos as descobertas arqueológicas para confirmação de que seu relato, ainda que muito simples, foi, em essência, verdadeiro.
(4) De acordo com Austen Henry Layard (Nineveh and Babylon / London: John Murray, 1882, p. 288), os babilônios chegaram ao requinte de empregar tijolos coloridos, predominando o azul, o vermelho, o amarelo, o branco e o preto. Pode-se imaginar a impressão que isso fazia, em meio à paisagem da Mesopotâmia.
(5) Plínio, o Velho, que viveu no Século I d.C., referiu-se à magnífica muralha de Babilônia em Naturalis historia, Livro VI, dizendo que, em seus dias, quase nada mais restava da antiga cidade.



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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Como indígenas se referiam ao rei de Portugal

Uma carta escrita pelo padre Antônio Vieira em 1653 e transcrita pelo padre José de Moraes na História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará (¹) traz uma revelação surpreendente quanto ao modo como indígenas se referiam ao rei de Portugal. O destinatário era o provincial jesuíta do Brasil, e o assunto principal, uma expedição da qual Vieira e outros inacianos haviam participado, percorrendo o rio Tocantins, com a finalidade, assim pensavam eles, de fazer contato com nativos para a catequese. Colonizadores que os acompanhavam tinham, porém, outros planos, porque viam nessa viagem uma oportunidade excelente para a captura e escravização de indígenas.
Por esse tempo, já eram corridos mais de cento e cinquenta anos que portugueses frequentavam o Brasil, não sendo, por essa razão, nada espantoso que indígenas que se relacionavam, de um ou outro modo, com colonizadores, tivessem conhecimento da existência de um rei em Portugal. No entanto, é possível que não entendessem muito bem a questão do poder hereditário e imaginassem que, década após década, o rei era sempre o mesmo, algo que se pode inferir das palavras de Vieira, ao relatar o encontro com parentes de líderes tribais, que, segundo o jesuíta, estavam dispostos a receber a catequese, mas nada queriam com os colonizadores (tinham razões de sobra para isso):
"[...] Em companhia deste índio vieram seis da nação a que íamos buscar, filhos e sobrinhos dos principais, com os quais e com os dois que vieram desde o Pará não temos perdido tempo, declarando-lhes a tenção de Sua Majestade, e a nossa, [...] e nos têm prometido que não hão de admitir senão o estar juntos, e ser filhos dos padres, e vassalos de El-Rei." (²)
Prossegue o padre Vieira:
"[...] Pasmei de ver, quão familiar é entre eles, este nome de rei, e quão continuamente o trazem na boca; e querendo eu saber, que conceito faziam da palavra, e o que cuidavam que era rei, responderam: Jára omanó eyma, que querem dizer: Senhor que não morre. [...]" (³)
E Vieira, ousado praticante de esgrima verbal, assim concluiu o episódio: 
"[...] Explicamos-lhes que imortal era só Deus; mas por este alto conceito que fazem estes gentios do nosso rei (⁴) mereciam ao menos, que em prêmio da imortalidade que lhe atribuem, os defendessem eficazmente de tantas violências." (⁵)

(1) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 470.
(3) Ibid.
(4) D. João IV, nessa ocasião.
(5) MORAES, José de S.J. Op. cit., p. 470.


terça-feira, 8 de outubro de 2019

Assim como no Brasil Colonial, havia falta de dinheiro amoedado no Paraguai

Não só no Brasil é que dinheiro amoedado era escasso nos tempos coloniais. Também no Paraguai havia falta de moeda. Falando da cidade de Asunción, na qual se supunha haver dez mulheres para cada homem, o padre Antonio Ruiz de Montoya, missionário jesuíta,  afirmou: 
"[...] não tem minas de prata nem de ouro, nem circula dinheiro algum. O comprar e o vender se fazem pela troca de uma coisa por outra. Há, contudo, um gênero inventado de pesos ocos, porque assim são chamados frequentemente os pesos pelos quais se avaliam as coisas; e assim, por um patacão (¹) de oito reais de prata, dão três pesos ocos em frutos da terra, que é muito fértil." (²) 
É fácil perceber que, ao declarar inexistentes as minas de ouro e prata, Montoya justificava, por consequência, a falta de dinheiro amoedado em Asunción. Ora, meus leitores, se o Brasil, com um vasto litoral que facilitava o comércio com a Metrópole, fazia do açúcar e de outras mercadorias sua moeda, que dizer, então, do Paraguai, região colonial espanhola situada no interior da América do Sul? 

(1) Moeda antiga recunhada.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. A edição original foi impressa na Espanha em 1639. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Jacarés rondavam as canoas de uma expedição pelo Tocantins no Século XVII


Tentem imaginar, leitores, que vocês vivem em meados do Século XVII e fazem parte de uma expedição pelo rio Tocantins, em uma área quase desconhecida para os colonizadores. Sol forte, mosquitos, comida não muito farta - essas seriam algumas das dificuldades. Pois saibam que uma expedição assim de fato aconteceu, e um de seus líderes, o jesuíta Antônio Vieira, que pretendia catequizar indígenas e que, para além disso, era hábil com as palavras, fossem elas faladas ou escritas, assim narrou um episódio curioso, em uma carta destinada ao provincial de sua Ordem, que residia em Salvador:
"A tarde deste mesmo dia de São Tomé (¹) tivemos festejada com touros de água, que vimos de palanque, porque estando nós alojados em um assento sobre o rio à sombra de árvores com as canoas abicadas em terra, vieram dois crocodilos (que aqui chamam jacarés) a rondá-las por fora." (²)
Não esperem conhecimentos profundos de zoologia por parte do missionário dedicado que era Vieira. Seus notáveis talentos iam em outra direção. Continua seu relato, explicando como reagiram indígenas e colonizadores à chegada dessas visitas inesperadas:
"Não provaram neles [jacarés] os índios as suas flechas, porque já sabem que as conchas [sic] de que estão armados são impenetráveis a elas, sendo que as flechas de cana, a que chamam taquaras, não há saia de malha tão forte nem tão dobrada que lhes resista, e se são tiradas de boa mão passam uma porta de madeira rija de parte a parte. Os nossos soldados porém empregaram neles as suas espingardas, mas com mais acertado efeito que se pudera imaginar, porque a um meteram três balas na cabeça, e posto que a cada tiro mostravam sentir o golpe, saltando e mergulhando abaixo, tornavam logo a sair acima e a nadar como antes, tão alheios de fugir nem temer, que antes buscavam o lugar donde sentiam que viera a ferida. Com a quarta bala finalmente mergulhou e não apareceu mais, com que entendemos que morto se fora ao fundo." (³)
Que recepção tiveram as visitas, digo, os répteis! Nada ecológica, é certo, mas, naqueles tempos, essa não era uma grande preocupação. Vieira devia ter senso de humor: sabia que sua narrativa encheria os leitores de espanto; a carta era destinada ao provincial, mas, provavelmente, seria lida a todos os inacianos do Colégio da Bahia.

(1) 3 de julho; o ano era 1653.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 461. 
(3) Ibid., pp. 461 e 462.


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terça-feira, 1 de outubro de 2019

Um prodígio vegetal que abalou Roma

De acordo com Tito Lívio (¹), historiador romano da Antiguidade, os pontífices tinham, em Roma, as atribuições de zelar pela conservação dos templos e pela realização de sacrifícios aos deuses, aplacar a alma dos defuntos (para que não andassem perturbando os vivos) e fazer expiação quando ocorressem prodígios (²). Deve-se presumir, por conseguinte, que estiveram muito ocupados em 59 d.C., diante de um suposto prodígio que parecia sinalizar, literalmente, um abalo das raízes de Roma. Tácito registrou no Livro XIII dos Annales:
"Neste ano a árvore Ruminal, que existia no lugar dos comícios e que há oitocentos e quarenta anos protegera a infância de Rômulo e Remo, depois que seus ramos secaram, começou também a secar no tronco, fato que se considerou prodígio desfavorável, até que reviveu com novos brotos." (³)
Vamos falar sério, leitores: é improvável que a árvore em questão fosse a mesma dos dias de Rômulo e Remo, isto é, admitindo-se que esses ilustres senhores tenham, de fato, existido, e não sejam apenas figuras lendárias. Uma árvore após outra talvez tenha ocupado o lugar da mitológica árvore sagrada, mas, quando se quer acreditar ou, quando em benefício da estabilidade do poder, é conveniente acreditar, afirma-se, e pronto: assim é que ficou sendo a árvore da infância de Rômulo e Remo. Supersticiosíssimos, os romanos devem ter imaginado que Roma estava por um fio (ou por uma folha, um galho, um tronco, uma raiz). Brotando a árvore, Roma estava salva.

(1) 59 a.C. - 17 d.C.
(2) Cf. Ab urbe condita libri.
(3) c. 47 d.C. 120 d.C.


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