Na postagem anterior tratei de como foi divulgada a partida final do Campeonato Paulista de Futebol de 1903. É bom explicar que o campeonato tivera sua primeira edição no ano anterior, 1902. Chega a hora, porém, da grande final de 1903. A edição da última semana de outubro da revista Vida Paulista anunciava o "match", como então se dizia, para o Velódromo Paulistano, que desde 1901 recebia jogos de futebol. Entretanto o número seguinte relata a partida acontecendo no "Parque da Antarctica". Havia, na época, poucos lugares para a prática de futebol em São Paulo, e um dos mais convenientes era o campo que existia em uma área de esporte e lazer pertencente à Companhia Antarctica Paulista, por isso mesmo chamado de "Parque da Antarctica". Isto soa familiar? O caso é que, no início do século, a empresa proprietária alugava o campo de futebol para as equipes que começavam a surgir e não tinham um local apropriado para mandar seus jogos, e eis porque a final do campeonato de 1903 também acabou sendo jogada lá. A título de informação, esse campo de futebol foi definitivamente vendido ao Palestra Itália em 1920.
Voltemos à final, apreciando o relato publicado na revista Vida Paulista, Ano 1, nº 8, de novembro de 1903:
"Como prevíamos, foi um verdadeiro sucesso o match de desempate do campeonato deste ano.
Domingo passado, às 3 e meia horas da tarde, entravam, no campo do Parque da Antarctica, os valorosos teams do São Paulo Athetic e do Athletico Paulistano, sendo recebidos com uma prolongada salva de palmas.
Dado começo ao jogo pelo referee sr. Friese, o team do Athletic mostrou logo a sua superioridade ao adversário. Um ataque fortíssimo muito bem combinado entre Miller, Pool e Boyes; uma defesa maravilhosa, admiravelmente sustentada por Jeffery, Robinson e Hoddkis.
No Paulistano não se notava o mesmo: o ataque esteve indeciso e fraco, salvando-se apenas Ibanez e Sampaio, que muito trabalharam, a defesa concentrava-se toda, quase que exclusivamente em Geraldo, que jogou extraordinariamente bem, merecendo, por assim dizer, as honras do dia. Mais de uma vez salvou brilhantemente o seu goal.
Apesar dessa superioridade visível do team do Athletic, o Paulistano conseguiu marcar um goal no primeiro half-time, sem que o conseguisse o Athletic.
Foi um verdadeiro delírio, quando o Paulistano marcou o goal!
Palmas, vivas e bravos, ecoavam de todos os pontos do Parque, completamente cheio de espectadores.
De momento a momento ouvia-se o canto de guerra do Paulistano, como que animando e encorajando seus jogadores a prosseguirem na luta travada.
O Athletic não esmoreceu. No segundo half-time, o jogo foi todo seu. O ataque fortaleceu-se e a defesa foi mais vigorosa. Pool conseguiu marcar dois goals para o seu team, sendo entusiasticamente aplaudido.
E assim terminou esse memorável match com a vitória do Athletic por dois goals a um.
Terminado o jogo, foi entregue a taça ao sr. Charles Miller, captaim (sic) do Athletic, em meio de uma entusiástica salva de palmas."
Então, leitor, finda a partida, é tempo para nossos comentários.
1) Muito educados os torcedores que, em 1903, aplaudiram a entrada de ambas as equipes, não? É quase inacreditável, mas no campo do Velódromo Paulistano havia uma placa em que se lia "Proibido Vaiar".
2) Note o juiz (referee) e o capitão (captain!) sendo chamados de "sr." (senhor)!
3) Perceba que não há referência a jogadores de meio-campo - só se fala em atacantes e defensores, o que demonstra, talvez, a pouca intimidade do articulista com questões futebolísticas, além de, por suposto, indicar alguma coisa sobre as táticas da época. É claro que as designações das posições ocupadas pelos jogadores, totalmente em inglês, podiam bem servir de orientação para os neófitos no esporte. Aliás, a narrativa toda da partida nos deixa com aquela sensação de quem lê redações escolares do tipo "Festa de Aniversário", "Férias na Fazenda do Vovô" ou "Final de Semana na Praia".
4) Muito interessantes os atletas citados: no São Paulo Athetic todos têm nomes britânicos, enquanto que no Paulistano menciona-se Ibanez, Sampaio e Geraldo. Presume-se que esse fato acrescentasse alguma pimenta ao espetáculo.
5) "Delirante" a descrição das comemorações relacionadas ao gol do Paulistano. "Palmas, vivas e bravos" parecem antes relacionados a um espetáculo operístico que a um jogo de futebol, pelo menos de acordo com nossos hábitos do século XXI.
6) Vem o ponto culminante, quando novamente a plateia dá uma demonstração de civilidade, aplaudindo a premiação, quando Charles Miller (o famoso "dono da bola"), recebe a taça, por ser o capitão de sua equipe.
Teriam as coisas acontecido mesmo assim? Ou estava a imprensa divulgando apenas o que se considerava apropriado, aquilo que pessoas refinadas esperavam ler em sua publicação favorita? Seja lá como for, logo veremos que nem tudo no nascente futebol se fazia com aplausos e polidas expressões de encorajamento. O esporte iria bem depressa conquistar multidões de adeptos em todo o Brasil, e os costumes dos torcedores passariam, gradualmente, por considerável mudança. Mas isso já é assunto para uma outra postagem.
Veja também:
Veja também:
- Futebol no Brasil no início do Século XX - A final do Campeonato Paulista de 1903 (Parte 1)
- Futebol no Brasil no início do Século XX - Os torcedores
- Futebol no Brasil no início do Século XX - Os uniformes dos jogadores
- Futebol no Brasil no início do Século XX - Corrida de touros?
- Futebol no Brasil no início do Século XX - Jogadas um pouco desastradas
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