quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Futebol no Brasil no início do Século XX - Corrida de touros?

É verdade que o público estava, no início do século XX, acostumado a atividades esportivas tais como remo, canoagem, esgrima ou hipismo, nas quais havia pouco ou nenhum contato físico; é verdade, também, que o futebol, com seus praticantes disputando cada jogada intensamente e com  muito contato, podia causar alguma estranheza nas plateias menos habituadas à modalidade. Todavia, o que lemos nesta pequena notícia que transcrevo, a seguir, dá uma ideia do que podia andar acontecendo em algumas partidas. Veja, leitor, começa como quase todas as notinhas futebolísticas da época:
"O match São Bento versus Ypiranga atraiu ao Velódromo numerosa e seleta concorrência.
Tratava-se do encontro entre duas equipes poderosas e havia dúvida quanto ao resultado. O match ia dar trabalho aos torcedores. Durante todo o jogo os dois clubs se portaram valorosamente. Foi uma constante alternativa, em que a vitória pairou ora sobre um, ora sobre outro club. O resultado foi um empate entre as duas equipes. Durante o match, os jogadores que mais se distinguiram foram: do São Bento, Irineu, José Pedro e Montenegro; do Ypiranga, Friedenreich, Alencar e Xavier. Este último podia ter sido o maior auxílio para a sua equipe, se abandonasse o jogo pessoal, que é pouco produtivo."
Não, não acaba aqui. Leia mais:
"Quanto aos incidentes desagradáveis dois dois últimos matches estamos certos que não mais se repetirão.
É preciso não permitir que o jogo de foot-ball se transforme em corrida de touros." (¹)
Corrida de touros? Quem escreveu em 1914 não cuidou em dizer o que teria motivado essa observação, já que o assunto devia ser voz corrente - nós, em 2010, é que não sabemos o que realmente aconteceu. Teria sido algum desentendimento entre torcedores? Ou a "tourada" teria corrido solta dentro das "quatro linhas"?
Bem, não temos certeza, mas podemos ao menos conjecturar o que significaria, logo no início da notícia, dizer que o match atraiu "numerosa e seleta concorrência". Talvez fosse um modo de dizer que, nas partidas anteriores, houvera problemas porque o público não era adequado... Ou seria ironia?
Esses fatos davam sobejos motivos aos detratores do futebol. Lima Barreto, que já mencionei em uma postagem anterior, escreveu:
"Nos bondes, nos cafés, nos trens não se discutia senão futebol. Nas famílias, em suas conversas íntimas, só se tratava do jogo de pontapés. As moças eram conhecidas como sendo torcedoras de tal ou qual clube. Nas segundas-feiras, os jornais, no noticiário policial, traziam notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo; mas, nas seções especiais, afiavam a pena, procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios." (²)
E mais:
"Sendo assim, o nosso Conselho Municipal derrama-se, esparrama-se, derrete-se em favores aos moços de mais de quarenta anos que se dão ao sacrifício de dar pontapés numa bola, para desenvolvimento dos respectivos mollets e gáudio das damas gentis que, assistindo-lhes as performances aprendem ao mesmo tempo o calão dos bairros escusos, com cujos termos os animam nas pugnas. É verdade que essas singulares vestais dos nossos modernos coliseus, às vezes, engalfinham-se no correr da luta. É que elas têm partido: uma é pelo leão do Atlas e a outra é pelo retiário." (³)
E com esse engalfinhar-se das damas (ou seriam vestais?), termino a postagem, apenas dizendo que Lima Barreto, que morreu em 1922, não viu quase nada em se tratando de mau comportamento de atletas e torcedores. Não viu o público de estádios completamente lotados a berrar contra as respeitáveis mamães dos árbitros, dos atletas e dos treinadores, não viu torcidas em fúria invadindo gramados, cercando ônibus de jogadores ou atirando pedras nos adeptos de outros times, não viu tiroteios às portas das praças de esportes, não viu jogadores demonstrando, para agredir oponentes, habilidades dignas de outras modalidades. Teria ficando assombrado com tudo isso. Talvez esboçasse um "não falei?".
Mas também não viu o congraçamento de países, em muitos casos adversários em tudo o mais, disputando civilizadamente competições esportivas, não viu o papel educativo que as atividades esportivas desempenhariam, nem mesmo a importância que o futebol acabaria tendo, no Brasil, em termos de construção de algum tipo de identidade nacional, por frágil que seja. Como em quase tudo, temos pelo menos dois lados nessa história, é apenas uma questão de escolha e ponto de vista.

(1) A CIGARRA, 15 de junho de 1914.
(2) LIMA BARRETO. Marginália
(3) LIMA BARRETO. Vida Urbana  - publicado originalmente em ABC, 26 de agosto de 1922.

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