domingo, 30 de dezembro de 2012

A importância e os deveres dos mestres do açúcar nos primórdios da colonização na Capitania de São Vicente

O primeiro produto importante que a Capitania de São Vicente, fundada por Martim Afonso de Sousa, forneceu ao comércio com os mercados europeus foi o açúcar. Nisso foi ela semelhante a várias outras Capitanias no Brasil.
Para assegurar que a cana-de-açúcar seria corretamente moída e aproveitada, produzindo um açúcar de boa qualidade, não bastavam engenhos bem equipados, ou mão de obra (quase sempre escrava) para manter as máquinas em funcionamento. Era preciso sempre contar com um verdadeiro especialista, o "mestre do açúcar", um homem livre devidamente qualificado para sua ocupação, que, como se verá, precisava ser pessoa confiável e honesta, devidamente juramentada diante da Câmara, aliás condição indispensável ao exercício de seu trabalho. É o que nos diz Frei Gaspar da Madre de Deus, em suas Memórias Para a História da Capitania de São Vicente:
"Tanto apreço faziam os antigos da lavoura de canas, e tão necessárias julgavam a perícia e boa consciência dos mestres e purgadores do açúcar, que os provedores-mores davam provisão a um homem inteligente para examinar os ditos oficiais, antes de entrarem a exercitar seus ministérios, e a Câmara os obrigava a irem nela jurar, que não prejudicariam aos donos, assim na repartição como na purgação do açúcar, nem consentiriam que pessoa alguma levasse melado ou caldo, e outrossim que aproveitariam tudo quanto se fizesse." (*)
É preciso lembrar, para bom entendimento do trecho acima citado, que eram poucos os engenhos, e muitos os lavradores que cultivavam a cana. Disso seguia-se que cada lavrador devia mandar a cana que produzia para que fosse moída em um engenho que não era seu. Portanto, era fundamental que houvesse um procedimento honesto da parte dos mestres do açúcar, para que ninguém fosse lesado no açúcar que deveria receber, ao final do complexo processo de produção de se realizava nos engenhos.

(*) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 65.


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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Os três reis magos, o rei Herodes e a obsessão pelo poder


Os três reis magos, no presépio mecânico de
Santana de Parnaíba, 
Natal de 2011 (¹)
Todo presépio que se preza tem, por suposto, além de Jesus, Maria e José, alguns pastores de ovelhas e três reis magos. Pode até ter outras personagens, mas as mencionadas não podem faltar. Ocorre que, dos quatro Evangelhos, só dois, o de São Mateus e o de S. Lucas, tratam do nascimento de Jesus. Destes dois, apenas o de São Mateus conta a visita dos magos. Não diz, entretanto, que eram três e, muito menos, que eram reis, apenas mencionando que vinham do Oriente. É de se perguntar se, sendo reis, o que teria ocorrido a seus respectivos reinos na sua ausência. Não obstante, a milenar tradição cristã assegura que sim, eram três, que eram reis, que formavam um grupo multiétnico e até lhes sabe os nomes: Gaspar, Melquior e Baltasar.
Em parte, entendem-se as inferências surgidas com o passar do tempo, por terem os magos, de acordo com a narrativa do Evangelho segundo S. Mateus, trazido três presentes - ouro, incenso e mirra - e também porque tais dádivas, tidas como preciosas, deviam provir de potentados orientais, que as apreciavam muito. Mas são apenas especulações.
Presépio vivo, parte de um Auto de Natal
contemporâneo 
representado em Holambra (SP)
no dia 9 de dezembro de 2012 (³)
Na Idade Média era usual que, diante das igrejas, fossem representadas pequenas peças, ou "Autos", cujos textos, geralmente memorizados, foram se perdendo, infelizmente, com o passar do tempo. Um dos que sobreviveram, ainda que apenas em fragmentos, é um Auto dos Reis Magos, datado do século XII, que apresenta esse interessante trechinho, no qual Herodes, rei da Judeia, expressa toda a sua irritação diante da notícia do nascimento de um novo rei (apenas um bebê desconhecido), que acabara de ouvir dos magos que haviam chegado a Jerusalém:
"Quem viu nunca tal mal,
Sobre rei outro tal!
Ainda não sou eu morto,
Nem sou na terra posto!
Outro rei acima de mim?
Nunca tal eu vi!
[...]
Por verdade não o creio,
Até que eu o veja."
Sabem os senhores leitores que a mania de agarrar-se ao poder não é coisa nova sobre a terra. Os monarcas da Antiguidade, aliás, eram exemplos acabados disso, mesmo quando se tratava apenas de um régulo como Herodes. A regra era deixarem o trono apenas quando morriam e, por ser essa regra obedecida é que tantos reis acabavam assassinados (²). Não era muito diferente a situação pela época em que o Auto dos Reis Magos foi composto, de modo que podemos ver nele, se quisermos, não apenas uma representação piedosa dos eventos ligados ao Natal, mas um retrato da mentalidade política medieval.
E não só medieval. É coisa da natureza humana... Ou não?!

(1) Fiz esta foto do belo presépio mecânico de Santana de Parnaíba, com personagens em tamanho um pouco acima do natural, conforme montado para o Natal de 2011. Instalado no centro histórico, era posto em funcionamento durante as noites do ciclo de festas natalinas. Ocorre que lá cheguei às dez horas da manhã, e os funcionários por ele responsáveis fizeram-me a enorme gentileza de, voluntariamente, irem ligá-lo para que eu pudesse fazer minhas fotografias e filmagem. Mesmo um ano depois, fica aqui meu agradecimento. Valeu, gente!
(2) Não foi o caso de Herodes, o Grande, embora ainda se discuta a natureza da enfermidade que o levou à morte.
(3) O presépio vivo é representado em Holambra há 12 anos. Em 2012, além de contar a origem do Natal, a representação incluiu uma referência aos valores cristãos no mundo atual. Bela encenação. Se você não viu a deste ano, talvez possa fazer planos de estar lá no ano que vem.


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domingo, 23 de dezembro de 2012

Cadeirinhas de arruar - Parte 3

O trânsito não muito seguro de seges, coches, carruagens e cadeirinhas de arruar


Depois das duas postagens anteriores, alguns de meus leitores podem ter considerado que redes ou cadeirinhas de arruar eram meios de transporte absolutamente seguros, ainda que muito lentos. Combinavam bem com o cenário dos tempos coloniais, com as ruas sossegadas, com a pouca pressa de quem caminhava. Enfim, eram parte de um estilo de vida algo bucólico, que se perdeu com a aceleração trazida pelos tempos da industrialização. Certo?
Talvez não. Mesmo quem se fazia transportar em cadeirinha podia envolver-se em um acidente. Neste caso, a Literatura pode ser muito útil à História.
Há um pequeno episódio narrado por Machado de Assis em Quincas Borba no qual as cadeirinhas fazem parte do cenário, mas uma de suas usuárias acaba sendo tragicamente esmagada pelas rodas de uma sege e pelas patas de duas mulas que a conduziam. Passou-se durante o chamado Período Joanino. É hora de ler:
"Foi no Rio de Janeiro [...], defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da Rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois."
Naturalmente o incidente contado por Machado devia ter um mínimo de verossimilhança, ou não entraria em Quincas Borba. Mas, o que nos interessa, mesmo, é verificar que, até nos dias das cadeirinhas, seges, coches e carruagens, acidentes graves podiam ocorrer. Talvez o que diferencie o mundo de hoje e o de antigamente não seja exatamente se tais fatos ocorrem, mas com que frequência.


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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Cadeirinhas de arruar - Parte 2

A primeira "cadeira de telhadilho" em São Paulo


Nos tempos coloniais, fazer-se transportar em uma rede já era um luxo, coisa que se concedia às autoridades, às mulheres, aos doentes, porque pressupunha, evidentemente, dispor de ao menos dois carregadores, geralmente escravos. Se a distância a ser percorrida era grande, impunha-se a exigência de ter não apenas dois, mas quatro carregadores, porque era necessário fazer um revezamento. Que folga, pensarão alguns leitores...
Um exemplo, extraído do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, ilustrará essa questão do transporte em rede:
"E logo à minha vista contou o dinheiro e lho deu, entregando-lhe também a escrava; e a fez meter em uma rede aos ombros de dois escravos, e ir para a casa de uma parenta dela mesma." (*)
Ora, se nem todo mundo podia ter uma rede e escravos para passear mundo afora, imagine-se então a agitação que deve ter tomado conta da pequenina São Paulo do Século XVII, quando a mulher de Fernão Paes de Barros ousou ser a primeira a fazer-se transportar em uma "cadeira de telhadilho", conforme conta Pedro Taques de Almeida Paes Leme na Nobiliarchia Paulistana:
"Foi casado na cidade do Rio de Janeiro com D. Maria de Mendonça, que, conduzida para esta cidade de São Paulo, teve o tratamento que merecia, como esposa de tão nobre cavalheiro, e fazendo-se conduzir em cadeira de telhadilho, a primeira que até aquele tempo apareceu em São Paulo."
 
(*) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 196.


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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Cadeirinhas de arruar - Parte 1

Quem passeava em uma cadeirinha de arruar


Cadeirinha de arruar era exatamente o que o nome diz: uma cadeira, conduzida por escravos, na qual alguém era transportado pelas ruas de uma localidade. Esse "alguém" era quase sempre do sexo feminino. A cadeirinha tinha, em geral, alguma cobertura, que servia para manter o "transportado" (ou a transportada) longe dos olhos curiosos dos passantes, o que condizia perfeitamente com os costumes vigentes no Brasil Colonial, segundo os quais as mulheres "de bem", principalmente as casadas, viviam reclusas, sob estrita vigilância, tendo contato apenas com os parentes próximos e, eventualmente, com o padre confessor, ainda que, neste último caso, não poucos escritores da época recomendassem cautela (¹). As gelosias (²), que permitiam ver sem ser visto (vista), eram um outro desses artifícios que se empregavam para isolar as mulheres de qualquer contato com quem não era membro da família. 

Mulher em cadeirinha, de acordo com Debret (³)

Passear em uma cadeirinha de arruar pressupunha, no entanto, um certo padrão econômico, pois era necessário dispor do número necessário de escravos para a tarefa, ou seja, pelo menos dois, dependendo do modelo de cadeirinha que se usava.
Em As Minas de Prata, José de Alencar fez referência às senhoras e senhoritas que iam à igreja em suas respectivas cadeirinhas: "...a igreja enchia-se de fiéis, e no adro viam-se já as cadeirinhas e palanquins que traziam à missa as donas e filhas dos ricos senhores da Bahia." E, pouco depois, na mesma obra: "O moço ia replicar, quando uma cadeirinha de cúpula dourada, que vinha das bandas do Terreiro do Colégio, carregada por dois negros vestidos à mourisca, com aljubas de lã escarlate, excitou vivamente sua atenção." (⁴)
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Quem ficou muito curioso só com esse trecho, tem um bom remédio: ler toda a obra!


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domingo, 16 de dezembro de 2012

As vacas magras do Natal

Como você cumprimenta seus familiares e amigos pelo Natal? Antigamente era comum o envio de cartões pelo correio, mas hoje muita gente prefere usar as redes sociais para isso. De qualquer modo, seus cumprimentos, reais e/ou virtuais, provavelmente incluem a expressão de desejos como "Boas Festas", "Feliz Natal", Próspero Ano Novo", ou coisas semelhantes, que podem variar um pouco segundo as tradições e crenças de cada um, mas que não costumam fugir muito ao padrão. É tudo parte daqueles costumes que pessoas educadas, no mundo ocidental, costumam fazer, sinceramente, algumas vezes, ou apenas por civilidade, em outras.
Há noventa anos, em 16 de dezembro de 1922, a revista carioca O Malho (¹) trazia na capa uma referência nada auspiciosa ao Natal e ao novo ano que se aproximava. Vejam, senhores leitores:
 

A legenda diz:
"JECA - Ó gentes! Pois você "num tá vendo"? Aquilo é o "Natá" que vem trazendo sete "vaca magra"."

Sim, a ideia é que, para o povo brasileiro, o ano seguinte seria de "vacas magras"; mas, numa contradição apenas aparente, o cartunista desenhou vaquinhas não muito franzinas, aliás, devidamente nomeadas: "Finanças Nacionais", "Falência Municipal", "Inquilinos e Proprietários", "Impostos em Perspectiva" (²), "Carestia da Vida" e "Cortes Inevitáveis".
Depois de nove décadas, pergunto: Alguém aí já ouviu falar dessas coisas, em tempos recentes? Pois tanta falta de criatividade já começa a incomodar!

(1) O MALHO, Ano XXI, nº 1057, 16 de dezembro de 1922. O exemplar original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional. Imagem editada para facilitar a visualização.
(2) O Imposto de Renda, estabelecido em definitivo em 1922, começou a ser pago no ano seguinte.


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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

As secas no Nordeste brasileiro e o Dia de Santa Luzia

As secas que ocorrem de tempos em tempos no Nordeste brasileiro chamaram a atenção de diversos autores desde a época colonial. À medida que exploradores rompiam a "regra" de ocupar apenas o litoral, alguns chegaram a encontrar lugares muito diferentes daquilo que constituía a verdejante paisagem litorânea. E, já no século XIX, o Padre Ayres de Casal iria observar, em relação à Bahia:
"Por toda a parte se cria gado vacum, que seria mais que suficiente para o consumo de toda a Província, se houvesse inverno (¹) e as trovoadas fossem regulares no verão. Já dissemos que os invernos do beira-mar não se estendem a mais de trinta léguas para o interior do Continente, onde só chove havendo trovoadas e proporcionalmente a elas, as quais de ordinário não são abundantes e às vezes quase falham de todo em partes do Norte. O sol duas vezes vertical sobre cada lugar deixa a terra como calcinada: chovendo, o chão cobre-se de erva em poucas semanas e o gado engorda, mas logo que a seca aperta, a verdura desaparece, e os animais só pastam a rama dos arbustos que a conservam, e vão tenteando, tendo água; se os tanques, que as trovoadas encheram, e as torrentes secam, há mortandades." (²)
O mesmo terrível fenômeno da seca foi descrito por Capistrano de Abreu em seus célebres Capítulos de História Colonial:
"[...] Secam os rios, exceto em alguns poços e depressões, murcham os pastos, permanecem nuas as árvores, sucumbe o gado à sede ou à inanição, e a gente morre à fome quando só dispõe dos recursos locais. A necessidade de lutar contra a calamidade inspirou a construção de açudes, a cultura das vazantes, a retirada do gado, a distribuição de ramas para alimentá-lo, as grandes levas de retirantes." (³)
Já se assinalou que parece haver uma certa periodicidade nas secas que afetam o Nordeste - não estritamente exata, por suposto, mas obedecendo a uma lógica ainda não totalmente compreendida. O sertanejo, por sua vez, o grande afetado pelo drama da falta de chuvas, esse intentou um pequeno "experimento", com o qual se supôs prever o futuro, a ser realizado na noite que antecede o dia de Santa Luzia, 13 de dezembro. A descrição de Euclides da Cunha em Os Sertões é simples e precisa:
"No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo."
Ninguém imagine que semelhante teste pode, de fato, prever as condições climáticas com rigor científico. É parte da tradição local, e ainda há quem creia nele. Entretanto, séculos têm transcorrido e, novamente, os meios de comunicação têm noticiado, a todo instante, fatos relacionados à seca neste ano. A despeito dos grandes avanços nos conhecimentos meteorológicos, nada consegue, ainda, realizar aquilo que o sertanejo sempre almejou com a Prova de Santa Luzia. Chega a ser irritante, porém, que tanto tempo se passe, tantas obras contra a seca sejam anunciadas, e chegada a seca, novamente, as calamidades se repitam. Não haverá, mesmo, nada mais definitivo que se possa fazer?
 
(1) Aqui inverno não é uma das quatro estações em que tradicionalmente se divide o ano, mas uma referência à temporada de chuvas.
(2) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 133.
(3) ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998, pp. 18 e 19.


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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

As primeiras moradias dos colonizadores portugueses no Brasil

Alguém de meus leitores já se perguntou quanto às moradias dos primeiros colonos que se estabeleceram no Brasil?
Óbvio, não havia nenhuma casa prontinha, esperando por eles, quando chegavam com suas embarcações, a alguma distância de terra, e então, em botes, eram conduzidos à praia. A primeira noite, com seus ruídos completamente desconhecidos, provenientes das matas ao redor, devia ser sempre assustadora. Construir, pois, um abrigo, que proporcionasse alguma segurança, era providência inadiável. A rapidez com que deviam ser erguidas e a inexistência de muitos dos materiais habitualmente empregados nos Reino tornavam as primeiras habitações coloniais um tanto precárias, embora, posteriormente, a situação tenha melhorado, conforme se vê pelo relato de Pero de Magalhães Gândavo, em sua História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil (*), que se fez publicar em 1576, e na qual pode-se ler:
"E vindo ao que toca ao governo de vida e sustentação destes moradores, quanto às casas em que vivem, cada vez se vão fazendo mais custosas e de melhores edifícios, porque em princípio não havia outras na terra senão de taipa e térreas, cobertas somente com palma. E agora há já muitas sobradadas e de pedra e cal, telhadas e forradas como as deste Reino, das quais há ruas mui compridas e formosas, nas mais das povoações de que fiz menção."
Pela altura em que escreveu, Gândavo estava, talvez, sendo um pouco generoso em sua descrição, mas cuidou em expressar o palpite de que, num tempo relativamente curto, a Colônia estaria marcada por edifícios melhores e mais bem construídos:
"E, assim antes de muito tempo, segundo a gente vai crescendo, se espera que haja outros muitos edifícios e templos mui suntuosos, com que de todo se acabe nesta parte a terra de enobrecer."
O momento inicial da colonização, no entanto, não era para belas residências. Mais vantagem era erguer uma paliçada, com todo o reforço possível, que protegesse as frágeis casinhas de taipa dos ataques, aliás muito prováveis, que viriam por mar (da parte de piratas e corsários) e por terra (dos índios).
 
(*) Para quem deseja consultar essa obra, há uma edição recente do Senado Federal (2008), publicada em conjunto com o Tratado da Terra do Brasil, do mesmo autor.


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domingo, 9 de dezembro de 2012

Como o Brasil progride

Os leitores deste blog que acompanharam as duas postagens anteriores (¹) saberão muito bem ao que é que esta se refere. Na edição de 22 de setembro de 1906 da revista carioca O Malho (²) apareceu um cartoon de página inteira cujo título (em latim!) era "Tempora non mutantur" . Dividia-se em duas partes, uma retratando um acontecimento do século XVIII, outra um fato que estava ocorrendo nos dias da publicação. Vejamos:

Legenda: "No meado do século XVIII, quando estavam construindo o hospital da Penitência: - Como o Brasil progride!! Como isto vai ficar bonito!...

Legenda: "Hoje que o estão demolindo: - Como o Brasil progride!! Como isto vai ficar bonito!!..."

Óbvio, como todo bom cartoon, não precisa de muitas explicações. Apenas quero recordar aos leitores, mais uma vez, que isso era coisa da República Velha, 1906, e não do século XXI.
(2) O MALHO, Ano V, nº 210.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Obras públicas que nunca eram concluídas - Parte 2

Preâmbulo (algo longo, mas necessário)


Há quem não tenha muito apreço pelas opiniões que viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil no século XIX expressavam a respeito do País. Compreendo, mas quero lembrar um fato indiscutível - esses viajantes deixaram relatos que são verdadeiras preciosidades, face à escassez de material escrito sobre algumas épocas e lugares.
Se quisermos ser muito, mas muito generosos mesmo, teremos de considerar que, por volta da época da Independência, os analfabetos no Brasil deviam ser uns 80% dos homens e a quase totalidade das mulheres. Portanto, pouquíssimos brasileiros podiam deixar relatos e anotações de sua vida quotidiana, dos acontecimentos que presenciavam, de suas opiniões políticas. Infelizmente, não temos no Brasil a quantidade de diários de "gente comum" de que dispõem os historiadores em outros lugares. Os documentos oficiais, por sua vez, eram lacônicos, obedecendo a fórmulas mais ou menos estabelecidas, e grafados, frequentemente, segundo uma ortografia inteiramente particular ao escrivão...
Diante disso, não há como negar a importância dos depoimentos de viajantes estrangeiros.
Eram eles às vezes preconceituosos?
Sim.
Nem sempre chegavam a compreender com exatidão o que observavam?
É verdade.
Filtravam o que viam pela lógica de seu país de origem?
Igualmente verdade.
Mas nada disso elimina o uso de seus escritos como fonte de informação. Até porque o estudo das razões pelas quais emitiam determinados pontos de vista é, já por si, muito interessante.

Observações de Saint-Hilaire sobre como se faziam as obras públicas no Brasil


Como já mencionei muitas vezes neste blog, Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês, percorreu boa parte do Brasil em época pouco anterior à Independência. Viajava a cavalo, a pé ou em carroça, conforme as circunstâncias permitiam. Não resulta, pois, nada estranho que desse informações sobre os caminhos que seguia. O trecho seguinte é relativo a uma estrada que fora começada, mas que ainda não se concluíra:
"Trabalhou-se ali, durante muito tempo; gastaram-se somas consideráveis; mas desde que se franqueou a passagem, não só não se concluíram as partes apenas esboçadas, como não foram conservados os trechos já concluídos. As águas já ali cavaram profundas covas e trarão a inutilização desta estrada se mais um ano decorrer sem conserva." (¹)
A seguir, passa a explicar as razões pelas quais tantos empreendimentos públicos ficavam por terminar:
"É mais ou menos assim tudo o que se empreende neste país. Os brasileiros aprendem com facilidade; sabem arquitetar planos, mas entregam-se, demais, ao devaneio, não medindo obstáculos nem calculando os empreendimentos de acordo com os seus recursos.
[...].
O espírito de inveja e intriga mais veemente do que em qualquer outro lugar, interpõe-se a tudo quanto se faz, tudo perturba, favorece o tratante, e desencoraja o homem honesto. Começa-se qualquer empreendimento útil, para logo ser interrompido e abandonado. Às vezes um serviço ordenado pelo governo e que se poderia acabar em pouco tempo, e com despesas mínimas, jamais termina, embora nele se trabalhe sempre." (²)
A tal estrada, que nunca era acabada, ficava na Região Sudeste. Coisa parecida observou no Sul do Brasil, mostrando que o problema era mesmo ligado à estrutura administrativa como um todo, e não restrita a um lugar específico. Referindo-se à restauração que se fazia necessária na igreja em São Miguel (RS), observou:
"João de Deus, um dos primeiros governadores portugueses desta província, pretendia fazer reparos neste edifício; juntou materiais, gastou muito dinheiro, mas com a mudança de governo, o sucessor não aprovou o seu projeto. As restaurações da igreja foram interrompidas, as despesas feitas tornaram-se inúteis. Tal é ainda o inconveniente do poder absoluto outorgado aos governadores de Província. Cada qual começa uma determinada obra e quase nenhum continua a de seu predecessor; o dinheiro das Províncias se dissipa, e estas se endividam para sempre." (³)
O mesmo Saint-Hilaire ainda diria, observando a pressa com que todo trabalho era feito:
"A julgar da sua lentidão e dos poucos meios empregados para economizar o tempo, dir-se-ia que os brasileiros se julgam eternos." (⁴)
Não, senhores leitores, não há nada assim hoje em dia. Isso era coisa do século XIX...

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 19.
(2) Ibid.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 373.
(4) Ibid., p. 107.


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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Obras públicas que nunca eram concluídas - Parte 1

A mentalidade dos colonizadores dificultava a realização de obras públicas muito necessárias


A julgar pelo que escreveu em sua História do Brasil (¹), Frei Vicente do Salvador não tinha em alta conta o que se fazia na Colônia em termos de obras públicas (ou obras feitas com dinheiro público - nem sempre é a mesma coisa). Nascia o problema com o fato de que os colonizadores que vinham à América dita portuguesa não tinham lá grande interesse em desenvolver a Colônia, pensando antes em enriquecer rapidamente para, igualmente rápido, volver ao Reino. Duas citações podem ser úteis para elucidar essa questão, ambas da já mencionada História do Brasil:

a) Buscava-se sempre o bem individual, não o interesse coletivo
"Donde nasce também que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular."

b) Em consequência, descuidava-se do interesse público
"Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há cá de ficar, senão do que hão de levar para o Reino."

Não se esqueçam os leitores que tudo isso era coisa do século XVII...
Para concluir, um exemplo de obra feita com recursos públicos e que nunca era concluída, exemplo dado pelo próprio Frei Vicente do Salvador. Tratava-se de um seminário, cuja construção começara no governo de D. Luís de Sousa (²) e que, pela altura da conclusão do manuscrito da História do Brasil, estava longe de acabar, a despeito dos vultosos recursos nela investidos:
"Fez em seu tempo uma formosa casa contígua com as suas para se fazer nela a Relação, que até então se fazia em casas de aluguel, e porque um seminário que El-Rei havia mandado fazer com renda para quatro órfãos estudarem se havia desfeito, por as casas serem de taipa de terra e caírem, começou outras de pedra e cal, mas nem por ser obra tão pia, nem por deixar já para ela seis mil cruzados consignados, houve quem lhe pusesse mão até agora, e queira Deus que alguma hora o haja."

(1) Supõe-se que o manuscrito estivesse concluído por volta de 1627.
(2) D. Luís de Sousa concluiu seu período de governo na Cidade da Bahia (Salvador) em outubro de 1621.


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domingo, 2 de dezembro de 2012

Roupa de missa

"Tomei o bonde conveniente e parti para a casa do meu amigo, apreciando o domingo, cheio de rapazes endomingados, de damas de laçarotes, de automóveis pejados de gente, de jogadores de football, de amadores de corridas, – gente feliz por ter um dia em que não faz nada."
                                                                                                                     Lima Barreto, Vida Urbana
 
"Traje de missa" é uma expressão popular já pouco usada, que se refere a uma roupa arrumadinha, de melhor qualidade (se comparada ao vestuário comum, usado em dias de trabalho). De igual modo, quando se dizia que um sujeito estava todo endomingado, era intenção explicar que se vestia com certo capricho, até com exagero, como quem sai a passeio em feriado.
No entanto... O que pode ser traje de missa em uma ocasião talvez não o seja em outra. As fotografias seguintes exemplificam essa questão:

Pessoas indo à missa em São Paulo (¹) no ano de 1910:


Saída da missa em São Paulo (²) no ano de 1924:


Observou o comprimento da roupa das mulheres? As mangas mais curtas? Os chapéus algo mais discretos? Nem foi preciso tanto tempo para que houvesse uma sensível alteração no comprimento que se considerava apropriado para quem ia à igreja - está, pois, aí, uma boa amostra das alterações introduzidas no Ocidente após a Primeira Guerra Mundial, nos mais diversos aspectos da sociedade. A mudança no vestuário foi apenas uma delas.

(1) A LUA, Ano I, nº 3, janeiro de 1910.
(2) A VIDA MODERNA, Ano XX, nº 483, 16 de outubro de 1924.


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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Escravos vendedores de caldo de cana

Se dependessem de mim, os quiosques e lanchonetes que vendem caldo de cana iriam à falência. Não gosto, não gosto mesmo. Mas é apenas uma questão de preferência, e o grande número de fregueses que pode ser visto ao redor dos vendedores, particularmente em dias de muito calor, demonstra que o caldo de cana tem uma multidão de apreciadores.
O que os felizes comerciantes certamente não sabem, ao venderem um copo de caldo de cana após outro, é que, no passado, esse trabalho era feito por escravos. Nas ruas do Rio de Janeiro, a capital do Império, ou de outras localidades, escravos vendiam doces, café, caldo de cana e uma série de outras coisas.
O lucro obtido com as vendas, em geral, não ficava para eles. Ia para as mãos de seus senhores, ainda que, uma vez ou outra, alguém pudesse até dar alguma pequenina "comissão" sobre as vendas a seu escravo, fato que em nada alterava a lógica escravista - o senhor continuava senhor, o escravo era uma mercadoria (podia ser comprado e/ou vendido), de cuja mão de obra o proprietário podia dispor como bem entendesse.
A ilustração ao lado (*), obra do pintor brasileiro Joaquim Lopes de Barros, data de 1840. Foi o próprio artista quem atribuiu o título: "Preto de caldo de cana".

(*) O original pertence à Biblioteca Nacional. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Os bandeirantes não sabiam geografia. Os eruditos também não!

Era 1736. No contexto das disputas entre portugueses e espanhóis sobre questões relacionadas aos limites de suas terras na América do Sul, Manuel Dias da Silva resolveu organizar uma expedição cujo objetivo era apoiar as pretensões da Coroa Lusitana. Havia, porém, um problema (entre muitos outros): Como atinar com o rumo correto a ser seguido?
Pode-se ler na Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme:
"Consistia também a dificuldade no temor de não acertar com o sítio de Camapuã por falta de geografia, cuja ciência totalmente ignorava, bem como todos os antigos paulistas, que sem outro adjutório mais do que o rumo do nascente ao poente, a que lhes servia de verdadeira agulha o sol, penetraram a maior parte dos incultos sertões da América, conquistando nações bárbaras, de cujos índios se serviam, como administradores seus, pelo benefício de os terem desentranhado do paganismo para o grêmio da Igreja." [sic!]
A revelação fundamental, aqui, nem é tanto o problema com que se deparava Manuel Dias da Silva. É, sim, que os antigos paulistas, ao correrem o interior do Brasil, não podiam contar com conhecimentos de geografia (sobre uma área que, aliás, ninguém conhecia mesmo), nem sabiam usar mapas ou instrumentos, como a bússola por exemplo. Pedro Taques não menciona, mas é verdade que os índios cativos eram, frequentemente, guias nas trilhas do sertão. Mas mesmo eles não podiam indicar caminhos para além dos terrenos que conheciam. O sol foi, depreende-se do texto citado, o guia principal de que dispunham os sertanistas a que chamamos bandeirantes, quando se tratava de achar o caminho em meio à vegetação cerrada e ao relevo desconhecido.
Acontece, meus leitores, que os bandeirantes de São Paulo não eram, nesses tempos, os únicos que desconheciam geografia. Mesmo gente de maior instrução, erudita, até, tinha severas dificuldades nessa área. Basta dar uma olhada nos mapas que então havia, ou correr os olhos por obras escritas por intelectuais da época. O mar de tolices escritas sobre o Brasil é tão vasto, que chega a ser difícil pinçar algumas "obras de arte", para gáudio de meus leitores. Mas vão a seguir algumas lorotas cabeludas, que farão sorrir quem estudou, direitinho, suas lições de Geografia. Para facilitar as coisas, as citações obedecem à ordem cronológica em que foram escritas.

a) Pero Vaz de Caminha, na "Carta do Descobrimento", datada de 1500, relatando ao rei D. Manuel a chegada da esquadra de Cabral ao Brasil:
"Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste ponto houvemos vista, será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa." (¹)

b) Pero de Magalhães Gândavo, afirmando, na segunda metade do século XVI, que os rios Paraguai e São Francisco provinham de um mesmo lago:
"Neste rio pela terra dentro se vem meter outro a que chamam Paraguai, que também procede do mesmo lago como o de São Francisco que atrás fica." (²)

c) O Padre Simão de Vasconcelos entendia que o Amazonas e o Rio da Prata uniam-se no sertão:
"O comprimento deste grão-gigante dos rios é de mil e trezentas, mil e seiscentas ou mil e oitocentas léguas, segundo cômputos vários dos que o navegaram. A distância por onde estende seus braços espaçosos, direito e esquerdo, soma passante de mil léguas, por relação das gentes que bebem suas águas, e assim deve ser de razão, para ser verdade o que dizem, que chegam no meio do sertão a dar-se as mãos estes dois rios do Pará e da Prata." (³)

d) Novamente o Padre Simão de Vasconcelos, tratando, desta vez, do rio São Francisco:
"É este rio um dos mais célebres do Brasil, o primogênito daqueles dois primeiros, e como marco terceiro do meio desta costa. Está em altura de 10 graus e um quarto. É copiosíssimo em águas, desemboca no mar, com duas léguas de largura, com tanta violência que bebem delas os mareantes em distância de quatro e cinco léguas antes de sua barra. Seu nascimento é daquela famosa lagoa feita das vertentes de águas das serranias do Chile e Peru, donde dissemos procediam os outros dois principais rios Grão-Pará e da Prata." (⁴)

Observação muito importante:

Quem não entendeu coisa alguma precisa, desesperadamente, ir estudar Geografia agora mesmo!

(1) A légua, de acordo com o padrão que fosse adotado, podia ter pouco mais de 5,5 km ou cerca de 6,1 km.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. 1576.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 32.
(4) Ibid. p. 49.


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domingo, 25 de novembro de 2012

Como se devia guardar o gado nos engenhos


Vegetação nativa do Brasil

A importância da construção de cercas fortes para reter o gado nas pastagens


Gabando a madeira fornecida por árvores que podiam ser encontradas no Brasil, Frei Vicente do Salvador observou que eram ótimas para a construção de casas, sem deixar de lado o fato de que cipós existentes nas matas tinham muita utilidade para atar o madeiramento de uma edificação. Curiosamente, assinalou também que as mesmas madeiras e cipós eram usados para a confecção das cercas que deviam proteger os canaviais, de modo que os bois que trabalhavam nos engenhos (¹) não invadissem as áreas cultivadas, causando assim dano à produção de cana destinada ao fabrico de açúcar:
Cipó, de acordo com Debret (³)
"São também as madeiras do Brasil mui acomodadas para os edifícios das casas por sua fortaleza, e com elas se acha juntamente a pregadura; porque ao pé das mesmas árvores nascem uns vimes mui rijos, chamados timbós e cipós [...], e com estes atam os caibros, ripas e toda a madeira das casas que houvera de ser pregada, no que se forra muito gasto de dinheiro, e principalmente nas grandes cercas que fazem aos pastos dos bois dos engenhos, para que são saiam a comer os canaviais de açúcar, e os achem no pasto quando os houverem mister para a moenda, as quais cercas se fazem de estacas e varas atadas com estes cipós." (²)
Vale relembrar aqui o fato de que não poucas desavenças que, no Período Colonial, redundaram em tragédias, começaram justamente por ter o gado de alguém invadido a lavoura de outro cultivador, daí a enorme importância de se fazerem boas cercas, para o que as madeiras e cipós mencionados por Frei Vicente do Salvador se prestavam muito bem.

(1) Veja as postagens da série "Carros de bois".
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 4

O uso de carros de bois no transporte do açúcar até os portos


Carro de bois, de acordo com Thomas Ender (¹)

Quando, em um engenho de cana, o açúcar estava pronto, era colocado em caixas e levado a um porto, de onde seguia para ser comercializado na Europa. De acordo com Antonil, havia dois modos possíveis para o transporte do açúcar até o porto, dependendo da localização do engenho produtor.

a) Engenhos localizados nas proximidades do mar

"Nos engenhos à beira-mar, levam-se as caixas ao porto desta sorte: Com rolos e espeques passam uma atrás de outra da casa da caixaria para uma carreta, feita para isso mesmo mais baixa, e sobre esta se leva cada caixa até o porto, puxando pelas cordas os negros de quem a manda embarcar por sua conta." (²)
Vê-se que, nesse caso, era aos escravos que competia o enorme esforço físico necessário ao deslocamento das carretas com caixas de açúcar. Eis um aspecto do trabalho dos escravos nos engenhos que poucos conhecem, que pouco se menciona, mas que estava em perfeito acordo com toda a brutalidade da escravidão que sustentava a produção açucareira.

b) Engenhos localizados a alguma distância do mar

"Dos engenhos pela terra dentro, vem cada caixa sobre um carro com três ou quatro juntas de bois, conforme as lamas que hão de vencer, e nisto custa caro o descuido, porque por não as trazerem no tempo do verão, depois no inverno estafam-se e matam-se os bois." (³)
Entram em cena, aqui, novamente, os carros de bois, que já haviam trabalhado em levar a cana até os engenhos, e que agora são empregados em fazer o açúcar chegar ao porto. Nota-se, na fala de Antonil, o quão dificultoso podia ser o trajeto, em decorrência das péssimas estradas e trilhas, daí porque, usualmente, evitava-se a instalação de engenhos em pontos muito distantes do litoral.

(1) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 93.
(3) Ibid.


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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 3

Bois que trabalhavam nos carros e nas engenhocas


Já há neste blog uma postagem sobre a diferença que havia, nos tempos coloniais, entre os chamados engenhos reais e as engenhocas. Como bem o expressou Antonil, "os reais ganharam este apelido por terem todas as partes de que se compõem e todas as oficinas perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos canaviais próprios, e outros obrigados à moenda, e principalmente por terem a realeza de moerem com água, à diferença de outros, que moem com cavalos e bois, e são menos providos e aparelhados, ou pelo menos com menor perfeição e largueza, das oficinas necessárias, e com pouco número de escravos para fazerem, como dizem, o engenho moente e corrente." (¹)
Por hora nos interessam apenas as engenhocas, também chamadas de trapiches, pelo fato de que empregavam animais na moenda, em lugar da roda d'água dos engenhos reais. Nelas, eram os bois (ou outros animais) que passavam horas intérminas a girar, girar, girar... para que se extraísse o caldo da cana, destinado à produção de açúcar e/ou de aguardente, sendo a última o que mais comumente se fazia nas engenhocas. Apenas máquinas de moer muito pequenas é que eram, eventualmente, movidas à força de escravos.
A ilustração abaixo, que apareceu em publicação holandesa no século XVII, mostra uma engenhoca em funcionamento, podendo ver-se nela o trabalho de bois:

Moenda de uma engenhoca funcionando com o trabalho de bois (²)

Assim, sendo necessário muito cuidado na escolha de bois para os carros, conforme se explicou na postagem anterior, era igualmente importante saber administrar os bois que trabalhariam nos engenhos:
"Se moendo com água e usando de barcos para a condução da cana, é necessário ter no engenho quatro ou cinco carros, com doze ou quatorze juntas de bois muito fortes, quantos haverá mister quem mói com bestas e bois, e tem cana própria, para se conduzir de longe à moenda? Advirta-se muito nisto, para se comprarem a tempo os bois, e tais quais são necessários, dando antes oito mil réis por um só boi manso e redondo, do que outro tanto por dois pequenos e magros, que não têm forças para aturarem no trabalho." (³)

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711 - proêmio.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Op. cit. pp. 45 e 46.


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domingo, 18 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 2

O transporte da cana-de-açúcar até os engenhos coloniais


Nos tempos coloniais os carros de bois tinham importância vital para a atividade econômica mais valorizada em boa parte do Brasil: a produção do açúcar de cana. Eram os bovinos que se empregavam em carros para fazer a cana ir da lavoura até os engenhos, de modo que Antonil recomendava aos senhores de engenho o máximo cuidado na seleção dos animais que se destinavam ao trabalho, já que não havia boas estradas e os caminhos, em dias chuvosos, podiam ser demasiadamente difíceis para os carros de bois:
"Conduzir a cana por terra em tempo de chuvas e lamas é querer matar muitos bois, particularmente se vieram de outra parte magros e fracos, estranhando o pasto novo e o trabalho. [...] Por isso os bois, que vêm do sertão cansados e maltratados no caminho, para bem não se hão de pôr no carro, senão depois de estarem pelo menos ano e meio no pasto novo, e de se acostumarem pouco a pouco ao trabalho mais leve, começando pelo tempo do verão, e não no do inverno; de outra sorte, sucederá ver o que se viu em um destes anos passados, em que morreram só em um engenho duzentos e onze bois, parte nas lamas, parte na moenda e parte no pasto. (¹) 

Carro de bois para transporte de açúcar, de acordo com Louis-Julien Jacottet (²)

Havia também a possibilidade de se realizar o transporte da cana em barcos, fosse porque as lavouras e o engenho estavam perto de um rio navegável, fosse porque o engenho, localizado à beira-mar, ensejava o uso da navegação marítima para que se fizesse chegar a cana até as moendas. Sim, isso era possível, mas, de qualquer modo, os carros de bois eram o meio mais frequentemente empregado, daí a prescrição de Antonil no sentido de se dar aos bois, que vinham do sertão, um tempo adequado para que se adaptassem ao trabalho. Curiosamente, jamais vi recomendação semelhante em relação aos escravos!

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 45. 
(2) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Carros de bois - Parte 1

O uso de carros de bois no Brasil


"O caminho barrento, pegajoso e úmido, cheio de sulcos de carro de boi, desprendia um cheiro de lama e estrume. Da estrada pelo morro acima o terreno era inculto, coberto de matapasto crescido, e sobre ele se viam bois agitando com o movimento inquieto das cabeças a sineta que traziam ao pescoço, bufando e catando insofridos a erva."
                                                                                                                                   Graça Aranha, Canaã
 
Carro de bois, de acordo com Debret (¹)

Durante muito tempo - séculos, na verdade - cargas de todos os tipos foram, no Brasil, transportadas em carros de bois. Isso, claro, quando havia algum caminho praticável, porque não havendo, era às costas de escravos, negros ou índios, que as cargas seguiam, fosse rumo ao interior (como no Caminho do Mar), fosse para algum porto, onde eram embarcadas em navios que para isso mesmo já lá estavam.
Vejamos um exemplo. Ao descrever Icó, no Ceará, o Padre Ayres de Casal, depois de relatar que produzia arroz, milho, feijão, melancias e melões, diz que, no entanto, farinha, açúcar e rapadura, bem como sal, provinham de outros lugares: "A farinha, açúcar e rapaduras vêm-lhe do Crato, o sal do Açu, tudo em carros." (²)
E, se tudo isso vinha em carros, lá vinham também os bois, que puxavam os carros... Afinal, de que outro modo seria?
Além disso, várias juntas de bois podiam ser usadas em um único carro, de modo a ampliar a capacidade de transporte de carga mesmo em terrenos difíceis. Ou, pelo andar lento e cadenciado dos bovinos, podia um carro ser usado para o transporte de passageiros, em particular para moças e senhoras que, antigamente, não eram incentivadas a exercitar habilidades atléticas.

Família de fazendeiro viajando em carro de bois, de acordo com Rugendas (³)

Não se imagine, porém, que carros de bois eram usados apenas em estradas, ou em algo que se parecesse com elas. Nas ruas das cidades e vilas também se podia ouvir o ruído característico das rodas dos carros.
O advento das ferrovias e, um pouco depois, dos automóveis, foi, aos poucos, lançando os carros de bois no desuso, pelo menos na maior parte do Brasil. Havia sempre, porém, quem preferisse carros de bois aos trens, conforme se depreende deste trechinho de Coelho Neto em A Bico de Pena:
"Quem viaja a cavalo ou em carro de bois sente um alegrão doido quando vê na estrada ao longe, outro cavaleiro ou quando ouve o rincho de outro carro de bois; e no trem? Se a gente vê vir, na mesma linha, outro comboio em sentido contrário, só tem uma coisa a fazer: é encomendar a alma ao Criador, porque está frito."

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 230.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 13 de novembro de 2012

O uso do urucum por indígenas do Brasil


Para as pinturas que usavam trazer sobre o corpo, os povos indígenas do Brasil costumavam servir-se de corantes de origem vegetal, sendo muito comum o uso do jenipapo e do urucum. É, provavelmente, deste último que falou Pero Vaz de Caminha, na sua famosa Carta, em que conta a D. Manuel sobre os acontecimentos relacionados à chegada dos portugueses ao Brasil em 1500. Escreveu ele, relativamente aos adornos usados pelos índios com os quais tiveram contato:
Urucum, de acordo com Debret (¹)
"Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos, que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam."
Mas tarde, na segunda metade do século XVII, quando a colonização já era um fato bem estabelecido, o Padre Simão de Vasconcelos observaria, ainda a propósito de como se ornamentavam os povos indígenas, salientando que havia dois tipos principais de enfeites:
"Também se enfeitam a seu modo de diversas maneiras. Uma é pintar-se todo o corpo de várias cores, comumente de preto, vermelho e amarelo, com sumo de frutas, jenipapo, urucum e outras. Outros se ornam de penas várias, de guarás, araras, canindés e outros pássaros mais lustrosos." (²)

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 140.


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domingo, 11 de novembro de 2012

Deslizes de alguns membros do clero colonial - Parte 4

Religiosos que não se dedicavam aos estudos e/ou eram descuidados no cumprimento de seus deveres


Pode acreditar, leitor: nos tempos coloniais, os sermões atraíam multidões às igrejas. Pregadores famosos, com bela voz e alta técnica de oratória, capazes, com suas descrições espetaculares, de levar a imaginação dos ouvintes dos terrores do inferno às delícias do Paraíso, fazendo-os experimentar emoções que iam do mais profundo pavor ao júbilo dos bem-aventurados, eram extremamente populares, verdadeiras estrelas da época e, por isso mesmo, imitados por jovens candidatos à carreira religiosa. Estes últimos, no entanto, não escapavam à mordacidade de Gregório de Matos:

"Que haja pregador noviço,
que estude alheios sermões,
só para juntar dobrões,
porque os ajunta por isso:
que cuide muito remisso,
que poderá bem pregar
sem teologia estudar,
ou sem saber a oratória!
Boa história."
  
Sejamos, porém, razoáveis: não era para qualquer capela ou igreja de paróquia o ter um Padre Antônio Viera, não é verdade?
O governo português cobrava da população o pagamento dos dízimos, subentendendo-se, daí, que estava responsável por garantir a assistência religiosa a quem vivia na Colônia. Sabe-se, porém, que, em geral, vivia o povo na mais crassa ignorância, e até para ministrar os sacramentos era difícil, às vezes, encontrar um padre. Por outro lado, muitos desses religiosos não eram exatamente modelos em zelar por seus deveres. Há, nesse sentido, um ótimo episódio, relatado por Saint-Hilaire, ocorrido no início da segunda década do século XIX, no interior de Minas Gerais, quando esse naturalista francês estava de viagem a São Paulo, tendo se hospedado em casa de um pároco:
"Quando fui dar bons dias ao cura, contou-me que me esperava para dizer a missa. Apressei-me em me vestir e tomei o chapéu, imaginando que iríamos à igreja paroquial. Mas o cura disse-me que não sairíamos de casa, e efetivamente ali rezou a missa. Eu e os seus negros fomos os únicos ouvintes. Na Igreja brasileira não há o que possa causar espanto: está fora de todas as regras!" (*)

(*) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 49.


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