terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Couros de jacaré" - Uma lição inesquecível

Dizemos que uma pessoa que muda facilmente de ideia é volúvel, e não costumamos atribuir um sentido positivo à palavra. Mas, às vezes, mudar de opinião é uma coisa muito boa. Vou dar um exemplo interessante.
Era o ano de 1926 e, mais especificamente, o mês de dezembro. Nessa ocasião circulava o vigésimo-quarto número da Revista Escolar, "Orgam da Directoria Geral da Instrucção Pública", destinada, portanto a professores e outros profissionais da educação.
Pois bem, uma das seções da revista chamava-se justamente "Lições de Coisas", e propunha-se a ser uma orientação prática de como professores poderiam lecionar determinados assuntos. Ora, leitor, indo logo ao que interessa, encontramos nas páginas 37, 38 e 39 uma lição com o insólito título "Couros de Jacaré". Não será preciso morrer de curiosidade, leia o trecho que transcrevo abaixo:

"Professora. - Que está você falando aí, Leonor?
Aluna. - Eu estou contando a Luísa que a Maria tem uns sapatos novos, de couro de jacaré!
A. - Será verdade?
A. - Custa a crer!
P. - Nunca devemos duvidar, sem mais nem menos, da palavra dos outros. Demais a mais, o jacaré fornece, mesmo, excelente couro.
A. - Esses sapatos devem ter custado bem caro!
P. - O couro de jacaré é, realmente, caro.
A. - Então, vale a pena criar jacarés!
P. - Essa é uma indústria nova, e da qual o Brasil poderia tirar muito proveito.
A. - Criando jacarés para aproveitar os couros?
P. - Não seria preciso nem criá-los. Temos jacarés em quantidade.
A. - Onde?
P. - Seis variedades de jacarés infestam, aos milhares, as margens do Amazonas e seus afluentes.
A. - Já ouvi mesmo contar que nessas regiões há muito jacaré.
P. - Os seringueiros dessas paragens fazem-lhes caça matando-os às centenas.
A. - E não acabam?
P. - Não, porque nascem aos milhares, multiplicam-se abundantemente.
A. - Por que os matam?
P. - Os jacarés circundam as barracas dessa pobre gente, devorando aves e animais domésticos. Bezerros e novilhas são sacrificados por essas terríveis feras.
A. - Que horror!"

E segue nesse mesmo tom, pelas páginas seguintes. 
Vamos exercitar a técnica de resumo: Couro de jacaré é muito lucrativo e, como há jacarés demais no Brasil, podemos caçá-los e ganhar dinheiro com isso, sem nenhuma preocupação, porque os jacarés nascem em grande quantidade e são animais nocivos, que prejudicam os seringueiros. Que tal? Que horror!
De onde veio essa mentalidade predatória? Sem dúvida, do hábito colonial de pilhar, para a Metrópole, tudo o que de valioso houvesse na Colônia. Triste é ver que, em 1926, portanto mais de cem anos após a independência, essa noção de que a natureza estava à disposição, para ser explorada sem maiores preocupações, não apenas ainda existia mas, grande absurdo, era ensinada.
Orgulhosamente, assumimos que nossa geração mudou de ideia e, ninguém que seja mentalmente saudável, daria agora uma aula desse tipo. Temos boas leis de proteção à fauna, que podem, todavia, ser aperfeiçoadas, e estamos, de um modo geral, preocupados em algum nível com problemas ambientais. Do alto de nossa pretensa superioridade, olhamos para o passado esquecendo que, por vezes à nossa volta, a devastação campeia alegremente, quase sem ser molestada. Repito, temos boas leis - é tudo uma questão de fazê-las cumprir. E, exigir isso é, também, uma questão de cidadania.


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